quinta-feira, 21 nov 2013
A
atual e contínua crise econômica ressuscitou com novo vigor o infindável debate
sobre se os gastos governamentais são uma ferramenta útil para fazer políticas
contracíclicas. Em muitos países, a
discussão foi totalmente politizada e está centrada exclusivamente no tamanho
da dívida do governo, enfocando toda a carga de impostos que o pagamento dos
juros dessa dívida representará para as gerações futuras, bem como a questão de
se mais endividamento vai ajudar ou não a estimular a economia. Academicamente, o debate se divide entre
escolas de pensamento keynesianas e livre-mercadistas, cada lado defendendo
políticas bem diferentes daquelas que foram implantadas até agora.
A
maioria dos economistas — exceto os austríacos, por motivos que serão discutidos
abaixo — crê que uma redução nos gastos (tanto em investimento quanto em
consumo) é o problema. Normalmente, eles
sugerem estímulos fiscais ou monetários como solução. Ambas as soluções têm o objetivo de corrigir
a chamada desigualdade de renda (frequentemente representada por uma queda no
produto interno bruto real), seja por meio da criação de mais dinheiro para ser
gasto, seja estimulando o gasto — por meio de uma redistribuição de renda —
do dinheiro que já existe. O objetivo
final de ambas as formas de estímulo não é o gasto em si, mas o emprego de
recursos atualmente ociosos que tais gastos promoveriam.
O
argumento em prol dos estímulos fiscais baseia-se em duas suposições: que o
investimento privado entrou em declínio e que os efeitos dos estímulos
monetários (redução de juros, criação de dinheiro) estão obstruídos por algum
tipo de barreira. Para John Maynard
Keynes, uma depressão resulta de uma queda nos investimentos, a qual é, por sua
vez, causada por uma queda nos gastos em consumo (sendo esta queda causada por
um aumento na poupança). Ele considerava
esse fenômeno um dos principais defeitos naturais do sistema capitalista, o que
o levou a defender a "socialização" dos investimentos.
Se
os atuais economistas pró-intervencionismo aceitam esse argumento de Keynes em
sua totalidade é algo irrelevante. Eles
concordam com Keynes na medida em que enxergam os gastos governamentais como o
mais eficaz método de recuperar a economia, a melhor maneira de levá-la
novamente para o nível de criação de riqueza que vigorava antes da recessão.
Se
uma economia saudável pudesse ser modelada por um simples diagrama de fluxo de gastos,
em que o crescimento econômico fosse apenas
uma função do nível de investimentos, então o debate realmente estaria
acabado. Levando tal conceito ao
extremo, essa premissa poderia servir de argumento para uma economia
completamente socializada: afinal, o crescimento econômico seria apenas uma
função de se investir em processos de produção.
Sabemos,
entretanto, que a economia de mercado nem de longe é tão simples e ordeira
quanto esse modelo sugere. O mercado é
uma emaranhada rede de relações econômicas, é um processo caracterizado por
várias forças coordenadoras e descoordenadoras.
Vivemos em uma sociedade acossada pela escassez, e é esse processo de
coordenação feito pelo mercado que irá auxiliar o indivíduo a decidir como
alocar corretamente os recursos necessários para se obter os fins
desejados. É por isso que o crescimento
econômico, ou a criação de riqueza, não é apenas uma função do
investimento. O vago termo
"investimento" deve ser incorporado a este mundo de escassez, preferências e
coordenação.
Quando
os gastos governamentais são integrados a essa realidade mais ampla do processo
de mercado, torna-se claro que a questão toda envolve variáveis muito além da
simplista noção de gastos e produção.
Tudo deixa de ser apenas uma questão que envolve uma relação direta
entre investimento e criação de riqueza, e passa a ser sobre se o governo pode
ou não participar de maneira eficaz no processo de coordenação do mercado.
Ao
se analisar detalhadamente, surgem razões convincentes para se acreditar que os
gastos governamentais são, na realidade, uma força descoordenadora, e que,
consequentemente, tais gastos não podem representar uma política contracíclica
eficaz. Com efeito, não se trata de uma
questão de eficácia; trata-se, isto sim, de um comentário sobre as
consequências nocivas de se "socializar o investimento".
Escassez, preferência e coordenação
Tipicamente,
os críticos dos gastos governamentais argumentam que, na melhor das hipóteses,
esse tipo de gasto simplesmente substitui os gastos que teriam ocorrido no
setor privado na ausência destes gastos governamentais — é como tirar dinheiro
do seu bolso direito e colocá-lo no esquerdo.
Na pior das hipóteses, dizem eles, os gastos governamentais geram o
efeito colateral negativo de desestimular a produção por causa da maior
tributação (no caso, a ameaça de uma maior tributação futura para financiar
esse aumento de gastos do presente).
Estas
críticas aos gastos governamentais são corretas e poderosas, porém, em última
instância, elas são insuficientes para explicar o problema fundamental. Os gastos governamentais são, por natureza,
inferiores aos gastos privados e não operam dentro da esfera das forças
coordenadoras do mercado.
Uma
das principais e exclusivas contribuições da Escola Austríaca para a ciência
econômica foi o fornecimento de um arcabouço que aborda as questões econômicas
precisamente do ângulo da escassez e da coordenação. Foi com essa visão que Ludwig von Mises
originalmente contestou a viabilidade de uma economia socialista. Foi com essa mesma visão que ele e Friedrich
Hayek, e mais tarde Murray Rothbard, construíram uma detalhada caracterização
da arquitetura destas forças coordenadoras: isto é, como se dá o processo de
precificação.
O
termo "forças", quando utilizado para descrever as tendências de coordenação ou
descoordenação, é um tanto capcioso, pois pode dar a ideia de alguma forma de
misticismo. Porém, os processos de
mercado que coordenam a interação entre poupadores e investidores, consumidores
e produtores, são extremamente reais.
Todas
as forças macroeconômicas remetem a um "fundamento microeconômico" essencial: a
economia de recursos escassos. Sabemos
que o denominador comum de toda a atividade microeconômica é o fato de que o
indivíduo age — que os indivíduos que participam da economia empregam
determinados meios para se alcançar os fins desejados. Cada indivíduo possui a sua escala subjetiva
de utilidades, de desejos, os quais estão listados em ordem de sua preferência;
cada indivíduo irá empregas meios de produção escassos visando a atingir os
fins escolhidos, tudo com base em suas preferências. Indivíduos agem assim para tentar remover uma
"insatisfação", um "desconforto", ou seja, para tentar atingir uma situação
mais preferível.
Logo,
o contínuo processo de alocação de recursos que ocorre ao longo de toda a
sociedade é simplesmente o agregado desse mesmo processo de cálculo que ocorre
continuamente em termos individuais.
Essas ações individuais se harmonizam em escala macroeconômica por meio
do processo de precificação e da divisão do trabalho. Produtores são premiados ou punidos por meio
de lucros e prejuízos, criando uma tendência para que o capital flua para
aqueles que sabem como utilizá-lo da maneira mais eficaz (aqueles que melhor
satisfazem os consumidores). Esta é a
maneira como o mercado recompensa a "eficiência".
As
consequências dos gastos governamentais somente podem ser analisadas dentro de
um contexto de coordenações de mercado.
Se a socialização dos investimentos realmente for justificável, então os
resultados desses investimentos têm de ser melhores do que os resultados que
teriam ocorrido caso esses mesmos recursos tivessem sido economizados pelos
indivíduos no mercado.
Em
outras palavras, o método governamental de decidir sobre os investimentos a serem feitos teria
ou de usufruir as mesmas características dos métodos utilizados pelo mercado, o
que faria com que o governo fosse um melhor empreendedor, ou o método do
governo teria de ser ele próprio superior ao método do mercado. Esta última hipótese pode ser imediatamente
descartada tomando-se por base o fato de que sabemos que o único método de
cálculo econômico é aquele feito por indivíduos, no mercado, por meio do
processo de precificação de bens e serviços.
Portanto, os investimentos do governo são necessariamente e
inerentemente inferiores aos investimentos realizados no livre mercado.
Indivíduos
economizam e alocam recursos baseando-se em suas próprias preferências, em seus
próprios objetivos e nas preferências esperadas de terceiros, as quais são parcialmente
refletidas pelo mecanismo de preços e também são frequentemente prognosticadas
através de outros meios de informação.
Mesmo os produtores daqueles bens de capital mais distantes do
consumidor final derivam seus lucros da satisfação dos consumidores, uma vez
que demanda por seus produtos é decidida pelos empreendedores que estão
diretamente atendendo a estes consumidores.
A
capacidade que um indivíduo tem de adquirir os meios necessários para a consecução de um determinado fim é influenciada pelas capacidades de outros indivíduos que
estão competindo para obter estes mesmos meios.
E desta forma, também, o mercado reforça a tendência de economizar os
meios e alocá-los eficientemente para os mais importantes fins.
O
governo não tem de lidar com estas mesmas restrições ou motivações quando
gasta. Com efeito, se o governo fosse
submetido às mesmas restrições e motivações do mercado, ele não poderia
fornecer para a sociedade aquilo que o mercado não produz (para o bem ou para o
mal).
Dado
que o estado, em teoria, não tem restrições de receita, ele pode efetivamente
superar todos os seus concorrentes em potencial na aquisição por quaisquer
recursos necessários para levar a cabo seu programa de gastos. Não há necessidade de economizar dinheiro,
pois o estado pode tomar emprestado, tributar e simplesmente criar mais
dinheiro para financiar suas compras. No
final, isso distorce toda a noção de escassez, pois o governo pode adquirir
qualquer bem econômico a qualquer custo.
O papel dos preços em auxiliar os indivíduos a tomarem suas decisões no
que diz respeito a que meios utilizar para atingir determinados fins acaba
sendo efetivamente anulado, pois, para o governo, os preços são variáveis
econômicas praticamente irrelevantes.
Similarmente,
a restrição imposta pelo sistema de lucros e prejuízos não é aplicável às
operações do governo. Governos operam
com o dinheiro de outros — a fonte de receitas do governo não é o lucro, mas a
tributação —, o que significa que não há a necessidade
de se operar lucrativamente. Ademais, os
tipos de investimentos que o governo faz tendem a requerer grandes quantias
iniciais, pois os custos tendem a ser elevados.
Se os indivíduos no mercado investem com o intuito de alcançar os fins
que consideram ser os mais altos em sua escala de valores, conclui-se que o
governo tende a investir com o intuito de alcançar aqueles fins que são
negligenciados pelos indivíduos (por serem menos econômicos).
As
consequências dos gastos governamentais são mais bem entendidas quando se toma
como pano de fundo as atividades de mercado.
Vivemos sob o espectro da escassez — um corolário da ação humana e da
fundamental escassez da mão-de-obra —, o que faz com que todos os bens econômicos, os quais são por definição escassos,
sejam alocados no mercado por meio dos processos mencionados acima. Os gastos governamentais, sejam eles feitos
diretamente ou por meio de subsídios, acabam por fazer uma redistribuição de
recursos, retirando-os daqueles indivíduos que os teriam economizado e
alocando-os para fins menos desejados.
Assim, mesmo que um programa
governamental acabe gerando algum lucro, o custo de oportunidade representado
pela produção privada que poderia ter ocorrido, mas que não houve, representa
uma perda líquida para a sociedade.
Recursos ociosos
Sabemos
que, se os recursos estiverem sendo economizados e alocados de acordo com as
preferências dos indivíduos no mercado, os gastos governamentais irão perturbar
e desorganizar esse processo, fazendo com que os recursos sejam redistribuídos
para a consecução de fins considerados menos importantes. Entretanto, pode parecer que esse argumento
não ataca adequadamente a questão das políticas fiscais contracíclicas que
normalmente são implantadas durante períodos de recessão, uma vez que é durante
este período que, dizem, há um excesso de "recursos ociosos".
Recursos
ociosos são aqueles meios de produção que aparentemente não estão sendo
utilizados — um exemplo óbvio é o da mão-de-obra desempregada. Já que estes meios de produção estão
"ociosos", que mal há em o governo empregá-los?
Há
várias respostas plausíveis para essa questão.
Vale mencionar que o governo sempre tende a exacerbar o grau em que tais
recursos realmente estão "ociosos"; assim, é possível argumentar que o problema
da ociosidade é em grande medida artificial.
Entretanto, isso implicaria que ainda assim poderia haver algum grau de ociosidade no mercado, e
que isso representaria algum tipo de problema.
A resposta correta a essa questão é aquela que explica por que o suposto
problema dos "recursos ociosos" na realidade não representa problema nenhum,
pois os recursos não são deixados ociosos em vão.
Bens
econômicos são constantemente economizados e alocados dentro da estrutura de
meios-fins do indivíduo no mercado. Que
determinados bens possam não ser aplicados para a consecução de um fim
específico não significa que esses recursos agora estejam ociosos e sem valor;
simplesmente sugere que esses recursos estão mais bem poupados para a consecução de outro fim. Se a atividade econômica é definida como a
consecução de fins e a alocação de meios para estes fins, e dado que certos
meios de produção são considerados em melhor situação quando não utilizados,
que sentido faz utilizar forçosamente estes "recursos ociosos" por meio de
gastos governamentais? A redistribuição
de supostos "recursos ociosos" sofre o mesmo problema da redistribuição de
"recursos não ociosos" — o custo de oportunidade da atividade de mercado que
poderia ter ocorrido, mas que não houve, é maior do que qualquer benefício supostamente
trazido pelo programa governamental realizado.
Pode-se
sensatamente esperar um aumento na quantidade de "recursos ociosos" durante os períodos
que vêm após fases de prolongada descoordenação intertemporal. Durante toda a fase da descoordenação intertemporal,
a estrutura de produção vai crescendo ao redor dos distorcidos sinais de lucro
criados pela expansão monetária. Os bens
de capital desenvolvidos e produzidos durante esse período tendem a variar em
especificidade, com alguns sendo muito indefinidos (como, por exemplo, a
mão-de-obra de baixa habilidade), outros sendo altamente específicos (como, por
exemplo, uma máquina criada para produzir apenas um único tipo de bem), e a
maioria estando em algum ponto intermediário.
O
necessário reajustamento da estrutura de produção que ocorre quando essas
distorções são reveladas (naquilo que é chamado de recessão) irá necessariamente gerar um aumento no
volume de recursos ociosos. Bens de
capital de maior especificidade ficarão ociosos, pois nesta fase da economia
eles inevitavelmente serão parcial ou totalmente inaproveitáveis em outras
linhas de produção. Empreendedores
individuais terão de planejar suas ações utilizando as sobras destes
investimentos errôneos, e baseando-se nas preferências dos consumidores e nos seus
próprios prognósticos em face da incerteza.
Estes bens de capital "ociosos" não estão ociosos de maneira alguma;
eles estão, isto sim, sendo poupados durante este período de reajustamento
estrutural.
Durante
este período de reajustamento, a redistribuição de riqueza por meio de gastos
governamentais pode empregar estes recursos considerados ociosos. A estrutura de produção pode se ajustar ao
redor das várias e novas linhas de produção ressuscitadas ou financiadas pelo
governo. Entretanto, o formato dessa
estrutura de produção será inferior àquela que teria se desenvolvido sem a
interferência do governo. Logo, ainda
assim haverá uma perda líquida para a economia.
Governo: a grande força desequilibradora
Os
gastos governamentais não são uma maneira de se aprimorar a eficiência do
mercado; tampouco são um método para se empregar recursos supostamente
ociosos. O resultado dos gastos
governamentais são as oportunidades perdidas, aquelas que poderiam ter
ocorrido, mas que não puderam ser concretizadas. O custo é o ganho de riqueza que teria
ocorrido caso estes recursos pudessem ter sido alocados pelo mercado menos o produto do gasto
governamental. Pode-se facilmente
concluir que a noção de que estímulos fiscais contracíclicos são positivos para
a economia é altamente duvidosa, e que uma melhor alternativa seria permitir
que os indivíduos atuando no livre mercado economizassem e alocassem os bens de
acordo com sua escala de valores.
Esse
argumento não pressupõe que os indivíduos atuando no livre mercado atinjam o
"grau ótimo" de alocação, ou que o mercado seja absolutamente eficiente. Pode haver casos em que um indivíduo irá
fazer um investimento errôneo, fazendo com que o capital investido seja
consumido sem nenhuma produção de riqueza.
Esses casos, entretanto, não chancelam os gastos governamentais. Em uma escala macroeconômica, existem
tendências e forças, criadas pelos indivíduos que agem na sociedade, que
recompensam aqueles que investem bem e punem aqueles que investem mal. Este tipo de tendência distribucional não
afeta os gastos governamentais, pois o governo necessariamente opera fora do escopa das forças coordenativas do
mercado — o estado não está restringido a uma dada quantia de receitas;
tampouco ele reage a lucros e prejuízos.
Portanto, não há medidas corretivas que possam fazer com que os gastos
do governo estejam de acordo com as preferências dos consumidores.
O
governo, de fato, é uma enorme força desequilibradora que atua sobre o
mercado. Ele forçosamente redistribui
bens econômicos, retirando-os de um processo de economização e alocação
racional para investi-los na consecução de fins menos importantes ou menos
preferidos. Em outras palavras, ele
distorce o contínuo processo de coordenação feito pelo livre mercado.
No
geral, podemos concluir com segurança que os gastos governamentais causam mais
danos do que benefícios; eles redistribuem os meios de produção, alocando-os
para a consecução de fins considerados inferiores pelos próprios indivíduos que
formam a mesma sociedade que o governo está supostamente tentando melhorar.
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