O artigo a seguir foi extraído do capítulo 4 do livro A Tragédia do Euro, a ser publicado em breve pelo IMB.
Livrando a Europa do marco alemãoOs governos
dos países latinos, especialmente o da França, consideravam o euro uma
eficiente maneira de se livrar do odiado marco alemão.[1] Antes da introdução do euro, o marco alemão
era o estandarte que desnudava e deixava explícitas todas as malversações
monetárias dos governos irresponsáveis da região. Embora o Bundesbank fosse ele próprio uma
instituição inflacionista, ele criava dinheiro a uma taxa bem menor que a dos países
altamente inflacionistas da região — especialmente do sul da Europa —, os
quais utilizavam seus respectivos bancos centrais para financiar seus
déficits. A taxa de câmbio de uma moeda
em relação ao marco alemão servia como um critério de comparação para os
cidadãos daqueles países. Os governos
dos países altamente inflacionistas temiam essa comparação com o Bundesbank. O euro, portanto, era uma maneira de acabar
com as constrangedoras desvalorizações de suas moedas perante o marco.
Os governos
dos países altamente inflacionistas não temiam o recém-estabelecido Banco
Central Europeu. Embora o novo banco
central tivesse sido criado, ao menos em teoria, como sendo uma cópia do
Bundesbank, na prática ele poderia ser submetido a pressões políticas, sendo
gradualmente transformado em um banco central mais parecido com aqueles dos
países latinos. E a realidade é que hoje
são os países do sul da Europa que detêm o controle efetivo do BCE. O conselho do BCE é composto pelos diretores
do BCE e pelos presidentes dos bancos centrais nacionais. Todos têm o mesmo voto. A Alemanha e os países do norte, que
tradicionalmente sempre tiveram moeda forte, como Holanda, Luxemburgo e
Bélgica, detêm uma minoria dos votos contra países como Itália, Portugal,
Grécia, Espanha e França, cujos governos são menos avessos a déficits. Esses países latinos sempre tiveram
sindicatos poderosos e um alto grau de endividamento, o que os torna
inerentemente propensos à inflação.
O euro foi
vantajoso para os países latinos porque sua inflação poderia agora ser
conduzida sem que houvesse qualquer evidência direta de uma apreciação do marco
alemão. A inflação
prosseguiria impávida, só que agora estaria mais oculta. Quando os preços começassem a subir, seria
relativamente mais fácil jogar a culpa em determinadas indústrias. Políticos poderiam, por exemplo, dizer que a
gasolina está encarecendo porque a taxa de extração de petróleo chegou ao
limite. Por outro lado, se o preço da
gasolina subisse e ao mesmo tempo houvesse uma desvalorização da moeda em
relação a outras, seria mais difícil para os políticos culparem as
petrolíferas pelo aumento nos preços.
Desvalorizações acompanhadas de uma maior inflação de preços poderiam facilmente
fazer com que políticos perdessem eleições.
E as desvalorizações em relação ao marco alemão desapareceram com a
introdução do euro.
Giscard
d'Estaing, criador do grupo lobista em prol do euro, declarou em junho de 1992
que o BCE iria finalmente colocar um fim na supremacia monetária da Alemanha.[2] O que ele quis dizer com
isso é que aquela evidência incontestável de que outros países estavam
inflacionando — e com isso sendo expostos pela desvalorização de suas moedas
em relação ao marco alemão — finalmente desapareceria. Ele acrescentou dizendo que o BCE deveria ser
utilizado para a implementação de 'políticas macroeconômicas que visassem ao
crescimento das economias'; em outras palavras, inflação. Similarmente, Jacques Attali, conselheiro de
Mitterrand, admitiu que o Tratado de Maastricht foi apenas um contrato
complicado cujo propósito era o de livrar a Europa do marco. Tal objetivo também era visado pelos
italianos e por outros países da região.[3]
Prestígio
Uma vez que o BCE foi baseado no modelo do Bundesbank, os países mais inflacionistas
herdaram parte de seu prestígio. A
criação do BCE foi similar a uma fusão imaginária entre as montadoras Fiat e
Daimler-Benz, na qual os alemães assumem a gerência e o controle de
qualidade. Embora a administração
majoritária seja alemã, as fábricas da Fiat ainda estão na Itália. Os custos de se desfazer essa fusão, no entanto,
são imensos. Embora o arranjo certamente
seja bom para a Fiat, ele não é tão bom para a própria Daimler-Benz.
O resultado
da introdução do euro foi a expectativa de uma moeda mais estável para os países
do sul da Europa. Consequentemente, as expectativas
inflacionárias caíram nestes países.
Quando as expectativas inflacionárias são altas, as pessoas reduzem sua
demanda por moeda (isto é, reduzem a quantidade de moeda que estão dispostas manter em
suas possas) e começam a gastar comprando bens, pois creem que os preços estarão
consideravelmente mais altos no futuro.
Quando as expectativas inflacionárias caem, as pessoas aumentam
marginalmente sua demanda por moeda — isto é, reduzem seus gastos —, o que leva a uma redução da inflação de
preços. Esta é uma das razões por que as
taxas de inflação de preços nos países do sul da Europa diminuíram antes mesmo
de o euro ter sido introduzido. A
expectativa associada à introdução do euro reduziu as expectativas
inflacionárias, ajudando estes países a cumprir o critério de Maastricht, o
qual exigia taxas de inflação menores.
Como no
caso da fusão entre Daimler e Fiat, para a Alemanha o euro significou uma
diluição da força e solidez de sua moeda.
O que a Alemanha temia era que o euro fosse menos estável do que o marco
alemão, estimulando assim expectativas inflacionárias. O governo alemão estava, com efeito,
utilizando o prestigio monetário do Bundesbank em benefício dos países-membros
inflacionistas e em detrimento de toda a população alemã.
Senhoriagem socializada
Alguns países,
especialmente a França, obtiveram ganhos à custa dos alemães devido à
socialização da riqueza gerada pela senhoriagem.[4] Senhoriagem são os lucros líquidos
resultantes da utilização da impressora de dinheiro. Quando um banco central cria dinheiro e
aumenta a base monetária, ele compra ativos, muitos dos quais rendem-lhe
juros. Por exemplo, um banco central
pode utilizar esse dinheiro recém-criado para comprar títulos da dívida de um
governo. A renda líquida, para o banco central, resultante do
pagamento dos juros destes títulos feito pelo governo é a senhoriagem, e é repassada, ao final do
ano, para o próprio governo. Como resultado da
introdução do euro, a senhoriagem foi socializada na UME. Os bancos centrais nacionais teriam agora de
repassar suas receitas decorrentes de juros para o BCE. O BCE, ao final do ano, remeteria seus
próprios lucros para os governos da zona do euro. Pode-se imaginar que esse seria um jogo de
soma zero. Mas não é. O BCE remete seus lucros para os bancos
centrais nacionais baseando-se não nos ativos em posse de cada um destes bancos
centrais, mas sim no capital que cada um deles possui junto ao BCE. Esse capital, por sua vez, é baseado na
população e no PIB de cada país, e não nos ativos destes bancos centrais
nacionais.
Por
exemplo, o Bundesbank produzia mais dinheiro (base monetária) em relação à sua
população e PIB do que a França, basicamente porque o marco alemão era uma
moeda de reserva internacional e era utilizada em transações
internacionais. Após a introdução do
euro, o Bundesbank detinha mais ativos que rendiam juros em relação à sua
população e PIB do que a França.
Consequentemente, o Bundesbank remetia para o BCE relativamente mais
receitas oriundas de juros do que a França, as quais eram então redistribuídas
para os bancos centrais nacionais baseando-se em números populacionais e do
PIB. Embora esse esquema fosse
desvantajoso para Alemanha, Áustria, Espanha e Holanda, ele era benéfico para a
França. Com efeito, os lucros do
Bundesbank remetidos de volta para o governo alemão caíram após a introdução do
euro. Nos dez anos anteriores à
introdução da moeda única, o Bundesbank obteve €68,5 bilhões em lucros. Nos primeiros dez anos após
a introdução do euro, o lucro caiu para €47,5 bilhões.
Taxas de juros menores
A introdução do euro
reduziu as taxas de juros nos países do sul da Europa, especialmente para os
títulos de seus governos. As pessoas e
os governos destes países passaram a pagar juros menores sobre suas dívidas. Os investidores começaram a comprar um maior
volume de títulos das dívidas destes países periféricos, o que elevou seus preços
e consequentemente reduziu seus juros.
Foi um arranjo lucrativo porque era esperado que aqueles títulos ainda
denominados em liras, pesetas, escudos e dracmas seriam finalmente quitados em
euros.
Essa
redução nas taxas de juros permitiu que alguns países reduzissem suas dívidas e
com isso cumprissem os critérios de Maastricht.
As taxas italianas, por exemplo, foram reduzidas substancialmente,
permitindo que o governo reduzisse seus gastos com o pagamento de juros. Em 1996, a Itália havia despendido
aproximadamente €110 bilhões com o pagamento de juros sobre suas dívidas, ao
passo que em 1999 esse valor havia caído para €79 bilhões.[5]
As taxas de
juros dos países do sul caíram essencialmente por dois motivos. Primeiro, as taxas de juros foram reduzidas à
medida que as expectativas inflacionárias, em decorrência do prestígio do Bundesbank, iam diminuindo. Esse prestígio do
Bundesbank parcialmente transferido para o BCE levou a menores despesas com o
pagamento de juros, o que por sua vez permitia juros ainda menores para a
rolagem da dívida. Segundo, os
adicionais de risco embutidos nas taxas de juros também diminuíram. Com o euro, foi introduzida uma moeda que
tinha o objetivo de ser um passo rumo à integração política da Europa. O euro foi introduzido supostamente por um
período de tempo indefinido. A
dissolução da zona do euro não era algo legítimo, e seria considerado um enorme
prejuízo político. A expectativa era a
de que as nações mais robustas socorreriam as nações mais debilitadas caso
necessário.[6] Como agora usufruíam de uma
garantia implícita para suas dívidas, vários países passaram a pagar juros
menores porque o risco de um calote havia sido reduzido.
Dado que a
Alemanha e outros países estavam implicitamente garantindo a dívida das nações
mediterrâneas, a redução das taxas de juros destes países não estava em
sintonia com o verdadeiro risco de calote apresentado por estes países. O governo alemão, por conseguinte, agora
tinha de pagar taxas de juros mais altas sobre sua dívida, justamente para
compensar esse risco de calote dos outros países. Os mercados normalmente punem de maneira
severa uma indisciplina orçamentária, com taxas de juros mais altas e uma
depreciação da moeda. A União Monetária
Europeia levou a um adiamento dessa punição.
Como
consequência da esperada entrada na união monetária, as taxas de juros
convergiram para níveis alemães, como pode ser visto no gráfico 1. De 1995 em diante, tornava-se cada vez mais
certo que os países mediterrâneos (com exceção da Grécia, que só entraria em
2001) participariam da união monetária a ser criada em 1999.

Gráfico 1: Taxas de juros
nominais para os títulos de três meses da Alemanha, da Grécia, da Espanha, da
Irlanda, da Itália e de Portugal
Fonte:
Eurostat
As taxas de
juros caíram mesmo com a poupança real não tendo aumentado. A redução das expectativas inflacionárias
também influenciou na redução do adicional de inflação que sempre é embutido
nos juros. Essas taxas de juros mais
baixas fizeram com que os preços dos bens de capital subissem. Como consequência, ocorreu uma bolha
imobiliária em vários países mediterrâneos.
O crédito era farto e barato, e foi utilizado para comprar e construir
imóveis. Essa bolha imobiliária foi
alimentada pela política monetária expansionista que durou até 2008, quando a crise
global levou a um colapso do hiperdimensionado mercado imobiliário.
Mais importações e um maior padrão de vida
Os países
mais inflacionistas herdaram uma moeda forte da Alemanha e, consequentemente,
puderam desfrutar um volume maior de importações e um mais alto padrão de
vida. Ainda que os governos dos países
latinos não tenham reduzido seus gastos significativamente, o euro permaneceu
relativamente forte nos mercados internacionais durante os primeiros anos de
sua existência. O euro se manteve forte
devido ao prestígio do Bundesbank, à configuração institucional do BCE e às
robustas exportações alemãs (e de outros países do norte europeu), as quais
aumentaram a demanda por euros.
A Alemanha
sempre teve a tradição de apresentar superávits em sua conta corrente — isto
é, suas exportações excedem as importações devido à sua alta eficiência e
competitividade. Os alemães pouparam e
investiram, aprimorando sua produtividade.
Ao mesmo tempo, os salários aumentaram moderadamente. O resultante superávit de exportações
indicava que os alemães utilizavam essas reservas estrangeiras para viajar e
investir em outros países. Os alemães
adquiriram ativos em países estrangeiros que poderiam ser vendidos em caso de
emergência. O resultado foi uma
valorização do marco em relação aos outros países do mundo.
Ao longo
dos anos, o marco alemão tendia a se apreciar devido aos aumentos de
produtividade que ocorriam na Alemanha.
O marco se tornou o símbolo do milagre econômico alemão. A valorização do marco nos mercados
internacionais de câmbio barateou as importações para os alemães. Commodities e outros insumos necessários para
os processos de produção de alta qualidade da Alemanha puderam ser importados a
preços baixos. Da mesma maneira, férias
e investimentos em outros países também se tornaram baratos. O padrão de vida dos alemães aumentou
substancialmente. Esse mecanismo de
aumento da produtividade levando a mais exportações e gerando uma apreciação da
moeda ainda ocorre na Alemanha da União Monetária Europeia.
Mas na
região sul da UME, ocorre o oposto. Lá,
a produção é menos eficiente, em termos relativos. O consumo aumentou no sul da Europa após a
introdução do euro, e foi estimulado pela redução artificial das taxas de
juros. A poupança e o investimento não
aumentaram tanto quanto aumentaram na Alemanha, de modo que os aumentos
na produtividade praticamente não ocorreram.
Ademais, o dinheiro impresso pelo BCE foi primeiramente para os países
periféricos, onde serviu para elevar os salários. Os aumentos salariais no sul da Europa foram
maiores do que os da Alemanha, o que levou a uma perda de competitividade
daquela região, a um excesso de importações em relação às exportações e a uma
tendência de depreciação da moeda.
Como
podemos ver nos gráficos 2 e 3, a competitividade dos países do mediterrâneo e
da Irlanda diminuiu substancialmente desde a introdução do euro. Ao mesmo tempo, a competitividade da Alemanha
e até mesmo da Áustria aumentou. Desde a
introdução do euro, a competitividade da Alemanha, mensurada pelo indicador de
custos por unidade de trabalho (custos trabalhistas divididos pela produção
total) fornecido pelo BCE, aumentou 13,7% desde o momento da implementação do euro
até 2010. Durante esse mesmo período,
Grécia, Irlanda, Espanha e Itália perderam competitividade: 11,3%, 9,1%, 11,2%
e 9,4%, respectivamente.[7] De acordo com os números fornecidos pelo BCE,
a Alemanha, que apresentou um indicador de competitividade de 88,8 no primeiro
trimestre de 2010, é substancialmente mais competitiva que a Irlanda com 118,7,
a Grécia com 108,8, e Espanha e Itália com 111,6 cada.

Gráfico 2: Indicadores de
competitividade baseados em custos da unidade de trabalho (salários dividido
pela produção total) para países do Mediterrâneo e a Irlanda, 1995-2010 (1º
trimestre de 1999 = 100)
Fonte: BCE (2010)

Gráfico 3: Indicadores de competitividade baseados em
custos da unidade de trabalho (salários dividido pela produção total) para Bélgica, Holanda, Áustria e Alemanha,
1995-2010 (1º trimestre de 1999
= 100)
Fonte: BCE 2010
Antes da
introdução do Euro, países latinos que apresentavam salários crescentes,
sindicatos poderosos e mercado de trabalho inflexível também perderam
competitividade em relação à Alemanha.
Entretanto, antes da moeda única, tais países recorriam à inflação
monetária e à desvalorização de suas moedas para readquirir competitividade
internacional, pois tais práticas geravam uma redução dos salários reais. Ao mesmo tempo, faziam com que as importações
se tornassem mais caras.
Quando o
marco alemão foi substituído pelo euro, o excesso de exportações da Alemanha
foi parcialmente compensado pelo excesso de importações das nações do sul. Superávits e déficits comerciais nas nações
da zona do euro podem ser vistos no gráfico 4.

Gráfico 4: Balança comercial de
2009 (em milhões de euros)
Fonte: Eurostat 2010
No gráfico
5, pode-se ver que o superávit da balança comercial da Alemanha aumentou nos
últimos anos em decorrência do aumento de competitividade estimulado pelo
aumento do déficit da balança comercial de outros países. Com efeito, os superávits comerciais da
Alemanha mais do que compensaram os tradicionais déficits comerciais de
Portugal, Espanha, Itália e Grécia.

Gráfico 5: Balança comercial
1994-2009 (em milhões de euros)
Fonte: Eurostat 2010
Déficits
comerciais duradouros impactam negativamente o valor da moeda. Um déficit na balança comercial implica que
há um superávit em outras partes do balanço de pagamentos. Pode haver transferências financeiras para o
país deficitário (com o dinheiro entrando na rubrica 'conta capital'), ou o
país pode simplesmente aumentar seu endividamento externo. Neste caso, se não houver uma quantidade substantiva
de transferências financeiras, um déficit comercial implica que está havendo
uma acumulação de dívidas deste país em mãos (públicas ou privadas)
estrangeiras.
Por esse
prisma, não é irrelevante se as dívidas estão em posse de um cidadão desse país ou
de um estrangeiro. As dívidas do governo
japonês estão majoritariamente em mãos de cidadãos ou de bancos japoneses. As dívidas dos governos grego e espanhol
estão majoritariamente em posse de bancos estrangeiros por causa de seus
déficits comerciais. Isso ocorre porque,
quando há um déficit comercial, o país estrangeiro (o exportador) recebe moeda
do país importador, a qual ele utiliza para reinvestir neste país importador —
e geralmente o investimento se dá em títulos do governo deste país. Os gregos não pouparam o suficiente para
poder comprar os títulos da dívida de seu próprio governo, preferindo ao invés
disso gastar importando mais bens e serviços do que exportavam. Os bancos estrangeiros financiaram essa farra
consumista comprando títulos da dívida grega, fornecendo desta forma o dinheiro
necessário para as importações.
O governo
japonês pode forçar seus bancos a comprar seus títulos, ou impedir que eles os
vendam, porque estão dentro da jurisdição japonesa. Já o governo grego não pode obrigar os bancos
estrangeiros a manter em sua posse os títulos do governo grego. Tampouco pode o governo grego obrigar os
bancos estrangeiros a continuar comprando títulos gregos para assim continuarem
financiando seu déficit orçamentário. Se
os bancos estrangeiros pararem de comprar — ou começarem a vender — títulos do
governo grego, o governo poderá ter de dar o calote em sua dívida. Desta forma, déficits comerciais e o
resultante aumento da dívida externa por eles gerado podem deixar uma moeda
vulnerável, ao passo que superávits comerciais e posições externas líquidas
tendem a tornar uma moeda mais forte.
A evolução
do euro empalidece quando comparada a qual teria sido a evolução do marco
alemão. Importações e o padrão de vida
na Alemanha não aumentaram tanto quanto teriam aumentado caso o marco alemão fosse mantido. Com efeito, as vendas
reais no varejo na Alemanha foram menores do que as vendas ocorridas em outras
nações industrializadas, como pode ser visto no gráfico 6.

Gráfico 6: Vendas no varejo na
Alemanha, nos EUA, na França e no Reino Unido (1996 = 100)
Fonte: Statistisches Bundesamt (Departamente
de Estatísticas Nacionais), FRED St. Louis, INSEE (2010)
Por outro
lado, as vendas no varejo dos países mediterrâneos aumentaram e só começaram a
cair com a crise econômica de 2008. De
2000 a 2007, as vendas no varejo da Espanha aumentaram mais de 20%.

Gráfico 7: Vendas nos varejo da
Espanha (2000 = 100)
Fonte: INE (2010)
No sul da
Europa, as importações permaneceram mais baratas do que provavelmente seriam
sem a união monetária. Mesmo com os
países inflacionistas tendo perdido competitividade em relação à Alemanha, as
importações não encareceram tanto quanto teriam encarecido caso estes países
continuassem utilizando suas próprias moedas.
O resultado dessa combinação entre importações baratas e taxas de juros
baixas foi a explosão do consumo financiado pelo crédito barato, principalmente
nos países do sul.
Ganhos por meio da redistribuição monetária
Quando o
euro foi introduzido, não demorou muito para que os desequilíbrios aparecessem
e se acumulassem. O déficit em conta
corrente dos países do sul da Europa aumentou em decorrência de uma explosão no
consumo (mais importações), o que fez com que o setor de exportação da Alemanha
prosperasse. Uma valorização do marco alemão
teria gerado problemas apara os exportadores alemães e reduzido o superávit em
conta corrente da Alemanha. Com o euro,
isso não mais era possível.
Novos euros
adentraram a Alemanha advindos da expansão induzida pelo crédito fácil nos
países do sul, os quais passaram a sofrer um sensível aumento nos preços. Um processo de redistribuição começou a
ocorrer à medida que o Banco Central Europeu continuava financiando e
acomodando o consumismo nestes países. O
dinheiro recém-criado ia primeiro para os países do sul e de lá era utilizado
para importar produtos alemães.
No gráfico
8, pode-se ver o crescimento do agregado monetário M3 (excluindo o papel-moeda
em circulação) na Espanha, na Itália, na Grécia, em Portugal e na
Alemanha. Vê-se que a oferta monetária
de fato cresceu muito mais rapidamente nos países do Mediterrâneo. Espanha e Grécia, em especial, apresentaram
taxas de crescimento maiores que a Alemanha (linha azul mais grossa) durante os
prósperos anos do início da década de 2000 até 2008. Por exemplo, enquanto o M3 encolhia na
Alemanha em 2002, na Espanha e na Itália ele apresentava um crescimento de dois
dígitos. Em 2004, o crescimento do M3 na
Alemanha manteve-se ao redor de 2%. Nos
países mediterrâneos, esse crescimento foi no mínimo o dobro. Quando a bolha imobiliária espanhola ficou
fora de controle em 2007, o M3 crescia a 20%, ao passo que na Alemanha ele
manteve um crescimento entre 5 e 8%.

Gráfico 8: Aumento percentual do
M3 (sem considerar a quantidade de dinheiro físico em circulação) na Espanha,
na Itália, na Grécia, na Alemanha e em Portugal
Fonte: Bundesbank, Banco Central da Espanha, Banco Central da Itália,
Banco Central de Portugal, Banco Central da Grécia (2010)
A
redistribuição por meio de diferentes taxas de crescimento da oferta monetária
gerou uma cultura de decadência. Esse
fenômeno foi semelhante à "maldição do ouro" que afetou a Espanha após a
descoberta do Novo Mundo, quando o novo dinheiro encontrado — isto é, o ouro
— fluiu maciçamente para o país. A
Espanha utilizou todo esse ouro para importar bens e serviços (principalmente
militares) do resto da Europa. Como
consequência, os exportadores europeus passaram a ter altos lucros e a
indústria espanhola foi se tornando cada vez mais ineficiente.
O mesmo
aconteceu com a zona do euro. O dinheiro
criado foi injetado a uma taxa mais alta nas nações do sul da Europa. Após construir seus imóveis, o dinheiro foi
espalhado para o resto da zona do euro, à medida que a Espanha importava bens da
Alemanha e de outras nações do norte. O
déficit em conta corrente dos países mediterrâneos aumentou.
Se a
injeção monetária tivesse sido um evento único, feito de uma só vez, a situação
rapidamente estaria estabilizada. Os
preços teriam aumentado na Alemanha em relação aos países do sul à medida que
estes utilizassem seus euros para comprar produtos alemães. Preços e salários mais baixos nos países do
sul teriam tornado estes países mais eficientes e reduzido seu déficit em conta
corrente.
Mas não foi
permitido que tal reajuste ocorresse. O
dinheiro recém-criado continuou fluindo mais rapidamente para as nações
mediterrâneas, indo para os consumidores e governos daqueles países, impedindo
que os preços daquela região diminuíssem (preços que estavam relativamente mais
altos que os da Alemanha). O fluxo de
produtos da Alemanha para os países do sul continuou. O déficit em conta corrente foi mantido e os
países do sul permaneceram relativamente improdutivos enquanto iam se tornando
acostumados a um nível de consumo que não teria sido possível sem essa criação
de dinheiro a seu favor. A inflação
monetária do sul foi exportada para a Alemanha, ao passo que a estabilidade
monetária da Alemanha foi importada pelo sul.
Os preços nos países do sul não aumentaram tanto quanto teriam aumentado
sem essas importações da Alemanha. Os
preços na Alemanha aumentaram mais do que teria aumentado sem essas exportações
para o sul da Europa.
Em um tipo
de imperialismo monetário, os bancos e os governos dos países do sul criavam
dinheiro que os alemães tinham de aceitar. Peguemos um exemplo: o
banco central da Grécia imprime dinheiro para financiar o salário de um
político grego. O político grego compra
uma Mercedes. (Esse político pode também
comprar um tanque. Com uma população de
onze milhões, a Grécia é o maior importador de armas convencionais em toda a
Europa. Os gastos militares da Grécia,
em porcentagem de seu PIB, são os maiores dentre todos os países da União Europeia.)
Em um
padrão-ouro, o ouro sairia da Grécia e iria para a Alemanha em troca dos bens
importados. Em um sistema de moedas de
papel flutuantes, um político grego teria de trocar seu recém-impresso dracma
por um marco alemão; o marco alemão se valorizaria em relação ao dracma e as
próximas férias na Grécia do alemão que trabalha na fábrica da Mercedes seriam mais
baratas. Já no caso do euro, o
papel-moeda flui para a Alemanha, onde ele tem de ser aceito, pois é de curso
forçado, e apenas eleva os preços.
[1] Como afirmou
Connolly em The Rotten Heart of Europe, p. 4, em 1995: "Para a elite
francesa, o dinheiro não é o lubrificante da economia, mas sim a mais poderosa
alavanca de poder. Para eles, a captura
do Bundesbank é, portanto, o prêmio máximo a ser obtido nessa guerra monetária
europeia".
[2] Citado em Baader, p. 207.
[3] Ibid., p. 208. Ver também Connolly, The Rotten Heart of Europe, p. 386,
[4] Ver Hans-Werner Sinn and Holger Feist,
"Eurowinners and Eurolosers: The Distribution of Seignorage Wealth in the EU," European Journal of Political Economy 13
(1997): pp. 665-689. A socialização da renda advinda da senhoriagem dentro do sistema do
euro é especificada no Artigo 32 do Protocolo 18 do Estatuto do Sistema Europeu
dos Bancos Centrais e dos Bancos Centrais Europeus do Tratado de Maastricht.
[5] Wilhelm Hankel, Wilhelm Nölling, Karl A. Schachtschneider and Joachim
Starbatty, Die Euro-Illusion. Warum Europa scheitern muß (Hamburg:
Rowohlt, 2001), p. 94.
[6] Teoricamente, países como a Grécia poderia dar um calote sem sair da
UME. Entretanto, isso seria considerado
uma catástrofe política e provavelmente implicaria o fim de qualquer progresso
rumo a um estado central europeu.
[7] Não há dados disponíveis para Portugal. Deve-se observar que não se pode analisar
esses dados ao pé da letra, pois podem conter erros substanciais. Os dados apresentam um alto nível de
agregação. Não obstante, dados podem
indicar tendências.