segunda-feira, 18 jun 2012
Economistas
e jornalistas frequentemente citam os perigos da
dívida pública externa —
em contraposição à dívida interna, que normalmente é considerada menos
preocupante. O Japão é um bom
exemplo. O país possui uma enorme dívida
pública em relação ao PIB, de mais de
200%. Mas argumenta-se que esta enorme porcentagem
não seria um problema porque os japoneses poupam muito e os títulos do governo
japonês estão majoritariamente nas mãos de cidadãos japoneses. Seria, portanto, uma dívida essencialmente
interna.
Em
contrapartida, a Espanha, que possui uma relação dívida/PIB muito mais baixa
(espera-se que ela atinja 80% ao final deste ano), é considerada muito mais
instável pelos investidores. Um dos
motivos apresentados para a fragilidade espanhola é que aproximadamente metade
dos títulos do governo espanhol está nas mãos de estrangeiros.[1]
À
primeira vista, é de se duvidar deste raciocínio. De fato, sendo eu um indivíduo que mora na
Espanha, pouco me importa se o empréstimo que irei obter será de um amigo
espanhol ou de um amigo alemão. Por que
seria diferente para o governo espanhol?
Por que se importar se os empréstimos virão de espanhóis ou de alemães?
Governos,
em última instância, se baseiam na violência física ou na ameaça de violência
física. O estado possui o monopólio da
violência dentro de um determinado território.
E é na violência que jaz a diferença.
Uma dívida cujos títulos estejam em posse de cidadãos nacionais gera
renda para estes cidadãos, os quais, por sua vez, são tributados pelo governo
nacional, que possui o monopólio da violência.
Isto significa que parte dos juros que o governo paga sobre a dívida
interna volta para o governo por meio de impostos. Já os juros pagos sobre a dívida externa vão
para o bolso de cidadãos estrangeiros, os quais são tributados pelos governos
destes outros países. Sendo assim, o
governo nacional nada ganha no final.
Mas
há outro e ainda mais persuasivo motivo por que o monopólio da violência é importante:
eu não posso forçar nem o meu amigo espanhol nem o meu amigo alemão a rolarem
seu empréstimo para mim quando ele maturar.
Embora o governo nacional não possa forçar aqueles indivíduos fora do
seu território a rolarem os empréstimos que concederam, ele pode forçar cidadãos e instituições dentro de sua jurisdição a fazê-lo. De uma forma mais sutil, governos podem
pressionar seus financiadores tradicionais, os bancos, a rolarem a dívida
pública.
Bancos
e governos vivem em uma relação de simbiose.
Os governos concederam aos bancos o privilégio de operarem com reservas
fracionadas, e deram ao sistema bancário garantias implícitas e explícitas de
socorro em caso de problemas. Um apoio
adicional é fornecido por meio de um banco central controlado pelo governo, o
qual pode ajudar em casos de problemas de liquidez. Adicionalmente, os governos controlam o
sistema bancário por meio de uma miríade de regulamentações. Em troca do privilégio de poderem criar
dinheiro do nada através do mecanismo das reservas fracionárias, os bancos
utilizam este poder para financiar os governos comprando os títulos de sua
dívida.
Por
causa deste intenso relacionamento e do monopólio estatal da violência, o
governo japonês pode pressionar seus bancos a rolarem a dívida pendente. Ele também pode pressioná-los a não saírem
vendendo abruptamente os títulos desta dívida (o que faria com que seus preços
caíssem e, consequentemente, os juros subissem), bem como estimulá-los a
comprarem ainda mais dívida. No entanto,
o governo japonês não pode obrigar os estrangeiros a se absterem de vender os
títulos desta dívida ou a comprarem ainda mais.
E é aí que está o perigo para os governos que possuem uma alta
porcentagem de dívida em mãos estrangeiras, como é o caso do governo espanhol.
Ao
passo que os bancos e os fundos de investimento espanhóis irão obedecer ao
governo da Espanha e não irão inundar o mercado com títulos da dívida do
governo espanhol, as instituições estrangeiras podem fazer o oposto.[2] E o governo espanhol não pode "persuadi-las"
ou "forçá-las" a não agir assim, uma vez que elas estão localizadas em outras
jurisdições. A única coisa que o governo
espanhol pode fazer — e os governos da periferia do euro já estão fazendo — é
pressionar os políticos destes países credores a pressionarem seus próprios
bancos a manterem esses títulos da dívida em seus balancetes, e rolá-los em vez
de vendê-los.
O
endividamento externo também representa um perigo para o governo dos EUA. Bancos centrais estrangeiros, como o Banco
Central da China ou o Banco Central do Japão, estão em posse de somas
substantivas de títulos da dívida do governo americano. A ameaça — crível ou não — de despejar
estes títulos no mercado (e, com isso, levar a um grande aumento dos juros nos
EUA) pode dar a estes governos, especialmente o chinês, alguma alavancagem
política.
E o déficit na balança comercial?
No
que diz respeito à estabilidade de uma moeda ou à sustentabilidade da dívida de
um governo, a balança comercial (a diferença entre exportações e importações de
bens e serviços) também é importante.
Um
superávit de exportações implica que um país está acumulando ativos
estrangeiros — afinal, exportações trazem ao país moeda estrangeira, a qual
tende a ser reinvestida no seu país de origem, normalmente em títulos da dívida
do governo de lá. À medida que ativos
estrangeiros são acumulados, a moeda nacional tende a ficar mais forte. Ativos estrangeiros podem ser utilizados em
momentos de crise para financiar a reparação de estragos. O Japão, novamente, nos fornece um bom
exemplo. Após o terremoto de março de
2011, ativos
estrangeiros foram repatriados para o Japão e foram utilizados para pagar
as importações necessárias. Cidadãos
japoneses venderam seus dólares e euros em troca de produtos de infraestrutura,
com os quais repararam os estragos ocorridos no país. Não houve nenhuma necessidade de pedir
empréstimos em moeda estrangeira, o que pressionaria o iene.
O
superávit comercial do Japão também se manifesta no balancete do Banco Central
do Japão. Ao exportarem, os exportadores
japoneses são pagos em moeda estrangeira, a qual é comprada pelo Banco Central
do Japão em troca de ienes para os exportadores. Estas reservas estrangeiras podem ser
utilizadas em uma situação de crise para reduzir a dívida pública ou para
defender o valor da moeda no mercado de câmbio.
Com efeito, se considerarmos as reservas estrangeiras em posse do Banco
Central do Japão (de mais de US$ 1 trilhão), a dívida líquida de seu governo
cai 20%. Sob essa ótica, superávits
comerciais tendem a fortalecer uma moeda e a sustentabilidade da dívida pública
do país.
Por
outro lado, déficits comerciais — por um mecanismo inverso ao explicado acima
— resultam em uma maior quantidade de dívida em mãos de estrangeiros. Um país com vários anos de déficits em sua
balança comercial tende a ficar exposto a uma grande quantia de endividamento
externo, algo que pode gerar problemas para o governo no futuro, como também
discutido acima.
A
balança comercial pode também ser um indicador da competitividade de uma
economia e, indiretamente, da qualidade de sua moeda. Quanto mais competitiva a economia, mais o
governo tende a conseguir se financiar por meio apenas da expropriação da
riqueza real criada por esta economia competitiva, de modo que ele não terá
problemas com o endividamento público.
Adicionalmente, quanto mais competitiva a economia, menores as chances
de os problemas gerados pelo endividamento público serem resolvidos por meio da
impressão de dinheiro. Ao passo que um
superávit comercial é um sinal de competitividade — pois a economia estaria
produzindo mais do que consome —, um déficit comercial pode ser um sinal de falta de competitividade, pois a economia
estaria produzindo menos do que consome.
Com efeito, déficits comerciais duradouros, além de serem um sinal de falta
de competitividade, frequentemente andam de mãos dadas com um alto
endividamento público, o que exacerba a falta de competitividade da economia.
Economias
com salários elevados e inflexíveis — como as do sul da Europa — podem ser
pouco competitivas, e em consequência apresentarem déficits comerciais. A falta de competitividade é sustentada pelos
altos gastos do governo. Os governos do
sul da Europa contrataram um número excessivo de pessoas para ocuparem sinecuras
em seus inchados setores públicos, criaram generosos esquemas de aposentadoria
precoce, e ofereceram auxílios-desemprego em massa, aliviando desta forma as
consequências do desemprego gerado por um mercado de trabalho inflexível. O resultado deste aumento nos gastos públicos
foi não apenas uma falta de competitividade e um déficit comercial, mas também
um déficit orçamentário para os governos.
Consequentemente, déficits orçamentários e comerciais frequentemente
andam lado a lado.
Na
periferia europeia, as importações foram pagas com empréstimos concedidos por
outros países da zona do euro. O déficit
comercial destes países não pode durar para sempre, pois o endividamento
público iria aumentar para sempre. Uma
situação de contínuo déficit comercial, como o da Grécia, pode ser interpretada
como um falta de vontade política para se reformar o mercado de trabalho e, com
isso, readquirir competitividade. Por
conseguinte, contínuos déficits comerciais podem causar uma desvalorização da
moeda ou uma venda em massa dos títulos públicos deste país. Neste sentido, o superávit comercial da
Alemanha sustenta o valor do euro, ao passo que os déficits comerciais da
periferia europeia diluem seu valor.
Em
suma, uma dívida pública alta (em mãos estrangeiras) e contínuos déficits
comerciais são sinal de uma moeda fraca.
O governo pode ter de dar um calote ou de recorrer à impressora de
dinheiro para tentar se livrar destes problemas. Por outro lado, uma dívida pública baixa (em
mãos estrangeiras) e contínuos superávits comerciais tendem a fortalecer uma
moeda.[3]
[1] Outro
importante motivo é que o governo espanhol não pode utilizar a impressora de
dinheiro sempre que quiser, pois ela é compartilhada por outros governos da
zona do euro, os quais podem protestar.
Já o governo do Japão, por outro lado, controla seu banco central e,
consequentemente, a impressora de dinheiro.
[2] Vale
notar que os títulos recém-emitidos da dívida espanhola estão exclusivamente em
mãos de bancos espanhóis, pois outros investidores estão cada vez menos
interessados em financiar um governo que simplesmente se recusa a implantar
medidas de austeridade reais e efetivas.
[3] Neste
ponto, vale ressaltar a importância de um orçamento equilibrado. Caso os déficits orçamentários de um país (por exemplo, o Brasil) fossem eliminados,
os déficits comerciais fariam com que
os estrangeiros, em vez de aplicarem o dinheiro de suas exportações em títulos
do governo brasileiro, necessariamente direcionassem esse dinheiro para o setor
produtivo brasileiro, aumentando a riqueza nacional. Déficits comerciais não ampliariam a dívida
em mãos estrangeiras, de modo que todo o resultante investimento estrangeiro ampliaria a
poupança e a acumulação de capital do país. O problema, portanto, não é a existência de déficits comerciais, mas sim a existência de déficits orçamentários do governo. [N. do .T.]