quarta-feira, 12 set 2012
Empreendo a difícil e
politicamente incorreta tarefa de tentar defender os direitos dos estados norte-americanos
do sul durante o período que ficou conhecido como o da "guerra civil" americana
(1861-1865). Difícil porque o assunto
encontra-se impregnado de um senso-comum que costuma desqualificar e impedir a
exposição de outra interpretação e de visões distintas acerca dos fatos
históricos. Recorrentemente, os que ousam tentá-lo são tachados de racistas, de
escravistas e de preconceituosos, sendo injustamente desmerecidos. Por este
motivo, em respeito ao trabalho destes acadêmicos, propus-me a tentar prestar
alguns esclarecimentos para o leitor, expondo-lhe uma concepção não usual sobre
o assunto, a fim de que tenha acesso a outros lados da questão.
Começo, pois, por me referir a
um grande erro, perpetrado pelo uso incorreto da terminologia "guerra civil".
Nunca houve uma guerra civil nos Estados Unidos da América. O que ocorreu foi
uma guerra de secessão. A diferença é grande. Numa guerra civil, dois ou mais
grupos rivais disputam o controle de um país, como foi, verbi gratia, o notável episódio espanhol, em que republicanos
comunistas e nacionalistas franquistas beligeraram durante três anos pelo
controle do estado espanhol. No caso americano, os estados do sul não lutaram
porque queriam o domínio do país; eles lutaram porque queriam se separar do
país. Os sulistas não almejavam comandar a União em Washington; seu real desejo
era se separar da União. O mesmo pode ser dito acerca da Revolução
Farroupilha (1835-1845) no Rio Grande do Sul.
Elucidada essa questão de mera
nomenclatura, podemos, destarte, nos aventurar pela problemática jurídica em
torno da guerra de secessão americana. Ocorre que, ao contrário do que muitos
pensam (ou são levados a pensar), os estados do sul tinham ao seu dispor teses
jurídicas que salvaguardavam o seu direito de se separar da União federal. Não
se olvide que a federação era uma criação relativamente recente na época, e que
não havia nenhum "manual" universitário que a definisse e impedisse a criação
de teses contrárias. Analisemos, então, a situação.
Segundo as aulas de Teoria do
Estado ou de Direito Constitucional I, qual é a diferença entre a federação
estadunidense e a brasileira (esta última sempre vista como sendo mais
autoritária)? O Brasil era um estado centralizado que se "federalizou", ao
passo que as treze colônias americanas, após uma guerra em conjunto pela sua
independência, eram treze estados distintos, que, por tratados de direito
internacional, aceitaram formar uma confederação e, ad posteriori, uma federação constitucional (a qual, é sabido,
podemos meritar aos esforços argumentativos de Hamilton, Madison e Jay).
A consequência desse processo
ímpar de formação é que os estados americanos gozam de uma autonomia
incomparável com a dos entes federativos estaduais brasileiros. A organização
política idealizada pelos founding
fathers para os EUA rege-se pelo princípio de que tudo aquilo que não for
competência expressa da União cabe aos Estados, o que pode ser
inconfundivelmente atestado pela leitura da décima emenda.[1]
Esse princípio foi de vital
importância para a argumentação dos estados do sul, pois, eis que, ao contrário
da constituição brasileira (CF art. 1º, caput),
a carta magna americana não prevê em nenhum de seus artigos que a União é
indissolúvel. Uma vez que a constituição é silente em relação à possibilidade
de secessão, e tudo aquilo que não estiver na mesma é de competência dos estados,
deduziu-se que os estados teriam o direito de se separar da União, à qual eles
aderiram por livre e espontânea vontade.
Além disso, os estados de
Virginia, New York e Rhode Island, ao assinarem a constituição americana —
aceitando, portanto, participar da federação —, incluíram uma cláusula em suas
adesões que lhes permitiria se separar da União no caso de o novo governo
tornar-se "opressor". Ora, outro princípio que rege a federação americana é o
que diz que não há, nem pode haver, direitos diferentes entre os estados, os
quais devem ser radicalmente iguais em dignidade e direitos. Deste modo,
podemos concluir que absolutamente todos os estados teriam o direito, conferido
aos três supracitados, de se apartar da União.
Hoje, a visão de que as
federações são indissolúveis é incontestável e pacífica na doutrina;[2]
mas nem sempre foi assim. Até aquela época, o conceito do que seria uma federação
ainda estava sendo construído. A Guerra de Secessão americana foi responsável
por sepultar e impedir o ressurgimento de qualquer tipo de interpretação que
desse azo à liberdade dos estados integrantes da federação. Ela consolidou uma
unificação nacional forçada e uma centralização de poderes na União até então
nunca antes vista. A partir desse momento, os estados passariam a ser encarados
como uma mera subdivisão política de uma única e indivisível nação. Isto é algo
de surpreender, pois esta concepção nacionalista era praticamente inexistente
na América do Norte daquela época. Prova disso é que a própria consciência da
população americana, juntamente com o modo como se referiam ao seu país, mudou.
Anteriormente falava-se em "THESE United States", passando-se a um "THE
United States"[3].
Vale dizer, o sentimento nacionalista e a própria "nação americana" estavam
sendo inventados naquele momento; mais ou menos na mesma época em que um
processo semelhante estava ocorrendo no Brasil, com o movimento romântico do II
Reinado (1840-1889) e o esforço destes autores em criar uma identidade nacional
brasileira.[4]
Penso, pois, ter ficado claro a
questão de que, nos seus aspectos jurídicos, os estados do sul tinham sim um
embasamento para a sua decisão de se separar. Mas e quanto à questão da escravidão,
que sempre penetra o debate acerca da secessão? Não há dúvidas de que a
escravidão é um fenômeno hediondo e que atenta contra o direito natural.[5]
Contudo, o que estava em debate não era se a escravidão era certa ou não, mas o
direito constitucional de secessão. Aliás, a escravidão, igualmente, jamais
fora o debate central naquela época. A guerra não foi travada para libertar os
escravos e, talvez com a exceção do Haiti, os EUA foram o único país da América
que "precisou" de uma guerra para libertar seus escravos... Todos os demais,
Brasil incluso, o fizeram de maneira pacífica (o que não quer dizer,
evidentemente, que não houve ao longo da História louváveis resistências
negras).
O real motivo pelo qual a
guerra foi travada foi a discordância entre os projetos políticos dos estados
do norte e do sul americanos. O sul, agroexportador, pretendia o
estabelecimento de uma nação pró-livre comércio, com baixas tarifas
alfandegárias, ao passo que o norte, mais voltado para uma incipiente produção
industrial, intentava proteger seus mercados internos. Uma vez que a União
comanda a política externa do país, ambos os lados pelejavam no Congresso
propugnando seus interesses. O norte, entretanto, levava vantagem, pois
dominava ambas as casas do Congresso, devido a um fato curioso que merece ser
referido.
O voto para a House of Representatives (Câmara dos
Deputados) é proporcional, como todos os leitores hão de saber, mas, como os
negros não eram considerados cidadãos, os estados do norte
exigiam que eles não fossem contados como população, de modo que os estados do
sul tivessem menos deputados. Um consenso foi encontrado quando os estados do
norte concordaram em computar a população negra dos estados do sul como três
quintos da branca, ou seja: 1 negro = 3/5 de um branco. Mesmo assim, os estados
do sul continuaram em minoria no legislativo federal.[6]
A situação tornou-se
incontornável quando da eleição do candidato republicano Abraham Lincoln em
1860. A vitória deste político racista[7]
e abolicionista (por mais incoerente que possa parecer) fez com que a Carolina
do Sul, seguida depois por Flórida, Texas, Alabama, Georgia, Mississipi e
Louisiana, declarassem sua independência, formando os Estados Confederados da
América. O resto é história.
Lincoln lutou incansavelmente
para preservar a União (e não para libertar os escravos), deixando um saldo de
mais de 600.000 mortos (baixas quatro vezes maiores que as da guerra do Vietnã
e três vezes as da I Grande Guerra Mundial).[8]
Ele saiu vitorioso, mas morreu sem sabê-lo: faleceu assassinado antes do fim da
guerra, enquanto assistia à peça Our
American Cousin no teatro Ford de Washington, aos 14 de abril de 1865.
[1]"X Amendment: The powers not delegated to the
United States by the Constitution, nor prohibited by it to the States, are
reserved to the States respectively, or to the people."
[2] Por todos, conferir: Dallari, Dalmo de Abreu.
"Elementos de Teoria Geral do Estado". 28ª edição. Ed. Saraiva. 2009. Pág. 259.
"Na federação não existe direito de
secessão. Uma vez efetivada a adesão de um Estado este não pode mais se
retirar por meios legais. Em algumas Constituições é expressa tal proibição,
mas ainda que não o seja, ela é implícita." [Grifo no original].
[3] Katcher, Phillip. "The Civil War
Day by Day". 2nd edition. Chartwell Books, Inc. 2010. Pág. 189.
[4] Cereja, William Roberto e Magalhães, Thereza
Cochar. "Literatura Brasileira". 3ª edição. Editora Atual. 2005. Pág. 201 e
202.
[5] Para uma condenação da escravidão, conferir:
carta-encíclica Catholicae Ecclesiae (1890),
de Sua Santidade o Papa Leão XIII (1878-1903).
[6] Woods Jr., Thomas E. "The
Politically Incorrect Guide to American History". 1st edition.
Regnery Publishing, Inc. 2004. Pág. 18.
[7] Conferir, por todos, as teses de Lerone
Bennett Jr.; "Forced
into Glory: Abraham Lincoln's white dream" e Thomas J. DiLorenzo, The
Real Lincoln: A New Look at Abraham Lincoln, His Agenda, and an Unnecessary War
e Lincoln
Unmasked: What You're Not Supposed to Know About Dishonest Abe
Em um discurso de 1848, Lincoln chegou a
declarar:
"I will say then that I am not, nor ever have
been in favor of bringing about in any way the social and political equality of
the white and black races, that I am not nor ever have been in favor of making
voters or jurors of negroes, nor of qualifying them to hold office, nor to
intermarry with white people; and I will say in addition to this that there is
a physical difference between the white and black races which I believe will
forever forbid the two races living together on terms of social and political
equality. And inasmuch as they cannot so live, while they do remain together
there must be the position of superior and inferior, and I as much as any other
man am in favor of having the superior position assigned to the white race."
"Digo, portanto, que não sou, nem jamais fui, a
favor de criar, de qualquer maneira que seja, a igualdade social e política das
raças branca e preta; que não sou, nem nunca fui, a favor de transformar negros
em eleitores ou jurados, nem de habilitá-los a exercer cargos públicos, nem de
permitir seu casamento com pessoas brancas; e direi, adicionalmente, que há uma
diferença física entre as raças branca e preta que, creio eu, irá para sempre
proibir as duas de viverem juntas em termos de igualdade social e política. E, visto que elas não podem conviver desta
forma, enquanto elas permanecerem em coexistência terá de haver a posição do
superior e do inferior, e eu, assim como qualquer outro homem, sou a favor de
que a posição superior seja atribuída à raça branca."
Abraham Lincoln, Debate with Stephen Douglas, Sept. 18, 1858, in Abraham Lincoln: Speeches
and Writings, 1832-1858 (New York: Library of America, 1989), pp.
636-637.
Por que, então, ele era abolicionista?
Acredita-se que ele desejava, destarte, reservar as novas terras do oeste para
os brancos; o que ajudaria a explicar, outrossim, os seus programas de
deportação de negros de volta para a África, em especial para a colônia
americana da Libéria, sob o pretexto de permitir-lhes "a volta para casa".
[8]http://en.wikipedia.org/wiki/United_States_military_casualties_of_war
e http://www.civilwarhome.com/casualties.htm.
Disponíveis em 26/02/2011.