segunda-feira, 25 mar 2013
Durante
a semana passada, analistas financeiros, economistas, políticos e correntistas
bancários ao redor de todo o mundo se mostraram ultrajados com o fato de que os
líderes europeus — mais especificamente os alemães, que atualmente comandam as
principais decisões tomadas em Bruxelas e Frankfurt — pudessem se mostrar tão
politicamente temerários, tão economicamente ignorantes e tão emocionalmente
insensíveis a ponto de violar a santidade dos depósitos bancários a fim de
financiar um pacote de socorro para o Chipre.
Esse
coro de condenações pode ter sido decisivo em dar ao parlamento cipriota a
confiança necessária para rejeitar de forma unânime as medidas impostas, na
esperança de que Berlim ou a Rússia — país natal de boa parte dos correntistas
dos bancos cipriotas — iriam se apressar em conceder o pacote de socorro sem
exigir contrapartidas.
A
decisão de tributar em 10% os depósitos acima de €100.000 e em 7% os depósitos
menores que €100.000 — desta forma, infligindo dor tanto nos correntistas mais
ricos quanto nos mais pobres — foi descrita quase que universalmente como uma
trapalhada histórica. No entanto, e
curiosamente, o erro foi justamente o fato de os burocratas da União Europeia
terem optado por fazer as coisas de modo aberto e explícito, de uma maneira que
não fosse camuflada por truques financeiros.
Em vez de optarem pela inflação monetária ou por simplesmente tomar
dinheiro de uns para repassar para outros, optaram por uma tributação que
incide diretamente sobre aqueles que estão sendo socorridos.
Como
escreveu
Detlev
Schlichter,
A maioria das pessoas nos países desenvolvidos já se
acostumou a não se preocupar com a saúde de seu sistema bancário. Elas foram, ao longo de décadas,
condicionadas a acreditar que todos os bancos, por serem regulados pelo estado,
são também protegidos pelo estado. Sim,
mas tal proteção ocorre justamente para que os bancos possam incorrer em ainda
mais riscos e se tornarem ainda mais alavancados. A "proteção" garantida pelo estado criou em
todos os países um sistema bancário monstruoso que está engolindo os recursos
do próprio estado. É impossível encarar
os eventos no Chipre como uma surpresa chocante em pleno 2013.
[...]
Perdoem-me, mas minha empatia pelos correntistas cipriotas
é bastante limitada. Se você é
correntista de um banco cipriota, independentemente de seus depósitos serem
maiores ou menores que €100.000, quem você acha que estava garantindo seus
depósitos? A Fada Madrinha? Você realmente pensou que em um país tão
minúsculo e com um sistema bancário tão bizarramente inchado — um sistema
bancário que por anos, e de forma muito pública, vinha adquirindo títulos do
governo grego! —, seu governo teria os recursos necessários para proteger
todos os correntistas? O socorro dos
dois maiores bancos do Chipre está estimado em 60% do PIB do país! E depois do que ocorreu na Grécia, você
realmente pensou que os alemães estariam dispostos a continuar pagando sozinhos
as contas de todos os outros países?
[...]
Se isso que está sendo proposto ao Chipre fosse realmente
uma expropriação, como muitos estão dizendo, então o ato de se abster dessa
expropriação — isto é, o expropriador simplesmente não fazer nada —
significaria que a 'vítima' estaria mantendo sua propriedade, certo? O problema é que se a União Europeia não
fizesse nada nesta situação, a maioria dos correntistas, inclusive aqueles que
têm menos de €100.000, seriam totalmente dizimados. A escolha dos cipriotas, portanto, não é
entre manter tudo ou pagar uma 'taxa', mas sim entre pagar uma 'taxa' ou perder
praticamente tudo.
A
realidade é que os correntistas do Chipre já estão pagando e continuarão pagando
por todos os tipos de pacotes de socorro e de estímulos. Seja por meio de uma baixa taxa de juros
sobre seus depósitos, seja por meio de inflação monetária, de maiores impostos,
de maiores custos para empréstimos, ou pelo acúmulo de uma insustentável dívida
pública, os cipriotas arcarão com o fardo de sua prodigalidade incorrida no
passado. Não há como escapar. O problema é que o plano de socorro criado
para o Chipre foi transparente demais, simples demais e direto demais para
sobreviver em um mundo dependente do engano, da fraude e da ofuscação. Ele já estava morto antes mesmo de ter sido
criado.
Ao
redor de todo o mundo, os bancos centrais estão ativamente buscando metas de
inflação propositadamente altas. Ora,
não seria a inflação monetária — que permite aos governos cobrir parte de seus
déficits por meio da criação de dinheiro, medida essa que transfere poder de
compra dos poupadores para os tomadores de empréstimo — uma espécie de imposto
sobre depósitos? No Reino Unido, por
exemplo, os britânicos estão vivendo há três anos com uma taxa de inflação de
preços de 3% e juros sobre seus depósitos de praticamente 0%. Espera-se que tal situação continue por pelo
menos mais dois anos. Ninguém
protesta. No entanto, um imposto de
6,75% no Chipre, a ser cobrado uma só vez sobre os depósitos, é visto como um
ato de suprema traição?
[Aqui vale um parênteses para fazermos um
comparativo com a situação brasileira.
Um brasileiro comum que colocou seu dinheiro na poupança ganhou, de maio
até hoje, 5,35%. Se ele tiver deixado o dinheiro parado na conta-corrente,
ele não ganhou nada. Se ele for do tipo que tem de transacionar diariamente com
dinheiro vivo — como fazem, por exemplo, trabalhadores informais —, ele
também não ganhou nada.
Neste mesmo período, o INPC (que mensura a inflação para as famílias mais
pobres) foi de 6,77%, os alimentos subiram 19,20%, os serviços encareceram
8,75%, e o IGP-M (que reajusta o aluguel e outros serviços, como TV a cabo)
subiu 8,29%.
Conclusão: aquele coitado que deixou o dinheiro na conta-corrente ou aquele que
precisa de grandes quantias de dinheiro vivo diariamente (porque é informal)
perdeu 16,10% do seu poder de compra em termos de alimentação, 7,70% em termos
de aluguel, e 8,05% em termos de serviços.]
Muitos
estão lamentando o fato de que, sendo o Chipre membro da zona do euro, seu
governo não pode inflacionar e desvalorizar sua moeda para sair desta
enrascada. Mas por que tal medida seria
moralmente superior? Perder uma parte de
seus depósitos não é diferente de perder poder de compra por meio da
desvalorização monetária e da inflação.
Ambas as medidas resultam em perda do poder aquisitivo. Pedir para um correntista abrir mão de parte
de seu dinheiro é uma atitude que ao menos lida com o problema de forma honesta
e imediata.
A
mesma dinâmica é válida para os fundos de um pacote de socorro. Suponha que a União Europeia aceite conceder
mais dinheiro para socorrer os bancos do Chipre. A consequência disso é que os cipriotas, no
futuro, terão de pagar os juros e a amortização dessa dívida. Portanto, ao aceitarem um pacote de socorro
hoje, eles irão sobrecarregar as gerações futuras com um fardo cuja criação não
foi responsabilidade delas. Como isso
seria justo e moralmente aceitável?
No
que mais, não é correto dizer que os correntistas dos bancos cipriotas —
muitos deles cidadãos russos em busca de um paraíso fiscal — são totalmente
inocentes e não foram cúmplices neste comportamento imprudente de seus
bancos. Segundo relatos da Bloomberg, ao
longo dos últimos cinco anos, os depósitos em euros nos bancos cipriotas apresentaram
um rendimento cumulativo superior a 24%, quase o dobro do rendimento
proporcionado por contas bancárias equivalentes na Alemanha. Os bancos do Chipre foram capazes de oferecer
tais retornos porque se expuseram a ativos de alto risco (como os títulos do
governo grego). O que há de tão errado
em pedir que aqueles que incorreram em altos riscos com o intuito auferir
retornos maiores aceitem perder algo quando suas decisões se revelam erradas?
Os
cidadãos do Chipre, como membros da União Europeia, tinham a opção de colocar
seus depósitos em qualquer banco da União Europeia. Mesmo se pagarem as taxas propostas no pacote
de socorro, os correntistas do Chipre — ao menos os mais antigos, aqueles que
mantiveram seu dinheiro nos bancos do Chipre por um longo período de tempo — terão ganhado
mais dinheiro por terem mantido sua poupança em aplicações de alto retorno nos
bancos do Chipre do que se tivessem depositado nos bancos alemães, cujo retorno
é bem menor. Sendo assim, que Rubicão é esse que estamos
atravessando?
O
temor internacional que predominou na semana passada não era de que o cidadão
comum do Chipre não mais fosse capaz de conseguir se sustentar, ou de que
mafiosos russos fossem perder parte de suas questionáveis fortunas, mas sim de
que uma corrida bancária no Chipre fosse levar a pânicos similares na Grécia,
na Espanha ou no mundo em
geral. Como resultado,
os problemas vivenciados por uma insignificante economia estão sendo vistos
como uma ameaça a todo o edifício financeiro global. Este é apenas mais um sinal de que nosso
sistema financeiro atual se baseia exclusivamente na confiança — algo que, no
final, pode ser totalmente efêmero.
Não
obstante os insuperáveis desafios matemáticos que aqueles países extremamente
endividados têm de enfrentar, os investidores seguem tendo a confiança de que
os bancos centrais serão capazes de engendrar um retorno ao crescimento
econômico sustentável sem criar uma inflação galopante e sem desencadear uma
nova recessão por meio de um prematuro aperto monetário. Isso, mesmo na melhor das circunstâncias, já
seria uma tarefa vultosa. Mas se um
pequeno problema como o Chipre foi capaz de abalar toda essa confiança, quão
robusta ela realmente é?
No
final, este episódio do Chipre deixa ainda mais evidente o quão deletéria é a
existência de seguros governamentais sobre depósitos bancários. Ao oferecer a ilusão de segurança sistêmica
aos depósitos bancários, as garantias governamentais acabam por encorajar a
imprudência tanto dos bancos quanto dos depositantes. Se você é um banqueiro e sabe que o governo
irá proteger os depósitos de seus correntistas, qual o seu estímulo em ser
prudente e não fazer apostas arriscadas no mercado? Se você é um correntista e sabe que o governo
está protegendo seu dinheiro, qual o seu estímulo em procurar se informar sobre
as atitudes de seu banco? Qual o seu
estímulo em procurar bancos prudentes e em evitar bancos arrojados? Mais ainda: qual o estímulo de um banqueiro
ser prudente em vez de arrojado?
Seguros
sobre depósitos fornecem aos bancos os mesmos incentivos que um seguro federal
contra enchentes fornece a imobiliárias que querem construir em zonas
suscetíveis a inundação. Aversão ao
risco e preferência dos consumidores são poderosas forças que poderiam trazer
uma extremamente necessária disciplina ao sistema bancário. No atual arranjo, o banco que for mais
prudente e honesto perderá mercado para os imprudentes e desonestos, pois estes
poderão por algum tempo oferecer retornos maiores.
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Leia tembém:
Sobre o assalto cipriota