Obs: O texto a seguir é a transcrição de um discurso
improvisado. Daí seu tom mais coloquial.
Gostaria de abordar aqui
algumas das principais objeções apresentadas ao anarquismo libertário. Tentarei responder a cada uma delas. Porém, antes de começar, não faria muito
sentido eu tentar retrucar objeções a uma determinada visão de mundo sem antes
oferecer alguma razão positiva para defender esta visão de mundo. Sendo assim, gostaria de explicitar
rapidamente aquilo que creio ser um argumento positivo em prol do anarquismo
libertário para, logo em seguido, fazer sua defesa contra suas principais
objeções.
O argumento em defesa do anarquismo
libertário
Problemas com o monopólio forçado
Pense desta forma: o que
haveria de errado em se ter um monopólio da produção de sapatos? Suponha que eu e minha gangue sejamos as
únicas pessoas que podem legalmente fabricar e vender sapatos. Ninguém mais pode, a menos que eu autorize. O que há de errado neste arranjo?
Para começar, de um ponto
de vista puramente moral, a pergunta é: por que nós? O que há de tão especial em relação a nós
para desfrutarmos deste monopólio? De
onde foi que minha gangue e eu tiramos esse direito de que somente nós podemos fabricar
e vender algo e que ninguém mais tem o direito de fazer o mesmo? Por que somente nós podemos ofertar um bem ou
serviço que ninguém mais tem o direito de ofertar?
Até onde se sabe, sou
apenas um ser humano tão mortal quanto qualquer outro. Logo, de um ponto de vista moral, qualquer
outra pessoa deve ter o mesmo 'direito' a este privilégio.
Logo, de um ponto de
vista pragmático, qual é a consequência mais provável de
minha gangue e eu termos o monopólio da produção de sapatos? Em primeiro lugar, há o problema dos
incentivos. Se eu sou a única pessoa que
tem o direito de fabricar e vender sapatos, você provavelmente não irá
conseguir de mim sapatos muito baratos.
Posso cobrar de você o tanto que eu quiser. Só não irei cobrar caro demais porque você
pode acabar decidindo que é melhor não me dar dinheiro e ficar sem os
sapatos. Porém, desde que você esteja
disposto a comprar sapatos e tenha o dinheiro para tal, irei cobrar de você o
maior preço que puder — como não há concorrência, você não tem outra
opção.
Da mesma maneira, e pelos
mesmos motivos, você também não deve esperar que meus sapatos sejam de alta
qualidade, pois, desde que eles sejam minimamente úteis, você irá preferir
calçá-los a andar descalço — e, sendo assim, irá comprá-los de mim.
Além dessa probabilidade
de que os sapatos serão caros e de baixa qualidade, há também o fato de que eu
ser a única pessoa que pode fabricar e vender sapatos me concede um grande
poder de chantagem sobre você. Suponha
que eu não goste de você. Suponha que
você tenha me ofendido em outra ocasião.
Eu simplesmente não irei vender sapatos para você — pelo menos por
algum tempo, enquanto meu humor não melhorar.
Logo, tal privilégio monopolista também me concede a capacidade do 'abuso
de poder'.
No entanto, os problemas
não se resumem apenas à questão dos incentivos.
Suponha que eu seja um genuíno e perfeito santo, e esteja
verdadeiramente disposto a fabricar os melhores sapatos possíveis para você, e
a cobrar o menor preço que eu puder. Eu
realmente não irei, em momento algum, abusar do meu poder, pois sou uma pessoa
totalmente confiável; sou um príncipe entre os homens (não no sentido
maquiavélico). Ainda assim haverá um
problema incontornável: como saberei se realmente estou fazendo o melhor
trabalho possível com estes sapatos? Afinal, não há concorrência.
Sim, eu poderia fazer uma
pesquisa junto aos consumidores para tentar descobrir que tipo de sapato eles
querem. Mas o problema é que há várias
maneiras distintas de se fabricar sapatos.
Há métodos mais caros e há métodos mais baratos. Se não há um mercado na área de fabricação de
sapatos, não há formação de preços para os métodos de produção empregados na
fabricação de sapatos. Sem formação de
preços, não há como eu calcular os métodos mais eficientes para se produzir
sapatos. E, igualmente, por não haver um
livre mercado na venda de sapatos, não há também formação de preços nesta
área. Sem saber ao certo o preço de
venda, e sem ter como calcular os métodos mais eficientes para se produzir
sapatos, não terei como calcular custos, e minha contabilidade de lucros e
prejuízos estará impossibilitada. Terei
simplesmente de recorrer ao método da adivinhação.
Portanto, mesmo que eu
realmente esteja fazendo o meu melhor, a quantidade de sapatos que irei
fabricar e a qualidade que empregarei podem não ser as mais bem indicadas para
satisfazer as preferências das pessoas, e terei enormes dificuldades para
descobrir o melhor procedimento.
O governo é um monopólio forçado
Portanto, estas são todas
as razões para não se ter um monopólio na fabricação e na venda de
sapatos. E, ao menos à primeira vista,
estas também são boas razões para que absolutamente ninguém detenha um
monopólio da oferta de serviços judiciários, de adjudicação de contendas, de
proteção de direitos, e de todas as coisas relacionadas àquilo que pode ser
mais amplamente chamado de exercício das leis.
Em primeiro lugar, há a
questão moral: por que um pequeno agrupamento de pessoas deveria deter o
direito de ser a única organização dentro de um dado território autorizada a
oferecer certos tipos de serviços legais ou a poder impingir certos tipos de
leis?
E há também as questões
econômicas: quais serão os incentivos?
Repetindo, trata-se de um monopólio.
Parece bastante provável supor que, tendo consumidores cativos, essa
organização monopolista irá cobrar preços maiores e ofertar serviços piores do
que os que seriam praticados em um ambiente concorrencial. Pode até mesmo ocorrer eventuais abusos de
poder.
E, mesmo que fosse
possível evitar todos estes problemas — colocando exclusivamente anjos e
santos no governo —, ainda haveria o problema do cálculo econômico, tornando
impossível saber se a maneira específica como esse grupo está ofertando seus
serviços legais é realmente a melhor maneira.
Dado que não há concorrência, este grupo de pessoas não tem como saber
se o que está fazendo é realmente a melhor e mais bem-sucedida atividade que
ele pode empreender. A única maneira de
descobrir sua aptidão será tentando descobrir na prática o que e o que não irá
funcionar. Quem gostaria de ser a
cobaia?
Logo, o propósito
destas considerações é justamente o de jogar o ônus da prova para o defensor do
monopólio estatal. Sempre que um defensor
do monopólio estatal de serviços jurídicos e de defesa levantar
algumas objeções à livre concorrência nesta área, ele deve ser questionado
sobre como é possível o monopólio destes serviços funcionar de maneira sequer
razoável.
Dez objeções ao anarquismo libertário
(1) O governo não é um monopólio coercivo
Uma objeção que
frequentemente é lançada não é exatamente uma objeção ao anarquismo, mas sim
uma objeção ao argumento moral em prol do anarquismo: dizer que o governo, na
realidade, não é um monopólio coercivo.
Segundo este argumento,
os cidadãos, ao aceitarem viver dentro das fronteiras de um determinado
território e ao aceitarem os benefícios que o governo oferece — por exemplo,
serviços policiais, jurídicos, educacionais, de saúde etc. —, estão na prática
consentindo com este arranjo. Eles estão
consentindo com o sistema vigente.
A ideia é a mesma de
quando você vai a um restaurante e pede uma carne. Ao fazer isso, você não tem de dizer
explicitamente que você está concordando em pagar por aquele carne; há
simplesmente um entendimento tácito de que é isso que você fará. Ao se sentar à mesa do restaurante e pedir a
carne, você está automaticamente concordando em pagar por ela.
O argumento seria o mesmo
para a não-coercividade do estado. Se
você reside dentro de um determinado território e aceita, por exemplo, os
benefícios da proteção policial fornecida pelo estado local, então você implicitamente
aceitou obedecer a todas as ordens desta organização.
Logo de cara, observe
que, mesmo que este argumento fosse válido, ele ainda não resolve a questão
pragmática sobre a funcionalidade deste sistema; ele não explica por que este é
o melhor arranjo possível.
Mas há outros problemas
com este argumento. É realmente verdade
que, se eu for à propriedade de alguém, então há um consenso tácito de que,
enquanto eu estiver nessa propriedade, eu tenho de seguir as regras
locais. Se eu não quiser seguir as
regras locais, então eu tenho de ir embora.
Ou seja, eu convido você para vir à minha
casa. Quando você chega, eu abro a porta e lhe digo: para ficar aqui em
casa, você tem de usar este nariz de palhaço. Isto certamente vai lhe
parecer bastante estranho, mas ainda assim eu posso dizer: "Ei, é a minha
casa e estas são minhas regras. Se quiser entrar, tem de ser
assim". Neste caso, sendo eu o proprietário, você não pode
simplesmente dizer: "Olha, eu vou entrar na sua casa, sim, e não vou usar
o nariz de palhaço." Se fizesse isso, você estaria invadindo a minha
propriedade e desrespeitando as leis vigentes dentro dela, as quais foram
estipuladas antes da sua entrada. Isso, portanto, é algo que você não
tem o direito de fazer.
Agora, imaginemos o cenário contrário.
Suponha que eu vá à sua casa e lhe diga: "Você tem de usar um nariz de
palhaço". Além do espanto total, sua outra provável reação será a de
perguntar quando foi que você disse que concordava em ser obrigado a utilizar
um nariz de palhaço dentro da sua casa. Ao que irei responder: "Ora,
você se mudou para perto de mim. E eu uso nariz de palhaço na minha
casa. Portanto, o simples fato de você estar morando perto de mim
significa que você, de uma maneira um tanto mística e tácita, consente em
também utilizar nariz de palhaço dentro da sua casa, mesmo que você não goste
da ideia."
As pessoas que defendem o monopólio estatal
simplesmente pegam este cenário que é evidentemente absurdo em nível local e o
expandem para um nível nacional: se você está aqui, então você deu seu
consentimento tácito com tudo o que se passa nele. Tais pessoas já partem da pressuposição de
que o governo possui uma jurisdição legítima sobre um determinado território,
de modo que quem está nele está automaticamente concordando com todas as regras
vigentes.
O problema de tal
raciocínio é que ele pressupõe exatamente aquilo que ele está tentando provar
— no caso, que esta jurisdição sobre o território é legítima. No entanto, caso não se consiga provar que
tal jurisdição é legítima, então se conclui que o governo é simplesmente apenas
mais um grupo de pessoas que vive neste amplo território geográfico.
O que nos leva a outro
ponto. Eu vivo em minha
propriedade. Não sei bem quais são as
determinações do governo em relação ao resto do país, mas sei que vivo em minha
propriedade e ela pertence a mim, e não ao governo. Logo, o fato de que estou vivendo "neste
país" significa que estou vivendo em uma determinada região geográfica sobre a
qual o governo possui certas pretensões.
Logo, a questão é: estas pretensões são legítimas? Se o objetivo é justamente provar que elas
são legítimas então não é válido já partir do pressuposto de que elas são
legítimas. Pressupor algo não significa
comprovar sua legitimidade.
Outro problema com este
argumento do contrato social implícito é que ele não deixa claro qual
exatamente é o contrato. Quando vou a um
restaurante e peço comida, todos sabem perfeitamente qual é o contrato. Sendo assim, neste arranjo é válido
apresentar o argumento do consentimento implícito. Porém, ninguém jamais diria que você pode
comprar um imóvel desta mesma
maneira. Para a compra de imóveis, as
regras são outras. Ninguém diz que "Você
meio que concordou com a compra ao ter balançado positivamente sua cabeça
quando lhe mostrei o tamanho do banheiro".
Você tem de ver o que realmente está escrito no contrato. Com o que exatamente você está
concordando? Um contrato não é claro se
ninguém sabe exatamente quais são seus detalhes.
(2) Hobbes: o governo é necessário para a cooperação
Provavelmente, o mais
famoso argumento contra a anarquia é o de Thomas Hobbes. O argumento de Hobbes é o de que a cooperação
humana — a cooperação social — requer a existência de uma estrutura
legal. O motivo de podermos confiar uns
nos outros é que sabemos que existem forças legais que irão nos punir caso violemos
os direitos de terceiros. Eu sei que
eles irão me punir se eu violar seus direitos, e você sabe que eles irão lhe
punir caso você viole meus direitos.
Sendo assim, posso confiar em você sem conhecer seu caráter
pessoal. Tenho apenas de confiar no fato
de que você estará intimidado pela lei.
Portanto, a cooperação
social requer este arcabouço legal impingido à força pelo estado.
O problema é que, neste
raciocínio, Hobbes está pressupondo várias coisas de uma só vez. Primeiro, ele está pressupondo que não é
possível haver cooperação social sem leis.
Segundo, ele está pressupondo que nenhuma lei realmente existe se ela
não for impingida pela força física. E
terceiro, ele está pressupondo que só é possível haver leis impingidas pela
força física se tal força física for monopólio do estado.
Mas todas estas
pressuposições são falsas.
Em primeiro lugar, a
cooperação pode surgir, e de fato surge, em um ambiente sem leis
específicas. Ela pode não ser tão
eficiente quanto seria em um ambiente com leis, mas ela ocorre. Há o livro de Robert Ellickson, Order Without Law,
no qual ele fala sobre como vizinhos são capazes de resolver voluntariamente
suas pendências. Ele também mostra um
exemplo de o que acontece quando a vaca de um fazendeiro sai de suas
delimitações e vai pastar na grama de outro fazendeiro, e de como eles resolvem
o problema por meio de acordos consuetudinários, pois não há nenhum arcabouço
legal voltado para esta situação específica.
Talvez estes exemplos não sejam suficientes para economias complexas,
mas certamente mostram que é possível haver algum tipo de cooperação sem a
existência de um arcabouço jurídico específico.
Ademais, é possível
existir um arcabouço legal que não seja impingido pela força. Um exemplo seria a Lex mercatoria do final
da Idade Média: um sistema de leis comerciais que era mantido por ameaças de
boicote. O boicote não é um ato de
força. Os mercadores faziam seus
contratos e, se algum deles desobedecesse as cláusulas, os tribunais
simplesmente tornariam público que "esta pessoa não cumpriu o contrato
pré-estabelecido; levem isso em consideração caso venham a firmar algum
contrato com ela no futuro".
Por fim, é possível existir
sistemas jurídicos formais que façam uso da força e que não sejam
monopolistas. Dado que Hobbes nem sequer
considerou esta possibilidade, ele não forneceu nenhum argumento contra
ela. Mas é possível encontrar vários
exemplos ao longo da história. Na Islândia medieval, por
exemplo, não havia uma agência centralizada de imposição de leis. Embora houvesse algo que, com algumas
concessões, pudesse ser chamado de governo, este não possuía absolutamente
nenhum braço executivo. Não havia
polícia, não havia soldados, não havia nada.
Havia uma espécie de sistema judiciário que funcionava em bases concorrenciais. A aplicação de sanções ficava a cargo de quem
quisesse. E vários sistemas se desenvolveram
para cuidar disso.
(3) Locke: três "inconveniências" da anarquia
Os argumentos mais
interessantes são de John Locke. Locke
argumenta que a anarquia possui três características que ele considera serem
"inconveniências". "Inconveniência",
vale ressaltar, é um termo que soava mais grave no inglês do século XVII do que
no inglês moderno. Seja como for, Locke referia-se meramente a
"inconveniências" porque, ao contrário de Hobbes, ele acreditava que a
cooperação social poderia sim existir de algum modo na anarquia. Ele era mais otimista do que Hobbes. Ele imaginava que, por causa de uma mescla
entre afinidades morais e interesse próprio, a cooperação podia surgir.
Mas ele temia três
problemas. Um problema, segundo ele, era
que não haveria um conjunto de leis gerais que fosse conhecido, entendido e
acordado por todos. As pessoas poderiam
aceitar certos princípios básicos das leis da natureza, mas suas aplicações e
seus detalhes exatos sempre seriam controversos. Afinal, nem mesmo libertários concordam
plenamente entre si. Eles podem
concordar em aspectos gerais, mas sempre estão discutindo acerca de vários
pontos específicos. Logo, mesmo em uma
sociedade composta exclusivamente por libertários pacíficos e cooperativos,
haverá desavenças acerca de detalhes. E,
sendo assim, a menos que haja um conjunto de leis gerais, o qual todo mundo
conheça e com o qual todo mundo concorde, de modo que cada indivíduo sabe
exatamente o que pode e o que não pode fazer, o arranjo não irá funcionar. Esse era o primeiro argumento de Locke. É necessário haver um conjunto universal de
leis, amplamente conhecido, que seja aplicável a todos e que todos conheçam
antecipadamente.
Um segundo problema seria
a questão do poder de aplicação e imposição das leis. Locke imaginava que, sem um governo, não
haveria um poder suficientemente unificado capaz de impingir o cumprimento das
leis. Sem um governo, haveria apenas
indivíduos impingindo coisas por conta própria.
Mas dado que indivíduos são fracos e não são suficientemente organizados,
eles poderiam facilmente ser sobrepujados por uma quadrilha de bandidos ou algo
do tipo.
O terceiro problema é o
fato de que, segundo Locke, não se pode deixar que indivíduos sejam os juízes
de seus próprios processos. Se duas
pessoas têm uma desavença, uma delas não pode simplesmente dizer "Eu sei qual é
a lei natural e irei aplicá-la a você".
As pessoas são tendenciosas e irão obviamente utilizar aquela
interpretação da lei natural que favoreça de modo mais plausível a sua própria
causa. Logo, Locke acreditava que não se
podia deixar que as pessoas fossem os juízes de seus próprios processos. Consequentemente, seria moralmente necessário
que elas aceitassem se submeter a um arbitrador, a um terceiro — e este teria
de ser o estado.
Estes são os três
problemas que Locke imaginava serem prementes em uma anarquia, e os quais não
existiriam sob um governo — ou pelo menos não sob o tipo certo de
governo.
Porém, ouso dizer que o
problema é justamente o oposto. É
justamente a anarquia que pode resolver todos estes três problemas, ao passo
que o estado, por sua própria natureza, está totalmente impossibilitado de
resolvê-los.
Comecemos com um exemplo
em que haja universalidade, isto é, em que haja um conjunto de leis
universalmente conhecidas e aplicáveis a todos.
Pode este arranjo surgir em um sistema sem estado? Ora, a Lex mercatoria surgiu exatamente
porque os estados não estavam fornecendo este tipo de lei. Um dos fatores que contribuiu para o
surgimento da Lex mercatoria foi a ausência de uma lei comum entre as nações da
Europa. Cada país possuía diferentes
conjuntos de leis para reger os comerciantes.
Todas as leis eram diferentes. E
um tribunal da França não iria endossar um contrato feito na Inglaterra sob as
leis da Inglaterra, e vice versa.
Sendo assim, a capacidade
dos comerciantes de incorrerem no comércio internacional foi dificultada pelo
fato de que não havia um sistema uniforme de leis comerciais para toda a
Europa. Consequentemente, os comerciantes
se juntaram e disseram: "Bom, vamos simplesmente fazer alguma lei por nossa
conta. Os tribunais estão criando regras
malucas e nenhum respeita as decisões dos outros — portanto nós iremos
simplesmente ignorá-los e estabeleceremos nosso próprio sistema."
Portanto, este foi um caso
em que uniformidade e previsibilidade foram produzidas pelo mercado e não pelo
estado. E é possível entender por que
isso não é nada surpreendente: afinal, é do total interesse daqueles que ofertam
um sistema privado torná-lo o mais uniforme e previsível possível, se for isso
que seus cliente querem.
É por esse mesmo motivo
que não encontramos cartões de débito ou de crédito triangulares. Até onde se sabe, não existe nenhuma
lei proibindo que tais cartões sejam triangulares. Mas se alguém tentasse comercializá-los, eles
simplesmente não se tornariam muito populares, pois não se encaixariam em
nenhum dos terminais existentes. Quando as pessoas querem diversidade, quando elas
querem diferentes sistemas para diferentes pessoas, o mercado proporciona exatamente
isso. Mas há algumas coisas para as
quais a uniformidade é a melhor solução. Seu cartão de débito será mais útil para você
se todas as outras pessoas também estiverem utilizando o mesmo tipo ou pelo
menos algum tipo compatível com o seu, de tal modo que todos vocês possam utilizar
as mesmas máquinas onde quer que estejam.
Consequentemente, se os comerciantes desejam ter lucro, eles proporcionarão
uniformidade.
Portanto, ao contrário
dos governos, o mercado possui todos os incentivos para oferecer uniformidade.
Quanto à questão da
necessidade de se ter poder suficiente para organizar serviços de proteção e
defesa, não há absolutamente nenhum argumento que diga que não é possível haver
tal organização sem um estado. A ausência
de estado não significa que cada pessoa tem de fabricar seus próprios
sapatos. A alternativa a um arranjo em
que o governo fornece todos os sapatos não é cada indivíduo tendo de fabricar
os seus próprios sapatos. Analogamente,
a alternativa a um arranjo em que o governo fornece todos os serviços legais
não é cada pessoa tendo de se transformar em agente policial independente. Não há por que supor que elas não poderão se
organizar e criar maneiras de suprir esta demanda. Com efeito, se a preocupação é a de não haver
força suficiente para resistir a um agressor, então não há nada mais
preocupante do que um monopólio estatal.
Um monopólio estatal da violência é um agressor muito mais perigoso do
que uma gangue de bandidos qualquer porque o monopólio estatal unifica todo
este poder de agressão em apenas um ponto de toda a sociedade.
Mas, acima de tudo, eu
creio que — e isso é muito interessante — o argumento de Locke sobre você não
poder ser o juiz de seu próprio processo é um tiro que realmente sai pela
culatra. Em primeiro lugar, tal
raciocínio não é um bom argumento a favor de um monopólio porque se trata de
uma construção falaciosa. Da alegação de
que todo mundo deveria submeter suas contendas a uma entidade externa,
Locke falaciosamente infere que deveria haver uma entidade externa para
quem todo mundo submeteria suas contendas. Isso é semelhante a dizer que da
afirmação todo mundo gosta de pelo menos um programa de TV pode-se
inferir que existe apenas um programa de TV do qual todo mundo gosta. Uma coisa simplesmente não decorre da
outra. É possível que todo mundo submeta
suas contendas a terceiros sem que haja apenas um terceiro a quem todo mundo obrigatoriamente
submete suas contendas.
Suponhamos que haja três
pessoas em uma ilha. A e B podem submeter suas contendas a C; A e C podem
submeter suas contendas a B; e B e C podem submeter suas contendas a A. Logo, não há nenhuma necessidade de haver um monopólio
ao qual todas as pessoas deveriam submeter suas contendas.
No que mais, não somente
não é necessário um governo, como na verdade um governo é exatamente o arranjo
que não satisfaz esse princípio. Pois se
você tiver uma contenda com o governo, o governo não irá submeter esta contenda
a uma entidade externa. Se você tiver
uma contenda com o governo, ela será resolvida em um tribunal do governo (isso
se você tiver sorte — caso o governo seja do tipo mais "indelicado", você
sequer conseguirá chegar a um tribunal).
Agora, é óbvio que é
preferível que o governo seja dividido em três poderes, que haja todo um
sistema de pesos e contrapesos e tudo mais.
Isso faz com que haja algo um pouco mais parecido com entidades
externas. Mas ainda assim tais entidades
externas fazem parte do mesmo sistema; os juízes são funcionários do estado e
são pagos com dinheiro dos pagadores de impostos. Portanto, existem aproximações melhores e aproximações
piores em relação a esse princípio. Ainda assim, dado que se trata de um sistema monopolista,
o que temos na prática é algo que, por sua própria natureza, opera sem lei. Em última instância, um sistema monopolista
jamais submeterá suas contendas a uma entidade externa.
(4) Ayn Rand: agências de proteção privada irão guerrear
entre si
Provavelmente, o
argumento mais popular contra a anarquia libertária foi aquele apresentado por
Ayn Rand. Suponha que eu creia que você
violou meus direitos. Você nega. Eu então decido acionar minha agência de
proteção privada para fazer valer meus direitos. Você, para se defender, aciona a sua agência
de proteção privada. O que ocorrerá? As duas irão entrar em guerra? Quem garante que não?
A resposta, obviamente, é
que ninguém pode garantir que elas
não irão guerrear entre si. Seres
humanos possuem livre arbítrio. Eles
podem fazer todos os tipos de maluquices.
Eles podem iniciar guerras sem motivo aparente. O presidente americano, por exemplo, pode
apertar o botão nuclear amanhã se ele quiser.
A questão é: o que é mais
provável? Qual dos dois é mais propenso a
resolver suas pendengas por meio da violência: governos ou agências de proteção
privadas?
A diferença mais óbvia é
que agências de proteção privada têm de arcar com todos os custos de sua
eventual decisão de fazer uma guerra.
Fazer guerra é algo extremamente caro.
É péssimo para os lucros. Suponha
que você pode escolher entre duas agências de proteção, uma que tende a
resolver suas contendas por meio da violência e outra que tende a resolver suas
contendas por meio do arbitramento. Se
você for um indivíduo belicista, fanático por guerras, você pode até achar
legal optar pela agência violenta — até o momento em que você receber sua
fatura mensal.
Ainda assim, por mais que
você realmente seja um sujeito tão fanático por guerra a ponto de continuar
disposto a pagar valores exorbitantes, é certo que a imensa maioria dos outros
clientes irá preferir agências que não cobrem toda esta quantia extra apenas
para brincar de guerra.
Por outro lado, tal opção
nem sequer existe quando se trata de governo. Para começar, um governo possui clientes
cativos, que não podem optar por não pagar, estejam eles de acordo ou não com a
violência do governo. Ademais, dado que
o governo tributa seus clientes, e dado que seus clientes não podem se recusar
a repassar o dinheiro, os governos não apenas não precisam se preocupar com
custos, como eles também podem simplesmente externalizar os custos de suas
guerras de uma maneira extremamente eficaz: mandando a conta para seus cidadãos
pagadores de impostos. Tal eficácia nenhuma
agência privada jamais sonharia ser capaz de conseguir.
(5) Robert Bidinotto: não existe um arbitrador supremo para
as contendas
Outra objeção comum —
esta você encontra, por exemplo, nos escritos de Robert Bidinotto, que é um
randiano que já escreveu vários artigos contra a anarquia — é que, em um
arranjo sem governo, não há um arbitrador supremo para as contendas. Em um arranjo com governo, em algum momento
um arbitrador supremo será chamado e irá resolver a disputa de um jeito ou de
outro. Já em um arranjo sem governo,
dado que não há nenhuma agência que detém o direito de resolver as contendes de
uma vez por todas — ou seja, não há um arbitrador supremo —, tem-se que as
contendas de certa forma nunca acabam, podendo nunca ser resolvidas,
permanecendo em aberto para sempre.
Qual a resposta a isso?
Creio que nesse caso há
uma ambiguidade quanto ao conceito de arbitrador supremo. Normalmente, pensa-se em no termo "arbitrador
supremo" de uma forma muito platônica — isto é, alguém ou alguma
instituição que, de alguma forma, consegue garantir de maneira absoluta que a contenda
está resolvida para sempre; que garanta de maneira absolutamente incontestável a
resolução de todas as pendengas.
Por outro lado, "arbitrador
supremo" também pode ser simplesmente alguma pessoa ou algum processo ou alguma
instituição que, de uma maneira relativamente confiável e autêntica, garanta na
maior parte das vezes que os problemas sejam resolvidos.
É verdade que, no sentido
platônico — no sentido de uma garantia absoluta dada por um arbitrador final
—, um arranjo sem governo não pode propiciar tal solução. E nem nenhum outro sistema. Imaginemos uma república constitucional
minarquista, do tipo defendido por Bidinotto. Será que haveria um arbitrador supremo neste
sistema, algo que garantiria de modo absoluto o fim definitivo de um processo
de contenda judiciária?
Imaginemos: eu sou
processado por você. Perco. Apelo. Perco de novo.
Apelo para o Supremo Tribunal. Eles
ficam contra mim. Faço lobby no
Congresso para mudarem as leis para que elas agora me favoreçam. Eles não mudam. Tento então criar um movimento para conseguir
fazer uma emenda à Constituição. Não dá
certo. Tento então convencer as pessoas a
elegerem novos membros para o Congresso que irão votar a favor da emenda. Não consigo.
Tento de novo dali a alguns anos.
E assim por diante. Observem que,
de certa forma, posso continuar para sempre. A contenda não está resolvida.
Na prática, porém, a maioria das contendas
judiciais sempre chega a um fim. Chega-se
a um ponto que se torna caro demais continuar brigando. Do mesmo modo, em um arranjo sem governo, não
há nenhuma garantia de que o conflito não irá se arrastar para sempre. Aliás, existem poucas garantias férreas sobre
qualquer assunto. Mas isso não é motivo
para esperar que as coisas não funcionem.
(6) Leis
sobre propriedade não podem surgir no mercado
Outro argumento popular, também muito usado pelos
randianos, é que as transações de mercado pressupõem um histórico de leis de
propriedade. Você e eu só podemos trocar
bens por serviços, ou dinheiro por serviços, ou fazer qualquer outra transação,
se já existir leis de propriedade estáveis que assegurem a veracidade dos
títulos de propriedade que temos. E dado
que o mercado, para funcionar bem, pressupõe a existência de todo um arcabouço
de leis de propriedade, tais leis não podem ser elas próprias um produto do
mercado.
Segundo este raciocínio, as leis de propriedade têm
de surgir de algum lugar — provavelmente será criada por algum robô infalível
ou algo do gênero. Não sei bem de onde
exatamente ela surge, mas sei que, por algum motivo, ela não pode surgir do
mercado.
Ironias à parte, um raciocínio deste tipo é o
equivalente a dizer que, primeiro, as leis sobre propriedade foram surgindo do
nada e tudo foi sendo estabelecido sem nenhuma transação de mercado acontecendo
— todo mundo ficou quieto, apenas esperando que toda a estrutura legal ficasse
pronta. E então, após algum tempo, com a
estrutura finalmente já completada, as pessoas enfim começaram a fazer negócios
umas com as outras.
É verdade que não é possível haver mercados funcionando
corretamente se não houver um sistema legal operante. Mas não faz sentido imaginar que primeiro
criaram todo um sistema legal para então, só então, começarem a fazer
transações econômicas. Ambos nasceram e
evoluíram juntos. Instituições jurídicas
e transações econômicas surgem conjuntamente em um mesmo local e ao mesmo
tempo. O sistema legal não é algo
totalmente independente das atividades que ele restringe. Afinal, um sistema legal não é um robô ou um
deus ou algo externo completamente separado de nós. A existência de um sistema legal consiste em
pessoas obedecendo a suas regras. Se
todos ignorassem o sistema legal, ele não teria poder nenhum. Logo, é justamente porque as pessoas
geralmente apóiam e concordam com o sistema legal, que ele sobrevive. O sistema legal também depende de um respaldo
voluntário das pessoas.
Creio que um dos motivos por que várias pessoas
temem um arranjo sem governo é que elas imaginam que, sob um governo, ao menos
existe algum tipo de garantia que não mais irá existir sem o governo; que de
algum modo existe este firme arcabouço ao qual podemos recorrer, e o qual, sem
governo, simplesmente desapareceria. Mas
este firme arcabouço é apenas o produto de pessoas interagindo de acordo com os
incentivos que possuem.
Do mesmo modo, quando anarquistas dizem que as
pessoas, em um arranjo sem governo, provavelmente teriam incentivos para fazer
isto ou aquilo, as pessoas respondem exasperadas "Bem, isso não é suficiente!
Eu não quero que apenas seja provável que elas terão incentivos
para fazer isso. Quero que o governo garanta de maneira absoluta que elas
farão isso!" Mas o governo nada mais é
do que um conjunto de pessoas. E,
dependendo da estrutura constitucional do governo, é provável que elas façam
isso ou aquilo. É impossível elaborar
uma constituição que garanta que as pessoas no governo irão se comportar de uma
determinada maneira. É possível estruturar
uma constituição de modo a tornar mais provável que as pessoas façam uma coisa
e menos provável que elas façam outra coisa. E a anarquia pode ser considerada como sendo uma
ampliação dos sistemas de pesos e contrapesos para um nível mais amplo.
(7) O crime
organizado controlará tudo
Outra objeção é que, em um arranjo sem estado, o
crime organizado tomará conta de tudo. Bom,
é possível. Mas é
improvável. O crime organizado surge
justamente naquelas áreas que foram tornadas ilegais pelo estado. O crime organizado adquire seu poder ao se
especializar em atividades que foram proibidas pelo estado — coisas como
drogas, prostituição, jogos, agiotagem e assim por diante.
Durante os anos em que o álcool era proibido, o
crime organizado especializou-se no comércio de álcool. Hoje, após o fim da proibição, praticamente
não se ouve falar de crime organizado no comércio de álcool. O poder
do crime organizado, em grande parte, depende do poder do governo. Ele é uma espécie de parasita das atividades
do governo. Os governos, ao proibirem certas
atividades, criam mercados negros. Os
mercados negros são atividades perigosas de desempenhar porque seus membros têm
de se preocupar tanto com o governo quanto com outras pessoas nada simpáticas
que estão interessadas na sua fatia de mercado.
Adicionalmente, como os tribunais não fazem valer aqueles contratos que
o estado considera ilegais, todas as pelejas contraídas no mundo do crime
organizado têm de ser cumpridas na base da violência. Todos estes fatores
explicam por que uma indústria que é perseguida por agentes armados do governo
acaba se tornando fortemente militarizada também.
Se a análise acima está correta, e o crime
organizado (e gangues violentas em geral) prospera apenas naquelas áreas
infestadas de intervenção estatal, então parece óbvio que uma anarquia de
mercado iria emascular esses grupos criminosos. Colocando em outras
palavras, à medida que o governo legalizasse mais e mais setores, o crime
organizado teria de concentrar suas atividades em negócios cada vez mais
restritos. No limite, se tudo fosse legalizado (do ponto de vista de
legislação estatal), o crime organizado não teria como obter nenhuma vantagem
especial. Da mesma forma que a máfia não aguenta concorrer diretamente
com uma fabricante de cervejas como a Budweiser, ela também perderia sua fatia
de mercado para empreendedores honestos dos setores judiciário e policial caso
o estado cancelasse seu monopólio sobre esses serviços.
(8) Os
ricos irão dominar
Outra preocupação é que os ricos irão
dominar. Afinal, se os serviços legais
forem transformados em um bem econômico, a justiça não estará a serviço daquele
que pagar mais? Trata-se de uma objeção comum. O interessante é que tal objeção é
particularmente comum entre os randianos, que repentina e curiosamente se
transformam em seres extremamente preocupados com os desvalidos.
Mas sob qual sistema os ricos são mais
poderosos? Sob o atual sistema ou sob um
sistema sem estado?
Certamente, você sempre terá algum tipo de
vantagem se for rico. É bom ser
rico. Sendo rico, você sempre estará em
uma posição privilegiada para subornar pessoas.
Porém, no atual sistema, o poder dos ricos é amplificado.
Suponha que eu seja um rico malvado e queira que o
governo faça algo que custará $5 milhões.
Teria eu de subornar algum burocrata em $5 milhões para conseguir que a
coisa fosse feita? Não, pelo simples
motivo de que, se a coisa for feita, o político não estará utilizando nenhum
centavo de seu próprio bolso. Pelo mesmo
motivo, se eu estivesse pedindo que ele fizesse o trabalho com seu próprio
dinheiro, então obviamente eu não conseguiria convencê-lo a gastar $5 milhões
dando a ele uma propina menor que $5 milhões.
Eu teria de dar pelo menos cinco milhões e um centavo.
Pessoas que controlam o dinheiro de impostos de
terceiros, dinheiro este que não pertence a elas — o que significa que elas
não podem fazer com ele o que quiserem —, não podem simplesmente embolsar os
$5 milhões e ir pra casa (muito embora elas façam coisas que cheguem muito
perto disso). Tudo o que eu tenho de
fazer é subornar o burocrata em alguns milhares, e ele, por sua vez, irá desviar
estes $5 milhões em dinheiro de impostos para aquele projeto que eu
defendo.
Ou seja, no atual sistema, meu poder de propina é
multiplicado.
Por outro lado, se você fosse o presidente de uma
agência de proteção privada e eu estivesse tentando fazer você gastar em algo
que custasse $5 milhões, eu teria de lhe pagar uma propina de valor (muito)
superior a $5 milhões. Logo, o poder do
rico é na realidade menor em um
sistema sem governo.
Ademais, obviamente, qualquer tribunal que
adquirisse a má reputação de favorecer milionários contra os pobres também, presumivelmente,
teria a reputação de favorecer bilionários contra milionários. Por conseguinte, os milionários não iriam
querer lidar com esse tribunal. Eles só
iriam querer lidar com ele quando estivessem em uma contenda contra pessoas
mais pobres, e não contra pessoas mais ricas. Mas a questão é que as repercussões de uma má reputação
não fariam nada bem para a imagem deste tribunal no mercado.
Há também preocupações quanto ao fato de vítimas
pobres não serem capazes de arcar com serviços jurídicos, ou com vítimas que
morrem sem deixar herdeiros (de novo, os randianos são muito preocupados com
vítimas que morrem sem herdeiros). No
caso de vítimas pobres, é possível fazer o que se fazia na Islândia medieval. Se você é pobre demais para pagar por serviços
jurídicos e alguém prejudicou você, você tem o direito de requerer indenização
daquela pessoa. Você pode vender esse
direito à indenização — toda ela ou apenas uma parte dela — para outra
pessoa. Na realidade, funciona como se você
contratasse um advogado na condição de só pagar honorários se houver ganho de
causa. Você poderá vender sua
indenização para alguém que tenha condições de impingir suas reivindicações. Ou, se você morrer e não deixar herdeiros, em
certo sentido os bens que você deixar passam a ser a reivindicação de
indenização, e poderão ser objetos de apropriação.
(9) Robert
Bidinotto: as massas irão demandar leis ruins
Outra preocupação que aflige Bidinotto — e esta é
praticamente oposta à preocupação de que os ricos irão dominar — tem a ver com
a questão de o mercado ser, como Mises havia dito, uma grande democracia na
qual a soberania do consumidor decide quem prospera e quem vai à falência. Segundo Bidinotto, esse tipo de democracia é
ótimo quando se trata de geladeiras, celulares, automóveis, computadores
etc. Mas certamente não é uma coisa boa
quando se trata de leis. Porque, afinal, as massas nada mais são do
que um bando de ignaros intolerantes que, se puderem criar as leis que
quiserem, certamente inventarão as coisas mais pavorosas imagináveis.
A diferença entre a democracia econômica do tipo
misesiano e a democracia política é óbvia: na democracia econômica, você
consegue o que quer, mas tem de pagar por isso.
Por outro lado, é verdade que, em um arranjo sem governo, se houver
pessoas suficientemente fanáticas que desejam impor algo ignóbil a outras
pessoas, e tal grupo de pessoas for grande o suficiente, então de fato a
anarquia poderá levar a resultados nada libertários.
Se você vive em um estado povoado por pessoas de
mentalidade mais progressista, você certamente estará rodeado de fanáticos que
querem banir o cigarro de tudo quanto é lugar.
Se você vive em um estado mais conservador, a tendência é que, em vez do
cigarro, as pessoas queiram banir a homossexualidade — neste caso, pode ser
que tais pessoas sejam tão fanáticas, que elas irão conseguir a proibição. Mas vale lembrar que elas terão de pagar por
isso.
Logo, quando elas receberem suas apólices mensais
de suas agências de segurança privada, lá vai constar o preço do serviço básico
— proteção contra agressões — e depois uma taxa adicional pelo serviço extra de
posicionar agentes de tocaia para espiar os vizinhos pelas janelas e se
certificar de que eles não estavam fumando ou praticando atos homossexuais.
Agora, as pessoas realmente fanáticas dirão "Sim,
vou desembolsar mais dinheiro para pagar por isso." (Obviamente, se elas forem
fanáticas a esse ponto, serão um problema em um arranjo minarquista também). Mas se elas não forem tão fanáticas assim, dirão:
"Bem, se tudo o que eu preciso fazer é apoiar e votar em candidatos que
defendem leis que restrinjam a liberdade das outras pessoas, então é claro que
farei isso, é muito fácil ir e votar." Porém, se elas tiverem efetivamente de pagar um
preço para impor seus desejos, então são enormes as chances de que elas se
resignem e desistam de suas tentações totalitárias.
(10) Robert
Nozick e Tyler Cowen: agências de proteção privada irão se transformar em um
genuíno governo
Meu último ponto.
Essa é uma questão que foi originalmente levantada por Robert Nozick e,
desde então, vem sendo desenvolvida por Tyler Cowen. Nozick disse: se não houver governo, um destes
três fenômenos ocorrerá. As agências de proteção
brigarão entre si — e isso, segundo Nozick, levará a dois cenários distintos. Porém, como já falei acima sobre o que
aconteceria se elas brigassem, não irei me concentrar nestes dois cenários e vou
pular logo para a terceira opção.
E se elas não brigarem? Então, segundo ele, se elas concordarem com todos
esses contratos de arbitramento mútuo, então basicamente todo o arranjo de
agências de proteção iria simplesmente se transformar
em um governo.
Tyler Cowen desenvolveu ainda mais essa argumentação.
Ele disse que, basicamente, todo esse
arranjo viraria um cartel, e seria do total interesse desse cartel se
transformar em um governo. Qualquer nova
agência privada que porventura quisesse entrar no mercado seria imediatamente
boicotada pelo o cartel.
E o argumento prossegue: assim como é do seu
interesse, caso você invente um novo cartão de débito, que ele seja compatível
com as máquinas de todos os estabelecimentos, se você criar uma nova agência de
proteção também será de seu interesse conseguir fazer parte do mesmo sistema de
contratos e arbitramento do qual as agências existentes já fazem parte. Você não conseguirá clientes caso as pessoas
descubram que sua agência não possui nenhum acordo com as outras agências especificando
o que ocorrerá caso um cliente de sua agência entre em uma contenda com um
cliente de outra agência. Sendo assim,
agindo desta forma, esse cartel seria capaz de boicotar a entrada de novas
agências no mercado.
E então, isso poderia ocorrer? Sim, é claro que poderia. Qualquer tipo de coisa pode ocorrer. Metade da população do país pode se suicidar
amanhã. Mas isso é provável? Seria provável que esse cartel conseguisse
abusar de seu poder dessa maneira? O
problema é que cartéis são arranjos inerentemente instáveis, pois, por sua
própria organização, as possibilidades de ganhos para quem furar o cartel,
ofertar preços menores e com isso atrair mais clientes são enormes. Isso não significa que é impossível um cartel ser
bem-sucedido; afinal, as pessoas têm livre arbítrio. No entanto, tal sucesso é algo improvável, pois
os mesmos incentivos que levam você a formar um cartel também levam você a
querer romper o acordo — pois é sempre do interesse econômico de alguém fazer
acordos fora do cartel quando se está dentro dele.
Bryan Caplan faz uma distinção entre boicotes que se
mantêm automaticamente e boicotes que não se mantêm automaticamente. Os boicotes que se mantêm automaticamente são
bastante estáveis porque são boicotes contra, por exemplo, pessoas que trapaceiam
seus parceiros comerciais. Você não
precisa ser uma pessoa dotada de extrema rigidez moral para não querer fazer
negócios com pessoas conhecidas por trapacear seus parceiros comerciais. Você tem um total interesse próprio em não
querer fazer negócio com este tipo de pessoa.
Por outro lado, pense no que ocorreria caso você
não quisesse fazer negócios com um determinado indivíduo porque você não gosta
da religião dele, ou da opção sexual dele, ou da cor dele ou simplesmente porque
ele é cliente de uma agência de proteção com a qual a sua agência recomenda não
fazer negócio — sim, o boicote poderá funcionar. Transpondo este raciocínio para um cartel, talvez
uma quantidade suficiente de pessoas (talvez todo mundo) no cartel esteja tão
decidida a manter esse cartel, que elas simplesmente não se relacionarão com
este indivíduo. Isso seria possível? Sim. Mas
a que custo de oportunidade? Esse é um
boicote que não se mantém automaticamente.
Se essas pessoas formaram um cartel motivadas por um
interesse econômico próprio, então esse interesse próprio é exatamente o que
levará à quebra do cartel, pois é do interesse econômico delas lidar com o
indivíduo em questão, assim como é sempre do seu interesse incorrer em
transações econômicas mutuamente benéficas.