quinta-feira, 17 abr 2014
A popular série
Game of Thrones é baseada na intricada coleção de livros de
fantasia de George R. R. Martin,
As
Crônicas de Gelo e Fogo, a qual se tornou uma
inspiração para análises e comentários de todos os matizes. E, enquanto os seus
personagens complexos e moralmente ambíguos têm atraído muitos analistas e
comentaristas políticos e literários, há também importantes lições econômicas a
serem aprendidas dos livros.
A trama de Martin se refere a uma variedade
de assuntos econômicos — desde as implicações do fato de não existir sequer um
sistema econômico até os problemas da moeda e das finanças estatais. Os governantes do continente de Westeros recorrem aos métodos
tradicionais de financiamento estatal: tributação, endividamento e inflação.
Neste artigo, discorreremos sobre algumas das
implicações econômicas da série, especialmente a respeito da ordem social e sobre
o papel que a cooperação pacífica, o comércio e a moeda desempenham na
organização da sociedade.
O meio político e o meio econômico
Franz Oppenheimer
famosamente realizou a distinção entre o "meio político" e o "meio econômico"
de organização social. O primeiro implica a coerciva redistribuição de riqueza;
a riqueza, entretanto, é criada apenas por aqueles que estão envolvidos no meio
econômico de organização, o qual se baseia na produção pacífica, no comércio e
na troca. (1926, pp. 24—27.)
Essa distinção aparece
de forma muito clara em As Crônicas de Gelo e Fogo. Por exemplo, povos tão
diferentes como os Dothraki e os Homens de Ferro são cabais e resolutos
exemplos do meio político. Ambas as sociedades produzem pouco ou nada por si
mesmas; elas, em vez disso, prosperam por meio da violência e da pilhagem. Encontra-se uma perfeita ilustração disso no "código" da Casa Greyjoy, a qual proclama: "Nós Não Semeamos." A insinuação, por
óbvio, é que os homens das Ilhas de Ferro apenas ceifam os frutos daquilo que
os outros semearam.[1] O
lema da Casa Greyjoy é uma hábil, adequada e sagaz descrição do estado, o qual é, fundamentalmente, uma
instituição parasitária que depende, para a sua sobrevivência, do saque de uma
população produtiva.
Mas a distinção entre o meio político e o
meio econômico aparece também em situações mais sutis. Até mesmo nas partes
relativamente pacíficas do reino, nas quais a ordem civil é mantida e a
exploração é menos óbvia, vê-se claramente que os interesses dos governantes e
dos governados são diferentes, da mesma forma como são diversos os meios de se
obter a prosperidade. Martin atinge o cerne da questão numa conversa entre
Daenerys Targaryen e o seu parceiro, Ser Jorah Mormont. Daenerys acredita que o
reino que a sua família uma vez governou se erguerá em defesa da pretensão do
seu irmão ao trono. Ela observa: "O povo está esperando por ele. Magíster
Illyrio diz que as pessoas comuns estão confeccionando bandeiras de dragões e
rezando para que Viserys retorne através do Mar Estreito para libertá-las." A
resposta que ela recebe é simples, mas esclarecedora:
"As pessoas comuns rezam por chuva, por crianças saudáveis e por um verão
que nunca termine", disse-lhe Ser Jorah. "Não lhes interessa a guerra dos
tronos que os grandes lordes jogam, contanto que sejam deixadas em paz." Ele encolheu os
ombros. "Elas nunca são".
É facilmente perceptível, em As
Crônicas de Gelo e
Fogo, a ideia de que o
comportamento político traduz-se essencialmente em pilhagem criminosa. Davos
Seaworth, em outro trecho, reflete sobre a trajetória do marinheiro Salladhor
Saan, seu amigo e camarada, que é "um contrabandista... bem como um
comerciante, um banqueiro, um pirata notório e o autoproclamado Príncipe do Mar
Estreito". Davos, então, conclui para si mesmo: "Quando um pirata enriquece o suficiente, fazem-no um príncipe." [2]
Moeda e Sociedade
Além de discutir a essência do governo, a
série contém outras ideias econômicas também. Um proeminente exemplo é o forte
entendimento da narrativa sobre o papel que a moeda desempenha na sociedade. Em
particular, o desdobramento da história fornece fotografias de diferentes
estágios de desenvolvimento econômico; e tais estágios estão intrinsecamente
ligados às diversas percepções culturais sobre atividade econômica e moeda.
Os horselords
Dothraki — o descentralizado grupo de tribos guerreiras que vagueiam pelo
continente oriental — são óbvios exemplos. Os Dothraki de maneira alguma
realizam comércio, e o máximo de interação social pacífica a que chegam é um
vago sistema de troca de presentes. Eles, portanto, não utilizam moeda — e a
sua civilização reflete profundamente esse fato.
Sem um sistema de troca indireta, eles são
incapazes de desenvolver bens de capital, contando, ao invés disso, com as
receitas redistributivas das pilhagens para sobreviverem. Eles são amplamente
nômades, faltando-lhes a capacidade (ou o desejo) de produzir e comerciar. Com
efeito, as únicas estruturas permanentes da cidade de Vaes Dothrak são aquelas
construídas por escravos estrangeiros, com a utilização de materiais saqueados.
A inexistência de uma sociedade complexa pode ser atribuída à recusa deles a se
engajarem em atividades econômicas e, em
decorrência disso, a adotarem um meio de troca.
Já que a moeda torna possíveis as decisões
empreendedoriais necessárias para o desenvolvimento da economia, o cálculo
econômico, portanto, é tão impossível para os Dothraki quanto para uma
sociedade socialista. [3]
Uma segunda fase de desenvolvimento econômico
é representada pelos "selvagens vulgares" (wildlings) que vivem além do Muro, ao norte dos
Sete Reinos. Eles não possuem uma autoridade política centralizada e
orgulhosamente referem-se a si mesmos como o "povo livre" (free folk).[4] Embora não sejam tão economicamente
desenvolvidos quanto os Sete Reinos, os wildlings
são mais avançados do que os Dothraki.
A atividade econômica existe na forma de
relações de escambo entre alguns grupos relativamente pacíficos. Contudo,
devido à constante guerra com os povos situados ao sul do Muro, os free folk não podem se engajar em
comércio prolongado, planejamento de longo prazo ou cooperação social.
Forçosamente excluídos da sociedade, eles ficam restritos a levar uma
existência num ambiente pobre em recursos, alcançando não mais do que o mínimo
de desenvolvimento econômico.
Em terceiro lugar, os Homens de Ferro, assim
como os Greyjoy, são, no tocante à moeda, um caso mais intermediário. A sua
obsessão com a conquista os conduz a minimizarem o comércio e o uso do dinheiro
— o que eles ridicularizam como "pagar o preço do ouro". Sob o ponto de vista da sua cultura, os
homens, ao contrário, devem pagar o "preço do ferro" por qualquer vestimenta
que vistam ou qualquer luxo que desfrutem; em outras palavras, qualquer coisa
de valor que alguém possuir deve ser arrebatada do corpo de um inimigo
assassinado.
Apesar de terem sido parcialmente integrados,
à força, à vida econômica e social dos Sete Reinos, os Homens de Ferro fazem um
esforço consciente para manterem o seu antigo modo de vida baseado na
expropriação. Em virtude disso, eles restringem o seu uso do dinheiro a uma
esfera relativamente pequena.
Um nível maior de sofisticação econômica pode
ser encontrado nos Sete Reinos de Westeros. A política dos Sete Reinos é
similar àquela de uma sociedade feudal, na qual "os homens se tornavam ricos por
meio da guerra e da conquista e por meio da liberalidade do governante
soberano. Os homens se tornavam pobres quando eram derrotados em batalha ou
quando não mais se encontravam nas boas graças do monarca." (Mises, 2006, p.
158.)
Tenha você lido ou não os livros, a história
é familiar. Deparando-se com a dificuldade de financiar uma guerra
aparentemente sem fim, o Mestre da Moeda (uma posição equivalente a Ministro
das Finanças) concebe novos tributos; mas esses duram apenas enquanto a
população for capaz de pagar. Os governantes estão dolorosamente conscientes de
que "metade dos senhores do reino não poderia tolerar uma tributação tirânica e
fugiria num piscar de olhos para o usurpador mais próximo caso isso lhes
salvasse uma moeda de cobre".
O endividamento (empréstimos) também serve à
coroa; todavia, embora isso dê a ilusão de prover um almoço grátis, trata-se de
um meio custoso, que não oferece soluções duradouras. Em um momento da
história, Cersei Lannister sonha fundar o seu próprio banco, para que ele lhe
seja uma permanente fonte de fundos. O ultimo recurso, então, é a criação de
dinheiro — o que Lorde Littlefinger realiza através da prática (historicamente
costumeira) de adulterar a moeda.[5]
As frequentes guerras entre as famílias
governantes de Westeros — embora estas não sejam tão militaristas quanto os
Homens de Ferro — destroem periodicamente a riqueza acumulada da "classe
baixa" (small folk),
como os nobres a chamam. Devido ao conflito constante, muitas populações nos
Sete Reinos lutam para sobreviver um dia após o outro. A poupança, por exemplo,
é quase impossível para o "povo comum" (common
folk); e até mesmo os cavaleiros e os nobres têm dificuldade de praticá-la.
Não é surpreendente, então, que a economia,
de modo geral, não evolua além dos estágios iniciais de acumulação de capital e
demonstre estar estacionada no mesmo nível de desenvolvimento por milhares de
anos.[6] As indústrias que
prosperam e desencadeiam a maior parte do desenvolvimento tecnológico são as
indústrias da guerra, em detrimento dos empreendimentos pacíficos e produtivos.
Os armeiros e os construtores de barcos, por exemplo, são claramente descritos
como aproveitadores que se beneficiam do tumulto político.
Dada a centralização do poder nos Sete Reinos
— e dada a complexa rede de intrigas e privilégios que vem junto com ela —, não é surpresa que sejam comuns os
estrondosos exemplos de desperdícios estatais.
O torneio de Robert Baratheon requer um total
de "noventa mil peças de ouro" somente em prêmios. Adicionalmente,
em função de Robert desejar uma "festa prodigiosa", o Mestre da Moeda contrata,
entre outros, "cozinheiros, carpinteiros, garçonetes, cantores, malabaristas e
palhaços". O Conselho é rápido em argumentar — lançando mão da falácia da janela
quebrada — que "o reino prospera" através de tais eventos e que as pródigas
despesas em torneios também trazem "aos grandes uma oportunidade de glória e
aos humildes uma trégua dos seus problemas e das suas aflições". O mesmo
raciocínio é usado para justificar outras ultrajantes e escandalosas gastanças,
como o extravagante casamento do Rei Joffrey.
As economias mais desenvolvidas de As Crônicas de Gelo e Fogo encontram-se
nas assim denominadas Cidades Livres. As nove cidades-estado do outro lado do
Mar Estreito ostentam "um número de templos, torres e palácios" duas vezes
maior do que aquele encontrado em Westeros, e são bem conhecidas pelo seu
comércio de tapeçarias, carpetes, rendas, vinhos e especiarias.
Cosmopolitas e poliglotas, as Cidades Livres
possuem também muitos estabelecimentos lucrativos de empréstimo de dinheiro:
"Cada uma das Nove Cidades Livres tem o seu banco, e algumas têm mais de um,
lutando por todas as moedas como cachorros por um osso." Os bancos proveem
ajuda financeira para os estrangeiros, especialmente para as famílias de nobres
dos Sete Reinos, e a reputação deles faz com que sejam peças-chave na guerra dos tronos: "Quando os príncipes falham em quitar as suas
dívidas com o Banco de Ferro, novos príncipes brotam do nada e tomam os seus
tronos."
As Cidades Livres não são estranhas à luta
política, obtendo a grande custo a relativa liberdade que possuem. Braavos,
agora a mais nova e mais poderosa cidade, foi fundada por escravos refugiados,
os quais desde então se esforçam para eliminar a escravidão na região das
Cidades Livres.
Outros indivíduos também aprenderam severas e
desagradáveis lições econômicas. Volantis era a mais antiga e a maior das
Cidades Livres, mas perdeu a sua riqueza numa vã tentativa de conquistar as
outras. Os governantes volantinos "favoreciam a espada, enquanto os mercadores
e os banqueiros defendiam o comércio. [...] Após um século de guerra, Volantis
encontrava-se quebrada, falida e despovoada." Somente após o abandono das
aspirações militares, somente após a renovação da atividade comercial pacífica,
é que a cidade retornou à prosperidade.
Para concluir, é importante assinalar que a
obra As Crônicas de Gelo e Fogo se
baseia extensamente na história medieval, a qual vivenciou mais do que a sua
quota de guerras e destruição econômica. História ou fantasia, a guerra dos
tronos — o uso do meio político — impede a propagação e a difusão de ideias
econômicas saudáveis, sendo afastadas, assim, as boas políticas econômicas. Graças aos Sete Reinos e ao seu vício pela
guerra dos tronos, quando ocorrem a paz e a prosperidade em Westeros, a única
coisa da qual podemos estar certos é: O Inverno Está Chegando.
Referências
Bibliográficas
MARTIN,
George Raymond Richard. A Song of Ice and Fire: A Game of Thrones. New
York: Bantam Books, 1996.
MARTIN,
George Raymond Richard. A Song of Ice and Fire: A Clash of Kings.
New York:
Bantam Books, 1999.
MARTIN,
George Raymond Richard. A Song of Ice and Fire: A Storm of Swords.
New York:
Bantam Books, 2000.
MARTIN,
George Raymond Richard. A Song of Ice and Fire: A Feast for Crows. New York: Bantam Books,
2005.
MARTIN,
George Raymond Richard. A Song of Ice and Fire: A Dance with
Dragons. New York:
Bantam Books, 2011.
VON MISES, Ludwig. The
Causes of the Economic Crisis. Auburn,
Alabama: Ludwig von Mises
Institute, 2006.
OPPENHEIMER, Franz. The
State: Its History and Development Viewed Sociologically. New York: Vanguard Press, 1926.
[1] Por
exemplo, Balon Greyjoy proclamou-se "Lorde Ceifador".
[2] Tal
sentimento é similar àquele encontrado na história de Santo Agostinho acerca do
diálogo entre Alexandre, o Grande, e um pirata:
Removida a justiça, o que são os reinos senão grandes assaltos,
e os roubos, senão pequenos reinos? O bando, em si, é formado por homens; é
governado pela autoridade de um príncipe; é unido pelo pacto de uma
confederação; o butim é dividido pela lei pactuada. Se, pela admissão de homens
abandonados, esse mal aumenta a tal grau que domina lugares, fixa
estabelecimentos, toma posse de cidades e subjuga povos, ele assume mais
claramente o nome de reino, porque essa é a realidade que lhe é manifestamente
conferida — não pela
remoção da cobiça, mas sim pela adição da impunidade.
Com efeito, foi uma
resposta adequada — bem como
essencialmente verdadeira — aquela que
um pirata capturado deu a Alexandre, o Grande. Quando esse rei lhe perguntou o que queria
dizer com "manter a posse hostil do mar", o pirata respondeu com orgulhosa
insolência: "O mesmo que tu queres dizer quando falas da conquista da Terra
inteira; mas, porque eu o faço com um pequeno e insignificante navio, eu sou
chamado de ladrão, ao passo que tu, que o fazes com uma grande frota, és
chamado de imperador."
[3]
De acordo com as premissas da Escola
Austríaca, é justamente a impossibilidade do cálculo econômico no socialismo
(isto é, a propriedade estatal/pública/comunal dos meios de produção) o que torna
esse sistema inviável e impraticável, ainda que as intenções sejam — ou aparentem ser — de caráter nobre.
Com a inexistência da
propriedade privada dos meios de produção, estes não podem ser objeto de trocas
(compra e venda; comércio); portanto, não há como ocorrer o surgimento de
preços de mercado (os quais revelam a escassez relativa dos fatores de produção
e os seus usos alternativos, i.e., os seus custos); os preços não podem ser
sinteticamente elaborados por planejadores centrais por meio de fórmulas
matemáticas que os simulem: as informações estão dispersas na sociedade e não
são estáticas (isto é, não se encontram em "estado de equilíbrio"), mas sim
dinâmicas; assim, sem a existência de preços é impossível a realização do
cálculo econômico — sem o qual a
organização econômica racional não se
concretiza, não se viabiliza. (N. do T.)
[4]
A linguagem
usada para descrever os povos do extremo norte revela sentimentos políticos
mais profundos. Aqueles do sul referem-se aos do norte como "selvagens
vulgares" (wildlings) e consideram bárbaro o seu modo não submisso de vida. Por outro
lado, aqueles do norte chamam a si mesmos de "povo livre" (free folk) e ridicularizam os povos que se encontram ao sul do Muro
— os quais são todos uma parte de um estado ou de outro — rotulando-os de "os
que se ajoelham" (kneelers).
[5]
Na trama, a adulteração da moeda se dá através de um método chamado de coin-clipping ("clipagem"), através do
qual corta-se uma pequena parte do metal precioso da moeda.
(N. do T.)
[6]
De acordo com os ensinamentos da Escola Austríaca, o ciclo de crescimento
econômico, de forma bem resumida, acontece assim: (1) poupança (abstenção do consumo presente com vistas a um benefício
superior no futuro); (2) investimento (uso da poupança direcionado a um fim
produtivo); (3) acumulação de capital
(criação de mais bens de capital — ou de produção —, o que aumenta a
capacidade produtiva e, portanto, a oferta de bens de consumo). (N. do
T.)

Daenerys Targaryen, Ser Jorah Mormont e os Dothraki

"Nós Não Semeamos." — Casa Greyjoy

Balon Greyjoy — O "Lorde Ceifador"

Davos Seaworth (à esquerda) e Salladhor Saan (no centro)

Cersei Lannister

Lorde Littlefinger

Robert Baratheon

Joffrey Baratheon

"Quando você joga a guerra dos tronos, ou você vence ou você morre."

Mapa do mundo de As Crônicas de Gelo e Fogo