Este artigo
é a segunda parte do texto É verdade que Keynes era um
liberal? Todas as referências bibliográficas estão contidas ao
final do referido artigo
Outras
razões para se pôr em dúvida o liberalismo de Keynes se devem à sua atitude, nas
décadas de 1920 e 1930, com relação aos "experimentos" ocorridos no continente
europeu no campo da economia planejada. Sobre as políticas econômicas do
nacional-socialismo alemão e do fascismo italiano, Keynes por diversas vezes manifestou
um ponto de vista surpreendente para alguém considerado um modelo de pensador
liberal. Nesse particular, estão em questão dois textos: o prefácio à edição
alemã de A
Teoria Geral (Keynes 1973b, pp. xxv–xxvii) e o ensaio "National self-sufficiency" (Keynes 1933; também
incluído em Keynes 1982a, pp. 233–46).
No prefácio,
Keynes afirma que está se desviando da "tradição inglesa clássica (ou
ortodoxa)", a qual — como observa — jamais prevaleceu por completo no
pensamento alemão. "Tanto a Escola de Manchester quanto o marxismo derivam em
última instância de Ricardo. ... Mas na Alemanha sempre houve amplos setores da
opinião que não aderiram nem a um, nem a outro. ... Talvez, portanto, eu possa
contar com uma menor resistência da parte dos leitores alemães do que da parte
dos ingleses ao oferecer uma teoria do emprego e da produção como um todo, a
qual apresenta divergências da tradição ortodoxa em pontos importantes" (1973b,
pp. xxv–xxvi).
Para seduzir
ainda mais os leitores da Alemanha nacional-socialista, Keynes acrescenta: "Os
exemplos e as explicações de boa parte do livro a seguir remetem principalmente
às condições vigentes nos países anglo-saxões. Não obstante, a teoria da
produção como um todo, que é o que este livro tenciona oferecer, se adapta
muito mais facilmente às condições de um estado totalitário, e não às condições
de livre concorrência e uma grande medida de laissez-faire." (1973b, p. xxvi).
Roy Harrod não menciona o prefácio em sua antiga
biografia de Keynes (1951).[1] Robert Skidelsky
alude a sua "redação infeliz", e deixa por isso mesmo (1992, p. 581). Alan Peacock escreve a respeito da passagem (sem
reproduzi-la) na qual Keynes menciona "que o governo alemão (nazista) à época
seria mais simpático às suas ideias sobre
o efeito das obras públicas na criação de empregos do que o governo britânico"
(1993, p. 7). A interpretação, contudo, vai de encontro ao sentido evidente do
texto: não é que os líderes nazistas fossem, por acaso, mais simpáticos a uma
das propostas de Keynes em especial, mas sim que, na opinião de Keynes, sua
teoria "se adapta muito mais facilmente às condições de um estado totalitário".
Peacock ainda diz que "há controvérsias
quanto ao prefácio ter sido traduzido corretamente ou não". Mas essa
controvérsia em nada influi no trecho aqui reproduzido, já que ele foi extraído
do manuscrito inglês de Keynes.[2]
Com
frequência, economistas da Alemanha nazista faziam referências a Keynes com o
intuito de defender as políticas econômicas ostensivamente antiliberais do
nacional-socialismo. Otto Wagener, que
tinha chefiado um departamento nazista de pesquisas econômicas antes da tomada
do poder, deu a Hitler uma cópia do livro de Keynes sobre dinheiro por considerá-lo
"um tratado bem interessante", o qual transmitia a sensação de que o autor estava
"bem adiantado e vindo em nossa direção mesmo sem estar familiarizado conosco, nem com
nosso ponto de vista" (citado em Barkai
1977, pp. 55, 57, 156).
O lançamento
da edição alemã de A Teoria Geral foi recebido com críticas
veiculadas em publicações que tinham conseguido guardar alguma distância das
políticas econômicas nazistas oficiais, ao passo que um apologista nazista na
cidade de Heidelberg saudou-o "como a justificação
do nacional-socialismo". O próprio Keynes comentou que as autoridades alemãs
haviam permitido a publicação "em um papel [que era] um tanto melhor que o de
costume, a um preço não muito acima que o de costume" (ambas as citações em Skidelsky 1992, pp. 581, 583).
Um exemplo
ainda mais relevante das dificuldades de classificar Keynes como um liberal é
seu ensaio "National self-sufficiency"
(Keynes 1933, 1982b, pp. 233–46).[3]
Nele, o laissez-faire e o livre mercado
são tratados com o desdém característico do Círculo de Bloomsbury. No passado, haviam sido vistos "quase que como uma
parte das leis morais", compondo o "fardo de enfeites obsoletos que o espírito
carrega para lá e para cá" (Keynes 1933, p. 755). Bem diferente, no entanto, é
a posição de Keynes com relação a doutrinas extremamente populares à época em
que escreveu. "A cada ano fica mais evidente que o mundo está embarcando em uma
série de experiências político-econômicas" à medida que os pressupostos do
livre mercado do século XIX são postos de lado. E quais são essas
"experiências"? Aquelas em curso na Rússia, Itália, Irlanda (sic) e Alemanha.
Até a Grã-Bretanha e os Estados Unidos têm se empenhado em adotar "um novo
plano" (p. 761).
Keynes é
estranhamente agnóstico com relação às chances de sucesso desses vários
projetos: "Não sabemos quais serão os resultados. Imagino que todos nós
estejamos prestes a cometer muitos erros. Ninguém é capaz de dizer qual dos
novos sistemas comprovará ser o melhor. ... Cada um de nós tem sua preferência.
Não acreditando que já estejamos salvos [sic], cada um de nós gostaria de ter
uma chance de encontrar um caminho para a própria salvação" (pp. 761–62).
Ele admite
que "no que diz respeito aos pormenores econômicos, em contraste aos controles
centrais", prefere "manter privado o máximo possível de decisão, iniciativa e
empreendimento" (p. 762). Contudo, "na medida do possível, não podemos estar
sujeitos à influência das mudanças econômicas ocorridas em outros lugares, para
podermos proceder às experiências de nossa preferência com vistas ao ideal de
república social do futuro" (p. 763).
À época em que Keynes escreveu
esse artigo, era costume associar a doutrina da "auto-suficiência nacional", que ele pregava, ao nacional-socialismo
e ao fascismo. Quando Franklin Roosevelt atacou a conferência econômica de
Londres, em junho de 1933, o presidente do Reichsbank,
Hjalmar Schacht, declarou ao Völkischer
Beobachter (jornal oficial do Partido Nazista), em tom presunçoso,
que o líder norte-americano tinha adotado a filosofia econômica de Hitler e de
Mussolini: "Tomando nas próprias mãos as rédeas de seu destino econômico, você
ajuda não apenas a si mesmo, mas ao mundo inteiro" (Garraty 1973, p. 922).
Keynes
admite que muitos desacertos estão sendo cometidos em todas as tentativas de
planejamento ao redor do mundo. Embora
Mussolini possa estar "adquirindo prudência e bom senso", "a Alemanha anda à
mercê de irresponsabilidades desenfreadas — embora seja cedo demais para
julgá-la."[4]
Ele reserva suas críticas mais severas à Rússia de Stalin, exemplo histórico
talvez sem precedentes de "incompetência administrativa e do sacrifício de
quase tudo que faz a vida valer a pena em nome de cabeças-duras" (p. 766). "Que
Stalin sirva como um exemplo pavoroso para todos que tentarem realizar
experiências", declara Keynes (p. 769).
Contudo, sua
crítica a Stalin — que até então já havia condenado à inanição milhões de pessoas
na Ucrânia, e que enchia de outros milhões os gulags de Lênin — é curiosamente
oblíqua e excêntrica. O que a
experiência socioeconômica soviética, juntamente com as demais, necessita acima
de tudo é de uma "crítica audaciosa, livre e desapiedada". Mas
Stalin
eliminou todas as mentes criticas e independentes, mesmo aquelas que, em geral,
lhes eram simpáticas. Ele produziu um
ambiente no qual os processos mentais são atrofiados. Os suaves espasmos do
cérebro ficam enrijecidas. A vociferação multiplicada dos alto-falantes
substitui as delicadas inflexões da voz humana. Os berros da propaganda
aborrecem até os pássaros e animais do campo, induzindo ao estupor. (p. 769)
"Cabeças-duras... cérebros enrijecidos...
aborrecimento... estupor". O leitor pode julgar por si mesmo se essa crítica —
parecida com a insistência com que John Stuart Mill repisava a suma importância
das discussões e debates intermináveis — é apropriada aos malfeitos praticados
por Stalin e pelo poderio soviético a partir de 1933.
Por fim, uma
passagem do ensaio, como consta da primeira versão, no Yale Review, é omitida em The
collected writings:[5]
"Mas exerço minhas críticas como alguém de coração amistoso e simpático às
experiências desesperadas do mundo contemporâneo, alguém que lhes quer bem e
que deseja seu sucesso, alguém que tem em vista suas próprias experiências e para
quem, em última instância, não há no mundo o que não seja preferível àquilo que
os relatórios financeiros costumam chamar de 'a melhor opinião de Wall Street'"
(Keynes 1933, p. 766).
O comentário
de Skidelsky a respeito do ensaio é
lacônico e irrelevante: "Como observou Keynes, nos artigos 'National self-sufficiency' [o ensaio foi
publicado em duas partes na revista The
New Statesman and Nation], as experiências sociais estavam na moda;
independentemente da procedência política, todas tinham em vista um papel
bastante dilatado para o governo e um papel extremamente restrito para o livre
comércio" (1992, p. 483). Nem de longe essa
descrição parece suficiente.
Durante as décadas
de 1920 e 1930, a insistência de Keynes nas maravilhas dos "experimentos" da
engenharia social acabou se tornando quase risível. Outro exemplo consta do
ensaio "The end of laissez-faire"
no qual ele escreve: "Eu critico o socialismo de estado doutrinário não porque
ele procure mobilizar os impulsos altruístas dos homens em prol da sociedade,
nem porque se afaste do laissez-faire,
nem porque exclua a liberdade natural do homem de se tornar milionário, nem
porque tenha a coragem de promover
experiências audaciosas. Todas essas coisas eu aplaudo" (1972, 290, grifo
meu).
A esta
altura, a pergunta que fica é: como pode alguém que expressou uma ávida
simpatia pelos "experimentos" de nazistas, fascistas e comunistas stalinistas,
e que reservava zombarias triviais ao livre funcionamento da sociedade do laissez-faire, ser considerado um
exemplo acabado de liberal, se é que se pode chamá-lo de liberal?[6]
No próximo artigo, as ligações de Keynes com
proeminentes comunistas.
[1] Em
extensa nota de rodapé, Michael Heilperin comenta a ausência de referências a
esse prefácio na obra de Roy Harrod (1951), maior biógrafo de Keynes à época em que Heilperin
escreveu. Em vista da repressão à liberdade acadêmica e a outras liberdades, na
Alemanha nazista, Heilperin chama o lisonjeiro texto de Keynes de "mancha
indelével em seu histórico de liberal" (1960, 127 n. 48).
[2] A
discussão envolve algumas frases que constam da edição alemã, mas não do
manuscrito de Keynes; contudo, não parece que essas frases incriminem ainda
mais o autor, a não ser pelo uso da expressão "eminente liderança nacional [Führung]",
com conotação positiva. Seja como for, é provável que Keynes aprovasse os
acréscimos. Ver Schefold 1980.
[3] A versão
constante em The collected writings é das edições de 8 e 15 de julho de
1933 da revista The New Statesman and Nation. Contudo, primeiro o ensaio
foi publicado na revista Yale Review. As citações que fazemos aqui são
desta segunda versão, Keynes 1933. Heilperin afirma que, "em vista de sua
brevidade, [esse ensaio] pode ser considerado um dos textos mais significativos
de Keynes" e comenta que o autor minimiza o caráter totalitário dos regimes em
discussão: "Estavam fazendo uma experiência — e é isso que torna maravilhosas
as coisas!" (1960, 111). Aqui, Heilperin consegue captar o espírito fundamental
desse trabalho e das ideias de Keynes ao longo de muitos anos.
[4] Essa e
outras críticas à Alemanha nazista foram omitidas da tradução alemã,
evidentemente que com a permissão de Keynes; ver Borchardt 1988. Embora ciente
da versão da Yale Review, Borchardt prefere citar o ensaio de The
collected writings, desse modo superestimando seu teor liberal.
[5] Este
trecho deveria constar de The collected writings depois de "Pois não se
pode esperar que eu aprove todas as coisas que hoje são feitas no mundo
político em nome do naturalismo econômico. Longe disso." (Keynes 1982b, 244).
Do mesmo modo, a versão em The collected writings omite alguns outros
trechos, de pouca importância, que aparecem na Yale Review. Não se vê
nenhuma indicação, por parte do editor da compilação, de que a versão nela
incluída seja diferente daquela publicada na Yale Review; além disso,
ele identifica erroneamente a edição da revista, datando-a do "verão de 1933".
[6] Ao longo
de sua carreira, Keynes foi um crítico incansável do princípio do laissez-faire. "The end of laissez-faire" (Keynes 1972, 272–294) é o
título daquele que talvez seja o ensaio mais polêmico que escreveu. À época
(1926), foi objeto de uma resenha de autoria do economista liberal italiano
Luigi Einaudi (de modo algum um "doutrinário"), que comentou que o folheto não
era exatamente original, nem era dotado de particular importância: a ideia de
que ele representaria algum tipo de ponto histórico decisivo era "a mais pura
fantasia" de críticos precipitados. Einaudi pergunta por que Keynes, "depois de
ter voltado a pôr a regra do laissez-faire
fora de combate, como princípio científico, não dedicou mais algumas páginas ao
exame da importância que atualmente se atribui a essa regra, como norma prática
de conduta? ... Será mesmo que a importância prática da regra do laissez-faire para a conduta dos homens
é hoje menor que ontem?" Mesmo que as tarefas do governo tenham se tornado
muito mais numerosas, essa concessão não "comprova a decadência da regra do laissez-faire, uma vez que é bem
provável que, no mesmo período da ampliação da atividade pública e
interferência em alguns setores da vida econômica, tenha ocorrido crescimento
bem maior de novos tipos de atividade, nas quais o valor da antiga regra do laissez-faire ainda permanece intacto"
(1926, 573).