N. do E.: o artigo abaixo foi originalmente publicado em setembro de 2013. Algumas informações foram acrescentadas para torná-lo ainda mais completo.
Ao contrário do que muitos imaginam, a crise financeira não começou em 2008,
mas sim em agosto de 2007, quando correntistas correram ao banco
britânico Northern
Rock para sacar seu dinheiro, levando o banco à falência. Esta
foi a primeira corrida bancária em grande escala ocorrida desde 1930.
No entanto, pela narrativa popular, o ano de 2018 marca o décimo ano da crise, pois foi em 2008 que a crise se manifestou de maneira realmente intensa.
São
inúmeros os analistas, comentaristas e, principalmente, acadêmicos que já se
aventuraram a dar seus vaticínios sobre a crise financeira americana. No entanto, ausente de todos os comentários
está aquele componente indispensável para toda e qualquer análise econômica minimamente
séria e sensata: a imparcialidade. E
presente em todos os comentários está aquele componente do qual, hoje em dia,
ninguém abre mão: a propaganda ideológica.
A
melhor maneira de se entender corretamente e de modo fácil todas as nuanças da
crise financeira americana é fazendo uma narração cronológica e desideologizada
dos eventos. Caberá ao leitor, no final,
concluir qual dos dois lados tem razão: se aqueles que dizem que tudo foi
causado por uma falta de regulamentação ou se aqueles que dizem que tudo foi
causado por excesso de intervenção estatal.
A tempestade
perfeita
A
crise financeira americana — a qual foi gerada pelo estouro de uma grande
bolha imobiliária — teve características grandiosas e espetaculares simplesmente
porque ela apresentou uma combinação de elementos até então inédita na história
de qualquer economia mundial. Nem mesmo
a colossal crise financeira japonesa do início da
década de 1990 — que também foi gerada pelo estouro de uma bolha imobiliária
— apresentou uma conjunção tão harmoniosa de elementos a ponto de produzir um estrago semelhante.
Comecemos
nossa análise com um gráfico que mostra o histórico da evolução dos preços dos
imóveis americanos. Mais
especificamente, o gráfico mostra a mediana dos preços de venda de imóveis novos.

Gráfico 1: mediana dos preços de venda de imóveis novos
O
gráfico traz vários detalhes interessantes. Até o início da década de
1970, quando os EUA ainda viviam sob alguns resquícios de padrão-ouro, os
preços dos imóveis permaneceram praticamente constantes. Durante a década
de 1970, os preços praticamente duplicaram, mas isso foi efeito da alta
inflação monetária ocorrida naquela década (que ficou conhecida como a década
perdida dos EUA), e não especificamente de uma bolha.
Já
durante a década de 1980 houve um mini-bolha, a qual estourou no início da
década de 1990 (aficionados por economia podem pesquisar sobre a retração do
mercado imobiliário americano nesta época).
A
partir de 1993, início do governo Clinton, os preços voltaram a subir
continuamente. E aceleraram vertiginosamente a partir de 2001 até
entrarem em colapso em 2008.
Logo,
partindo-se deste gráfico, dois eventos devem ser analisados:
1)
O que gerou a ascensão de preços a partir de 1993?
2)
O que gerou a súbita aceleração a partir de 2003?
A década de
1990
Foi
na década de 1990 que duas políticas governamentais voltadas exclusivamente
para o setor imobiliário — mais especificamente, para aumentar o número de
proprietários de imóveis — foram intensificadas. Digo "intensificadas" porque estas políticas
já existiam desde a década de 1970, mas foi somente na década de 1990 que elas
ganharam poder total.
Quais
foram estas políticas?
Fannie Mae e Freddie Mac
De
um lado, havia duas empresas nominalmente privadas, mas que atendiam
exclusivamente aos desejos do governo federal. Estas duas empresas se tornaram mundialmente conhecidas em 2008, quando
houve a quebradeira: trata-se da Federal National Mortgage Association
(popularmente conhecida como Fannie Mae)
e a Federal Home Loan Mortgage Corporation (popularmente conhecida como Freddie Mac).
Essas
duas empresas foram criadas pelo Congresso americano e são oficialmente
conhecidas como "empresas apadrinhadas pelo governo", pois usufruem vários
privilégios concedidos pelo governo. Primeiro,
vamos entender o que elas fazem; depois, veremos por que elas são assim
conhecidas.
Fannie
Mae e Freddie Mac são empresas voltadas exclusivamente para o mercado
imobiliário. Mais especificamente, elas
são empresas que existem para garantir liquidez
ao mercado de hipotecas. Elas não
emprestam dinheiro para compradores de imóveis; elas apenas compram estes empréstimos dos bancos.
Funciona
assim: um americano vai a um banco comercial qualquer e pede um empréstimo para
comprar um imóvel. Ato contínuo, o banco
cria dinheiro eletrônico e acrescenta estes dígitos eletrônicos na conta do
tomador de empréstimo, que agora utilizará este dinheiro para comprar um
imóvel. Por uma questão de regra
contábil, sempre que um banco concede um empréstimo, ele está criando um ativo
e um passivo: o ativo é o valor do empréstimo, o passivo é o dinheiro que ele
deu ao tomador de empréstimo.
Atenção,
pois esta parte é crucial: se um banco concede um empréstimo, o valor do seu
ativo aumenta. Quanto mais empréstimos
ele concede, maior o valor do seu ativo (e, consequentemente, do seu passivo). Por uma questão de regulamentação bancária
(tanto do Banco Central americano quanto do Banco da Basileia), há um limite
para o crescimento destes ativos. Em
termos técnicos, os ativos têm de manter uma proporção máxima em relação ao
patrimônio líquido do banco. Portanto,
um banco não pode sair concedendo empréstimos a rodo, pois ele rapidamente
atingiria este limite determinado.
E
é exatamente nesse ponto que Fannie e Freddie entram em cena. A função destas empresas era comprar dos bancos comerciais exatamente estes empréstimos (títulos
hipotecários) que eles concediam para compradores de imóveis.
Ou
seja: quando um banco comercial concedia um empréstimo imobiliário, ele
colocava em seus ativos o valor total do empréstimo. Mas se ele vendesse esse ativo (título
hipotecário) para uma terceira parte, este ativo sairia de seus livros
contábeis, ele receberia de volta a quantia que emprestou (na verdade, receberia
um valor mais alto) e, em seguida, estaria livre para voltar a fazer novos
empréstimos sem ultrapassar aquele limite entre ativos e patrimônio líquido estabelecido
pelo Banco Central e por Basiléia.
Em
resumo: Fannie e Freddie, ao comprarem as carteiras de empréstimos imobiliários
dos bancos, permitiam que os bancos dessem continuidade aos seus
empréstimos. Em outras palavras, após um
banco conceder um empréstimo para um comprador de imóveis, ele podia vender
este empréstimo para Fannie ou Freddie. Ato contínuo, este empréstimo não mais estaria nos livros contábeis do
banco, o qual estaria agora livre para fazer novos empréstimos.
Uma
vez em posse dos títulos hipotecários, Fannie e Freddie agora eram as
responsáveis pelos empréstimos. A
relação agora era entre elas e os tomadores de empréstimos imobiliários. Enquanto estes continuassem pagando suas
hipotecas, Fannie e Freddie continuariam tendo um fluxo de caixa. Se os tomadores de empréstimos dessem o
calote, Fannie e Freddie teriam enormes prejuízos. Seus títulos hipotecários seriam remarcados
para um valor zero e o patrimônio líquido de ambas seria severamente afetado.
Observe
que os bancos que fizeram os empréstimos originais estão fora da jogada. Eles não mais são os responsáveis pelo
empréstimo e não mais lidam com o tomador do empréstimo. Eles estão livres para voltar ao mercado imobiliário
e conceder novos empréstimos. Era uma
espécie de moto-perpétuo.
Fannie
e Freddie tinham duas opções: elas podiam manter em suas carteiras os
empréstimos que compraram dos bancos (e, assim, aufeririam as receitas) ou
podiam empacotar esses empréstimos e vender para investidores ao redor do
mundo. Esses empréstimos imobiliários
vendidos por Fannie e Freddie para os investidores ao redor do mundo ficaram
conhecidos como "títulos lastreados em hipotecas" (as famosas mortgage-backed securities).
Tradicionalmente,
quando uma pessoa pega um empréstimo para comprar um imóvel, cria-se uma dívida
entre ela e o banco. Se a pessoa irá
honrar sua dívida ou não, é problema do banco. No cenário americano, Freddie e Fannie fizeram com que os bancos não
mais se preocupassem com nada disso, pois eles sabiam que, tão logo concedessem
um empréstimo imobiliário, Fannie e Freddie estavam lá para comprar este
empréstimo a um valor acima do montante concedido.
Desnecessário
dizer que todo este processo — ao facilitar enormemente a compra de imóveis —
gerou muito mais empréstimos imobiliários do que normalmente ocorreria. Este direcionamento artificial de recursos
para o mercado imobiliário aditivou os preços dos imóveis.
Freddie
e Fannie garantiam todas as hipotecas que empacotavam e vendiam no mercado secundário, pois usufruíam uma linha especial de crédito junto ao Tesouro americano. Isso significa que, em tese, quem comprasse as hipotecas vendidas por Freddie e Fannie estava segurado pelo governo americano.
Esta garantia
implícita de proteção conseguiu atrair um contínuo financiamento de
investidores — que investiam dinheiro nestas empresas e compravam seus títulos
lastreados em hipotecas —, pois estes investidores sabiam que, caso houvesse calotes nas hipotecas, Fannie e Freddie cobririam tudo. E caso a coisa
degringolasse e Fannie e Freddie quebrassem, ambas seriam socorridas pelo governo americano.
(Para
se ter uma ideia da amplitude destas empresas, em setembro de 2008, quando o
governo americano efetivamente nacionalizou ambas as empresas, elas detinham
metade das hipotecas do país e praticamente 75% das hipotecas recém-concedidas.)
Por
fim, vale ressaltar que Fannie e Freddie estavam profundamente envolvidas em politicagem. A Fannie,
mais especificamente, foi utilizada por políticos democratas que queriam diminuir
as exigências que a empresa impunha para conceder empréstimos a pessoas de mais
baixa renda. Tudo em nome de estar
ajudando os "necessitados". Em setembro
de 1999, ninguém menos que o próprio The New
York Times publicou
uma reportagem dizendo que a Fannie Mae estava afrouxando as exigências de
crédito para as hipotecas que ela comprava dos bancos. Segundo o próprio Times, a iniciativa era perigosa porque iria
estender hipotecas para indivíduos cujo histórico de
crédito não são bons o suficiente para se qualificarem para empréstimos
convencionais. [...] Fannie Mae tem
estado sob intensa pressão do governo Clinton para dar sustentação a hipotecas
de pessoas de renda baixa e moderada. [...] [Embora] as novas hipotecas sejam
estendidas para todos os potenciais tomadores de empréstimos, [um dos objetivos
do programa é] aumentar o número de proprietários de imóveis entre as minorias
e os indivíduos de baixa renda, os quais tendem a apresentar um histórico de
crédito pior que os dos brancos não-hispânicos.
Ao se aventurar, mesmo que temporariamente, nesta nova área
de empréstimos, a Fannie Mae está assumindo riscos consideráveis. [...] Esta corporação subsidiada pelo governo
pode vir a enfrentar problemas caso haja uma recessão econômica, o que levará o
governo a socorrê-la.
Ou
seja, até mesmo o The New York Times
já havia percebido o risco envolvido nessa nova empreitada.
Não
é o intuito deste artigo entrar em detalhes sobre o funcionamento de Freddie e
Fannie, pois isso tomaria o espaço de um livro. Há uma ampla literatura dedicada exclusivamente ao assunto (neste site
há inclusive um artigo
dedicado exclusivamente a estas empresas) e nada do que foi dito aqui é controverso. Políticos democratas utilizaram estas
agências para garantir que minorias e pessoas de baixa renda, sem nenhum
histórico de crédito, conseguissem empréstimos para comprar a casa
própria. Estas seriam as mesmas pessoas
que, como veremos mais abaixo, começaram a dar calotes nos empréstimos.
CRA e ações afirmativas
Mas
apenas Fannie e Freddie não seriam capazes de estimular todo o mercado
imobiliário, e muito menos o mercado subprime
(subprime se refere a tomadores de
empréstimo com histórico de crédito ruim). É aí que entra em cena a segunda política governamental: ação afirmativa para empréstimos.
Fannie
e Freddie não eram as únicas entidades utilizadas para reduzir os padrões de
empréstimos. Agências governamentais de
vários tipos começaram a pressionar os bancos a fazerem empréstimos mais
arriscados, e tudo em nome da "igualdade racial". Caso se recusassem a assumir este
comportamento temerário, os bancos poderiam ser legalmente processados por
discriminação e racismo.
Em
1992, um estudo feito pela sucursal do Federal Reserve de Boston afirmou
ter encontrado claras evidências de que, mesmo levando-se em conta as
diferenças na capacidade creditícia de cada indivíduo, as minorias recebiam
menos empréstimos do que os brancos. Tal
estudo foi considerado como definitivo por aqueles já dispostos a acreditar em
sua conclusão, a saber: que os bancos americanos discriminavam negros e
hispânicos — mas, curiosamente, não discriminavam os asiáticos, que recebiam
ainda mais empréstimos do que os brancos.
Este
estudo ressuscitou uma lei conhecida Community
Reinvestment Act. Trata-se
de uma lei criada ainda no governo de Jimmy Carter, no final da década de 1970,
e que foi plenamente revigorada no governo Clinton. Esta lei deixou os bancos à mercê de
processos por discriminação caso eles não emprestassem para minorias em um
volume suficientemente alto, que satisfizesse as autoridades.
De
acordo com as regras do Community
Reinvestment Act (CRA), se um banco quisesse fazer qualquer alteração em
suas operações comerciais — fusão, abertura de uma filial, entrada em uma nova
linha de negócios —, ele deveria primeiro provar aos reguladores que ele, o
banco, já fez uma quantidade "suficiente" de empréstimos aos mutuários
preferidos do governo — no caso, minorias e pessoas de baixa renda.
E,
a partir de 1995, o governo americano passou a pressionar os bancos
para que fizessem empréstimos sem que pudessem verificar critérios minimamente
prudentes, como histórico de crédito do tomador de empréstimo, seu histórico de
poupança e a magnitude do pagamento da hipoteca em relação à sua renda. Os bancos não podiam nem sequer verificar a
renda do mutuário. Adicionalmente, o
Banco Central americano (Fed) havia dito aos bancos que a simples participação deste
mutuário em programas de aconselhamento de crédito, muitos dos quais são
financiados com fundos federais, poderia ser usada como "prova" da
capacidade desse mutuário de baixa renda honrar seus pagamentos hipotecários.
Em outras palavras, os reguladores bancários
federais exigiram que os bancos fizessem empréstimos ruins
baseando-se em padrões de crédito inexistentes.
Vale
novamente enfatizar que nada do que foi escrito até agora é matéria de
controvérsia ou de dúvidas. Toda a
literatura a respeito do CRA e das políticas de ação afirmativa impostas por
este decreto são de conhecimento público. Para detalhes mais profundos sobre o tema, recomendo este
artigo, bem como todas as suas referências bibliográficas.
A década de
2000 — a intensificação de tudo
Até
aqui, falamos apenas sobre duas políticas governamentais voltadas para
estimular a aquisição de imóveis: as agências hipotecárias Fannie Mae e Freddie
Mac, e o decreto CRA.
Estas
duas políticas governamentais ajudam a explicar por que houve uma bolha
imobiliária, mas elas por si sós não justificam toda a amplitude da bolha
imobiliária. Adicionalmente, como
mostrado no gráfico 1, foi só a partir da década de 2000 que os preços dos
imóveis realmente dispararam. Por quê?
Incentivos à especulação
Em
primeiro lugar, é crucial entender a questão dos incentivos.
A partir do momento em que os critérios
exigidos para se conceder empréstimos imobiliários foram artificialmente
relaxados por imposição do governo americano, e a partir do momento em que o
próprio governo adotou políticas que estimulavam a aquisição de imóveis, foi
apenas uma questão de tempo para que o setor
imobiliário se tornasse um território propício à especulação.
O
aumento na demanda por imóveis — estimulado pelo acesso artificialmente
facilitado aos financiamentos — gerou um inevitável e contínuo aumento nos
preços dos imóveis. Este aumento
contínuo, por sua vez, produziu o "inesperado" efeito de atrair especuladores
para o mercado imobiliário.
Tornou-se
extremamente comum um indivíduo adquirir um empréstimo, comprar uma casa, fazer
alguns aprimoramentos nesta casa e, apenas um ano depois, revendê-la a um preço
muito maior, entregando a hipoteca para o novo comprador que, seis meses
depois, faria a mesma coisa que seu antecessor. Ou seja, comprar um imóvel havia virado um investimento altamente
rentável e de ganho certo.
Aqueles
que não compravam com a intenção de revender passaram a utilizar suas casas
como um caixa eletrônico: sempre que o imóvel se valorizava, o indivíduo ia ao
banco e, utilizando o novo valor da sua casa como colateral, negociava um novo
empréstimo para gastar em bens de consumo, como carros e televisores de plasma.
Um
arranjo como este perdura enquanto os preços dos imóveis estiverem em ascensão. Se os preços começarem a
cair, duas coisas ocorrerão: a revenda do imóvel passará a dar prejuízo e o
valor da hipoteca será maior do que o valor do imóvel, o que impedirá qualquer
tipo de renegociação com os bancos e deixará o mutuário com um patrimônio
negativo. Em suma, todo o esquema
especulativo virá abaixo.
E não apenas
isso: dar o calote e abandonar o imóvel passará a ser a opção mais racional (e,
como veremos mais abaixo, foi isso o que ocorreu no final da década.)
Agências de classificação de risco
Mas
o que tornou possível essa contínua especulação? O que fez com que Fannie e Freddie fossem
capazes de comprar e revender títulos lastreados em hipotecas
ininterruptamente?
Como dito acima, em setembro
de 2008, ambas as empresas detinham metade das hipotecas do país e praticamente
75% das hipotecas recém-concedidas. De
onde vieram os fundos que permitiram isso? Resposta: de duas fontes.
Em
primeiro lugar, não se pode de modo algum ignorar a função deletéria exercida
pelas agências de classificação de risco, como Moody's, Fitch e Standard &
Poor's. Sem elas, a bolha imobiliária
certamente teria sido menor. Qual foi o
estrago que elas fizeram?
Para
entender, voltemos àquele exemplo prático dado logo no início do artigo. Um americano típico, John Smith, vai a um
banco qualquer e consegue um empréstimo para comprar um imóvel. Ato contínuo, este banco irá revender este
empréstimo (que é um ativo) para Fannie e Freddie. Ambas terão a opção de ou manter este ativo
ou revender este ativo. Na maioria das
vezes, como mostram os números do parágrafo acima, elas mantinham este ativo em
suas carteiras.
Porém, em vários casos,
elas empacotavam estes ativos e revendiam para investidores de todo o mundo, em sua esmagadora maioria
grandes conglomerados financeiros e grandes bancos de investimento.
Bear
Stearns, Lehman Brothers, Goldman Sachs, JPMorgan Chase, Merril Lynch, Morgan
Stanley, Citibank, Bank of America eram os compradores americanos mais famosos,
ao passo que Barclays, Royal Bank of Scotland e Northern Rock (Reino Unido),
BNP Paribas e Société Générale (França), Credit Suisse e UBS (Suíça), e
Deutsche Bank (Alemanha) eram os mais famosos compradores da Europa.
Esta
prática de empacotar ativos e revendê-los é chamada de securitização. O principal
problema com esta securitização é que ela misturava ativos bons (mutuários com
bom histórico de crédito) com ativos ruins (mutuários sem nenhum histórico de
crédito) no mesmo pacote. Logo, quem
comprava um pacote contendo ativos bons também acabava por tabela adquirindo
ativos ruins.
Esse empacotamento de ativos bons com ativos ruins passou a ser chamado de Collaterized Debt Obligation (CDO), algo que pode ser traduzido como Obrigação de Dívida Colateralizada.
Qualquer calote dado nos ativos
ruins afetaria sobremaneira os balancetes das instituições em posse destes CDOs.
Portanto,
a pergunta inevitável é: como estes grandes bancos foram seduzidos a comprar estes
ativos contaminados? Resposta: porque agências de classificação de
risco, como Moody's, Fitch e Standard & Poor's, deram classificação máxima
(AAA) para estes ativos.
O
que nos leva à próxima pergunta: por que estas agências cometeram erros tão
crassos? As respostas variam.
Há quem diga que, como durante todo o período
os preços dos imóveis só faziam subir e os títulos lastreados em hipotecas
estavam gerando grandes retornos, com pouquíssimos calotes, as agências optaram
pela decisão superficial de classificá-los de maneira extremamente
favorável. Há também quem diga que todos
os departamentos do governo federal americano que possuíam ligações com o setor
imobiliário e que estavam incentivando políticas de compra de imóveis fizeram
pressão neste sentido. Neste caso, as
agências de classificação de risco simplesmente não quiseram se opor a
iniciativas politicamente populares.
O
que realmente se sabe é que estas três agências de classificação de risco são
um cartel estritamente regulado pela SEC (a CVM americana). É a SEC quem permite a existência destas três
agências, e é ela quem regulamenta e decide quem pode e quem não pode entrar
neste mercado.
Na prática, isso significa que não pode surgir concorrência externa, pois o
governo não deixa. Quem vai ter cacife para bancar uma agência de classificação
de risco que seja genuinamente independente neste cenário altamente
regulamentado? Há um longo e extenuante
processo burocrático-regulatório, de modo que é impossível surgir uma agência
para confrontar as classificações destas três grandes.
Portanto,
é perfeitamente plausível imaginar que estas três agências não iriam querer
criar turbulência política e se indispor com o governo americano rebaixando a
classificação dos títulos hipotecários. Isso poderia colocar em risco seu privilegiado cartel (totalmente
protegido pelo governo americano) e, consequentemente, afetar seus portentosos
lucros.
O fato é que estas agências
merecem toda a culpa que lhes foi atribuída. Elas estavam apenas fazendo o que o governo lhes mandava.
O principal culpado de tudo
No
entanto — e este é o tema desta seção — absolutamente nada disso teria sido
possível caso não houvesse uma entidade com
o poder legal de criar dinheiro do nada e injetar este dinheiro no setor
bancário para que os bancos pudessem continuamente criar mais empréstimos.
Sem uma entidade alimentando todo este
sistema com dinheiro criado do nada, não teria sido possível que (1) os
empréstimos bancários para a aquisição de imóveis aumentassem continuamente por
15 anos; (2) que os preços dos imóveis disparassem, alimentando todos os tipos
de atividades especulativas; (3) que Fannie Mae e Freddie Mac fossem capazes de
atrair um volume cada vez maior de dinheiro de investidores por contarem com a
proteção implícita do governo; (4) que o decreto CRA fosse bem-sucedido em
obrigar os bancos a continuamente fazer empréstimos para pessoas com histórico
de crédito duvidoso.
Em
suma: sem um Banco Central criando dinheiro e dando este dinheiro aos bancos
para que estes concedessem empréstimos — e, com isso, fizessem com que a
quantidade de dinheiro na economia americana aumentasse continuamente —, não
teria como haver uma bolha imobiliária. Certamente, não uma bolha destas proporções.
Todo
este novo dinheiro criado pelo Banco Central americano (Fed) e multiplicado
pelo sistema bancário por meio do processo de reservas fracionárias foi
majoritariamente canalizado para o setor imobiliário. E, para intensificar ainda mais as
distorções, os critérios excessivamente frouxos para a concessão de empréstimos
— critérios estes gerados por políticas governamentais criadas exatamente com
este propósito — fizeram com que especulações e compras imobiliárias
excessivas parecessem investimentos geniais.
Portanto,
eis o resumo: as medidas governamentais visando à redução dos padrões de
empréstimos em conjunto com os privilégios usufruídos pelas para-estatais
Fannie Mae e Freddie Mac desviaram para o setor imobiliário uma fatia
extremamente volumosa de todo o dinheiro que o Banco Central e o sistema
bancário do EUA estavam criando. Para
tornar a tempestade ainda mais perfeita, as agências de classificação de risco
contribuíram para a bagunça concedendo classificação máxima para todos os
títulos imobiliários oriundos deste arranjo, principalmente aqueles títulos de
emprestadores sem nenhum histórico de crédito. Isso fez com que os grandes bancos americanos, e também os grandes
bancos estrangeiros, comprassem títulos hipotecários em quantias volumosas,
permitindo que Fannie e Freddie continuassem dando liquidez ao mercado
imobiliário, perpetuando a bolha.
Mas
foi o Fed, em última instância, quem tornou possível todo o boom artificial do
setor imobiliário, e foi todo o dinheiro por ele criado quem forneceu o principal
estímulo à subida estrondosa dos preços dos imóveis vista na década de 2000.
Anatomia do
colapso
Tendo
em mente todo este arranjo, e sabendo como tudo funcionava, podemos agora ver
como tudo ocorreu.
A bonança
Todo
o processo começou a ser desencadeado no final do ano 2000, quando houve o
estouro da bolha das empresas de tecnologia. Temendo uma iminente recessão, o Fed aumentou suas injeções de dinheiro
no sistema bancário para gerar uma redução nos juros. Estas injeções de dinheiro foram
intensificadas logo após os ataques terroristas de 11 de setembro de 2001. Durante este período, a taxa básica de juros
da economia americana caiu de 6,5% para 1%. E assim ficou até meados de 2004.
O
gráfico abaixo ilustra este período. A
linha azul, eixo da esquerda, mostra a evolução da taxa básica de juros da
economia americana. A linha vermelha,
eixo da direita, mostra a evolução da base monetária, que é uma variável sob total
controle do Banco Central, e que representa todo o dinheiro criado pelo Banco Central. Observe a aceleração ocorrida a partir de
2001.

Gráfico 2: evolução
da taxa básica de juros (linha azul, eixo da esquerda) e evolução da base
monetária (linha vermelha, eixo da direita).
Este
aumento na base monetária deixou os bancos repletos de dinheiro para ser emprestado. E emprestar foi o que eles fizeram, e
majoritariamente para o setor imobiliário.
O
gráfico abaixo mostra os empréstimos totais feitos pelo setor bancário (linha
azul). E mostra também os empréstimos
exclusivamente voltados para a aquisição de imóveis (linha vermelha). Observe a evolução desde 1980, e a grande
aceleração ocorrida na década de 2000.

Gráfico 3:
evolução do crédito total concedido pelo setor bancário (linha azul) e evolução
do crédito total concedido à compra de imóveis (linha vermelha).
Vale
observar que, de 2000 a 2008, o crédito total aumenta incríveis 100%, de US$ 3,5
para US$ 7 trilhões. Isso significa que o
sistema bancário, estimulado pelo Fed, jogou US$ 3,5 trilhões na economia
americana em apenas 8 anos. Para a
aquisição de imóveis foram direcionados "módicos" US$ 2 trilhões (de US$ 1,5
trilhão para US$ 3,5 trilhões).
Ou
seja, dos US$ 3,5 trilhões jogados na economia, US$ 2 trilhões foram para o setor
imobiliário. Acrescente a isso todas as
medidas governamentais citadas ao longo deste artigo, e realmente não há
absolutamente nenhum motivo para se estranhar a bolha imobiliária que foi
formada.
Isso
explica toda aquela elevação de preços observada no gráfico 1. De 1993 a 2006, os preços dos imóveis se
apreciaram acentuadamente. Em alguns
mercados específicos, até mesmo os preços das moradias mais simples se tornaram
astronomicamente altos. Esta subida nos
preços estimulava novos investimentos em mais construções de imóveis, o que
gerava um aumento na oferta de imóveis. E este aumento na oferta de imóveis viria, mais à frente, a exercer uma
pressão baixista nos preços dos imóveis.
O colapso
A
partir de meados de 2004, com a economia americana já recuperada da recessão de
2001, o Fed começou a reduzir o ritmo de injeções de dinheiro no sistema
bancário. Consequentemente, os juros
começaram a subir.
O
gráfico abaixo mostra esta correlação entre desaceleração do crescimento da
base monetária e aumento da taxa básica de juros.

Gráfico 4: evolução da taxa básica de juros (linha azul,
eixo da esquerda) e evolução da base monetária (linha vermelha, eixo da
direita).
Este
aumento da taxa básica de juros de 1% para 5,25% afetou as taxas de juros dos
empréstimos imobiliários.
Os juros das
hipotecas com taxas ajustáveis (linha vermelha) saem de uma mínima de 3,5% no
início de 2004 e vão para quase 6% (aumento de 71%) em meados de 2006. Já os juros das hipotecas convencionais, de
30 anos (linha azul), vão de 5,5% para quase 7% (aumento de 27%) neste mesmo período.

Gráfico 5:
evolução das taxas de juros das hipotecas com taxas ajustáveis (linha vermelha)
e evolução das taxas de juros das hipotecas convencionais, de 30 anos (linha
azul)
Este
aumento dos juros não só esfriou a demanda por imóveis como também elevou o número de calotes nas hipotecas.
Uma redução na demanda por imóveis em
conjunto com um acentuado aumento na oferta de imóveis gerou o inevitável: no
final de 2006, os preços começaram a cair. A
queda nos preços — na realidade, a percepção de que os preços não mais iriam
aumentar — arrefeceu toda a atividade especulativa. Pessoas que haviam comprado imóveis para
especular viram que a festa havia acabado. O que elas fizeram? Simplesmente
pararam de pagar suas hipotecas. Deram o
calote. Por quê? Porque elas haviam pegado empréstimos
extremamente generosos, que não exigiam absolutamente nenhum pagamento de
entrada. Elas simplesmente abandonaram
seus imóveis. Não perderam nada.
Já
outras pessoas pararam de pagar suas hipotecas simplesmente porque o aumento
dos juros havia tornado impossível continuar honrando suas prestações. Elas se tornaram inadimplentes.
A
combinação destes dois fatores fez com que os calotes totais nos empréstimos
imobiliários disparassem. Começou
timidamente em 2006. Disparou em
2007. Foi para a estratosfera em 2008.
De
2005 até o final de 2008, os calotes pularam de US$ 20 bilhões para US$ 170
bilhões. Um aumento de 750% em 4 anos.

Gráfico 6:
Inadimplência total dos empréstimos garantidos por imóveis
A
partir daí, o resto é história.
O
aumento nos calotes fez com que todos os bancos de investimento que haviam
comprados títulos lastreados em hipotecas repentinamente não mais auferissem
essa receita. O valor destes ativos caiu
para zero. Uma redução nos ativos sem
uma concomitante redução nos passivos fez com que vários destes bancos
sofressem uma brutal redução em seu capital (patrimônio líquido).
Com o capital afetado, os bancos simplesmente
pararam de conceder novos empréstimos, inclusive entre eles próprios no mercado
interbancário. Isso gerou o famoso
problema do congelamento do mercado de crédito. (Veja no gráfico 3 como a linha
azul se torna plana no primeiro semestre de 2008). Consequentemente, vários bancos começaram a
enfrentar sérios problemas de liquidez.
O estopim
Essa
crise começou a se tornar mundialmente visível em agosto de 2007. No dia
9 daquele mês, o banco francês BNP Paribas anunciou que
estava suspendendo saques em dois dos seus fundos que haviam investido
volumosamente em títulos lastreados em hipotecas americanas. Isso afetou
o banco britânico Northern Rock, que dependia exatamente destes fundos de
investimento para conseguir liquidez.
O
caso do Northern Rock é interessante porque ele resume perfeitamente o modus
operandi de todos os outros bancos à época: ele tomava empréstimos no mercado
financeiro internacional, utilizava esse dinheiro para conceder empréstimos imobiliários
(hipotecas), e então revendia essas hipotecas no para todos os bancos de
investimento do mundo (esse processo era conhecido como securitização). Em
agosto de 2007, quando a demanda dos investidores por hipotecas securitizadas começou
a cair forte, as receitas do Northern Rock desabaram. Essa escassez de dinheiro
fez com que o banco se tornasse incapaz de quitar os empréstimos que pegou no
mercado financeiro internacional.
Logo, sem receitas e sem conseguir um empréstimo de curto prazo no mercado bancário para rolar suas
dívidas, o Northern Rock recorreu ao Banco Central da Inglaterra para pedir um
empréstimo de 3 bilhões de libras.
Tudo parecia estar indo bem, exceto por
um detalhe: um informante dentro
do Banco da Inglaterra alertou a BBC
sobre a operação no dia 13 de setembro de 2007.
A notícia de que o banco estava insolvente se espalhou como fogo na
pólvora e, na manhã seguinte, houve uma corrida bancária ao Northern Rock, com
correntistas ávidos para sacar seu dinheiro. Foi a primeira corrida bancária em larga escala desde 1930. O governo britânico anunciou que iria
garantir todos os depósitos do banco. No
dia 17 de fevereiro de 2008, após o governo recusar
várias ofertas de aquisição pelos outros bancos, o Northern Rock foi
nacionalizado.
Daí
por diante, todo o castelo de cartas começou a desabar.
O
banco de investimentos Bear Stearns se tornou insolvente em março de 2008. O Tesouro americano orquestrou sua aquisição
pelo JP Morgan.
No
dia 7 de setembro, Fannie Mae e Freddie Mac foram nacionalizadas
completamente.
Na
semana seguinte, o Fed orquestrou a aquisição do Merril Lynch pelo Bank of
America.
No
dia 15 de setembro, o Lehman Brothers anunciou sua falência. Não houve socorro.
No
dia seguinte, a seguradora AIG, de alcance global, também anunciou que estava
sem dinheiro. O caso da AIG é
interessante. Ela repentinamente se
descobriu sem dinheiro não porque havia investido em títulos lastreados em
hipotecas, mas sim porque havia emitidos seguros
contra o calote de hipotecas (os chamados "credit default swaps"). Sempre que uma instituição era caloteada por
algum devedor, ela recorria à AIG, que havia emitido apólices contra esses
calotes hipotecários.
Com a súbita
disparada nos calotes, a AIG repentinamente foi para o vermelho.
E
por que a AIG havia emitido tantas apólices de seguro contra calotes de hipotecas? Porque ela havia sido informada pelo governo de
que os preços dos imóveis jamais cairiam, e havia também sido informada pelas
três agências de classificação de risco e que os títulos lastreados em
hipotecas eram AAA — isto é, extremamente confiáveis e seguros.
Ou seja, em troca desta segurança prometida,
a AIG emitiu várias apólices e coletou uma boa soma em prêmios. Até que tudo se reverteu, e
todos os bancos foram correndo reclamar suas indenizações.
No
total, até o fim do ano de 2008, o Fed viria a emprestar US$ 125 bilhões para a
AIG em troca de 80% da empresa. Segundo
o The New York Times, esta foi "a mais radical intervenção no setor privado em
toda a história do Banco Central".
A mudança radical do Fed
Após
todas estas intervenções, o Fed assumiu uma postura totalmente inaudita em toda
a sua história: ele simplesmente passou a comprar todos os títulos hipotecários
em posse dos bancos. Ou seja, ele passou
a imprimir dinheiro e dar aos bancos em troca dos títulos hipotecários em posse
destes bancos.
Isso limpou o balancete
dos bancos e fez com que a base monetária explodisse. No entanto, e felizmente, todo este aumento
da base monetária não se converteu em expansão do crédito. Ou seja, os bancos não jogaram todo este dinheiro
na economia. A oferta monetária continuou crescendo no mesmo ritmo de antes da crise.
A quase totalidade do
aumento da base monetária transformou-se em "reservas em
excesso". "Reservas em
excesso" são as reservas que os bancos mantêm voluntariamente depositadas
junto ao Fed, além do volume determinado pelo compulsório.
E por que os bancos fizeram isso? Por que eles preferiram manter o dinheiro no Fed a emprestá-lo? Porque o Fed passou a pagar juros sobre toda e qualquer quantidade de dinheiro
que os bancos voluntariamente deixarem parada neste mercado. Ou
seja, na prática, o Fed passou a pagar para os bancos não emprestarem esse
dinheiro.
Portanto, de um lado o Fed explodiu a base monetária; de outro, ele
colocou uma rolha no mecanismo de transmissão, fazendo de tudo para impedir que
essa explosão da base monetária se transformasse em uma explosão no M1 e no M2. Isso
foi uma prática completamente inédita nos anais da política monetária. Nenhum
Banco Central jamais havia feito isso na história do mundo. Nenhum manual ou
livro-texto de macroeconomia jamais discutiu essa possibilidade.
O
gráfico abaixo mostra a evolução da base monetária (linha azul) e das reservas
em excesso (linha vermelha), que representa o dinheiro que os bancos não
emprestaram ao público porque preferriam mantê-lo voluntariamente depositado
junto ao Fed, que passou a pagar juros sobre este montante.

Gráfico 7:
evolução da base monetária (linha azul) e evolução das reservas em excesso
(linha vermelha)
Toda
esta nova política adotada pelo Fed resultou em um generoso e gratuito subsídio
para o sistema bancário. No final, não
apenas seus lucros dos tempos da bonança foram mantidos, como os prejuízos
ainda foram socializados. Atualmente, os
bancos de Wall Street operam em um regime de risco quase nulo: eles fazem empréstimos
hipotecários, revendem os títulos das hipotecas para o Fed, recebem o dinheiro
de volta (com um lucro), e ainda deixam boa parte deste dinheiro recebido do
Fed depositado no próprio Fed, que paga juros sobre este
montante.
Por
causa de toda a intervenção governamental, toda a lambança acabou valendo a
pena para os bancos.
Conclusão e a diferença para o Brasil
Não
é o escopo deste artigo fazer digressões sobre como o governo americano e seu
Banco Central deveriam ter atuado durante a crise. Crises bancárias são um assunto vasto e
complexo, e merecem um artigo à parte (um esboço pode ser visto aqui e um mais completo aqui). Tampouco houve o intuito de fazer algum juízo
de valor. A única intenção foi mostrar,
sem ideologias ou partidarismos, como realmente se desenrolou todo o processo
que levou à formação de uma bolha imobiliária, como se deu seu estouro e como
isso afetou todo o sistema bancário.
De
posse de todas as informações aqui contidas, o leitor deve se fazer as três
seguintes perguntas:
1)
Todo este arranjo apresentado configura um sistema totalmente desregulamentado,
um genuíno laissez-faire, ou, ao contrário, representa um sistema fortemente
intervencionista, no qual políticos, burocratas e reguladores determinavam
regras e agitavam em prol de suas conveniências?
2)
Um sistema bancário que goza de uma garantia implícita dada pelo governo — de
que haverá socorro caso as coisas deem erradas — tende a apresentar
comportamentos mais temerários ou mais prudentes?
3)
Sem um Banco Central criando dinheiro e permitindo aos bancos manterem suas
expansões creditícias de modo crescente, será que tudo isso teria sido
possível?
As
respostas a estas perguntas têm de estar claras antes de se iniciar qualquer
debate a respeito da crise.
Por último, vale uma digressão: isso teria chance de ocorrer no Brasil?
À época, vários defensores do intervencionismo vieram a público, e com
grande júbilo, para dizer que o que havia ocorrido no sistema bancário americano
se devia à total falta de regulamentação do setor. E acrescentavam dizendo que,
no Brasil, isso jamais aconteceria, pois aqui o sistema bancário é extremamente
regulado.
Só que a realidade é bem diferente: no Brasil, ao menos oficialmente,
não é o governo quem garante o sistema bancário em caso de quebras, mas sim os
recursos do FGC (Fundo Garantidor de Crédito),
que é uma instituição privada e mantida
pelos próprios bancos. Já nos EUA, quem garante os bancos é o próprio
governo federal, por meio da Federal Deposit
Insurance Corporation, uma instituição estatal.
Ou seja, no Brasil, os bancos sabem que, se forem imprudentes, é o
próprio dinheiro deles que terá de ser usado para socorrê-los (o PROER da década
de 1990 nada tinha a ver com o comportamento dos bancos, mas sim com a radical mudança
do regime monetário, obra do próprio governo).
Já nos EUA, os bancos sabem que,
caso algo dê errado, o governo federal está pronto para socorrê-los, pois esta é exatamente sua auto-declarada função.
Qual arranjo pode ser considerado o mais intervencionista?