segunda-feira, 27 jan 2014
A
seguinte entrevista com Hans-Hermann Hoppe foi publicada na revista Wirtschaftswoche,
o principal semanário da Alemanha sobre economia e negócios, e foi conduzida
por Malte Fischer.
Professor Hoppe, ao redor do mundo estamos
vivenciando, novamente, uma crescente intervenção do estado tanto na economia
quanto na sociedade. Vários cidadãos
querem mais governos e menos mercado.
Como o senhor explica isso?
Se
há algo que a história nos mostra de maneira cristalina é que crises promovem o crescimento do estado. Isso é particularmente mais evidente em casos
de guerras e de ataques terroristas. Os
governos utilizam essas crises em proveito próprio para posarem de
solucionadores de problemas. Isso também
se aplica à crise
financeira. Ela forneceu aos
governos e aos bancos centrais a providencial oportunidade de
intervirem ainda mais na economia e na sociedade. Os políticos foram bem-sucedidos em atribuir
a culpa da crise ao capitalismo, ao mercado e à ganância.
Sem a intervenção dos governos, na forma de
programas de estímulos, e dos bancos centrais, na forma de injeções de
liquidez, o mundo não estaria hoje mergulhado em uma profunda recessão, como
nos anos 1930?
Há
esse juízo falso de que os governos e os bancos centrais podem ajudar a
economia com programas que supostamente a ajudem a se recuperar. Até mesmo na década de 1930, nos EUA, foram
implantados vários programas
de estímulos. Mas a Grande Depressão
realmente só acabou
após o fim da Segunda Guerra Mundial.
Nos anos anteriores à guerra, a taxa de desemprego jamais ficou abaixo
dos 15%. Os bancos estavam entesourando
o dinheiro que lhes fora entregue pelo Banco Central em vez de emprestá-lo.
As
circunstâncias atuais são similares. O
dinheiro não está indo para o mercado de bens; por isso os preços mal estão
subindo. Mas isso não significa que não
esteja havendo inflação. Basta você
olhar para as principais bolsas de valores do mundo e ver como elas estão se
comportando; aí você vai identificar para onde exatamente está indo esse
dinheiro criado pelos bancos centrais e entregue ao sistema bancário. A inflação está ocorrendo no mercado de ativos.
A bonança nos mercados de ações também é
uma consequência das taxas de juros negativas que desestimulam o ato de
poupar...
... e que colocam em risco
nossa prosperidade. Uma economia só irá
crescer de maneira saudável e duradoura se as pessoas estiveram poupando mais
do que consumindo. É necessário poupar
mais e consumir menos. Sem poupança, não
há investimentos viáveis.
Por quê?
Vou
dar um exemplo simples. Imagine Robinson
Crusoé e Sexta-Feira em uma ilha deserta.
Se Robinson pescar peixes e consumir somente alguns deles, mas não
todos, ele poderá emprestar para Sexta-Feira os peixes que ele poupou. Sexta-Feira, então, poderá se alimentar
destes peixes por alguns dias enquanto investe seu tempo na construção de uma
rede de pesca para ele próprio. Com essa
rede, Sexta-Feira poderá agora pegar um número tão grande de peixes, que ele
não apenas será capaz de alimentar a si próprio como também poderá devolver a
Robinson o mesmo número de peixes que este havia lhe dado. Mais ainda: Sexta-Feira, em princípio,
torna-se capaz de quitar seu empréstimo junto a Robinson, mais juros, e ainda
obter lucro na forma de peixes adicionais para si próprio.
Mas
o que acontecerá se Robinson, em vez de poupar, simplesmente comer todos os
peixes que pegou e, simultaneamente, der a Sexta-Feira certificados de papel
que, em teoria, podem ser restituídos em peixes? Se Sexta-Feira decidir ir até Robinson para
restituir seus certificados de papel em peixes, ele descobrirá que não há peixe
nenhum com Robinson. Sendo assim,
Sexta-Feira terá urgentemente de conseguir comida para si próprio e, consequentemente,
não terá tempo para finalizar a construção da sua rede. A construção da rede será um projeto
abandonado. O padrão de vida tanto de
Sexta-Feira quanto de Crusoé estará agora menor.
Ou
seja, todo este arranjo seria fisicamente impossível caso o empréstimo de
Robinson para Sexta-Feira fosse apenas um pedaço de papel denominado em peixes,
mas não lastreado por uma genuína poupança de peixes.
O que isso tem a ver com a nossa atual
situação?
Algo
similar ocorreu nas economias modernas na década de 2000. A expansão do crédito feita pelo sistema
bancário em conjunto com seus respectivos bancos centrais nada mais foi do que
um processo de criação
de dinheiro do nada. Tal processo de
criação de crédito reduziu artificialmente as taxas de juros e consequentemente
estimulou vários tipos de investimentos, para os quais não havia uma
correspondente poupança. As taxas de
juros artificialmente baixas que vigoraram (e ainda vigoram) tanto na Europa quanto nos EUA não apenas não
estimularam ninguém a poupar, como na realidade encorajaram todos a consumir desbragadamente
— exatamente como os peixes de Crusoé não foram poupados, mas sim consumidos
por ele.
O
aumento do consumismo em conjunto com uma menor taxa de poupança leva a um
aumento de preços e a um aumento do endividamento. Isso, por sua vez, faz com que os bancos
passem a restringir mais o processo de criação de crédito. E essa maior restrição no crédito, em
conjunto com o maior endividamento e os preços mais altos, gera um redução no
consumo e no investimento. Os projetos
que haviam sido iniciados e que até então pareciam lucrativos sofrem uma
repentina queda na demanda (lembre-se de que não havia poupança para dar
sustento a essa demanda futura). É aí
que a economia entra em recessão.
Dado que nada mudou no comportamento dos bancos
centrais desde então, podemos dizer que haverá uma nova crise?
Os
bancos centrais estão tentando resolver a crise criando mais dinheiro e
gerando mais crédito, ignorando completamente o fato de que a crise foi causada
justamente por excesso de criação de dinheiro e de crédito. Logo, a próxima crise será ainda mais severa
do que a última.
As autoridades monetárias, em especial o
Fed, prometeram que irão enxugar a liquidez no momento certo, antes que a situação
degringole.
Teoricamente,
isso é possível. Os bancos centrais
podem tentar reduzir a oferta monetária vendendo títulos do governo para o
sistema bancário. O problema é que, na
prática, isso até hoje nunca ocorreu.
Mesmo porque tal medida vai contra o objetivo dos bancos centrais, que é
o de manter as taxas de juros as mais baixas possíveis.
E produzir inflação?
Os
bancos centrais de todo o mundo estão se esforçando ao máximo para manter o
atual sistema monetário — que é todo baseado no dinheiro fiduciário — a todo
o custo. Receio que o próximo passo será
a eliminação do pouco que ainda resta da atual concorrência monetária global. Tal eliminação ocorrerá por meio de uma
centralização do dinheiro e do sistema bancário. No final, é bem possível que surja algum tipo
de banco central global, o qual irá manusear uma moeda única universal, resultante
de uma fusão entre dólar, euro e iene.
Livre da concorrência imposta por outras moedas, este banco central
global teria então ainda mais espaço para inflacionar. A crise não apenas não acabaria, como ainda retornaria
com força total em nível global.
Alguns economistas clamam por um
padrão-ouro com o intuito de amarrar as mãos dos bancos centrais.
Governos
e bancos centrais resistirão ferozmente a este arranjo. Na condição de monopolista estatal da
distribuição do dinheiro, bancos centrais não têm absolutamente nenhum
interesse em perder seu poder. Considero
um retorno voluntário ao padrão-ouro algo totalmente irrealista.
E quanto à China? O país quer estabelecer o renminbi como a
moeda de reserva internacional.
Para
a China, seria uma medida esperta lastrear o renminbi em ouro, pois isso
afetaria a dominância global do dólar.
Com um renminbi lastreado em ouro, os dias de dominância econômica dos
EUA e do dólar estariam contados. O
Ocidente, portanto, irá fazer todo o possível para impedir que a China adote
essa medida.
Na Europa, os governos e o Banco Central
Europeu (BCE) ignoraram a lei e agiram acima da lei para socorrer o arranjo do
euro. E não houve nenhum protesto
público na Alemanha contra isso.
Os
alemães aceitam passivamente receber ordens dos EUA sobre o que eles podem e o
que eles devem fazer. Os EUA possuem um
interesse vital em garantir que o euro sobreviva porque, para o dólar, é mais
conveniente ter um único concorrente a ter de competir com 17 moedas nacionais
europeias. No atual arranjo, os EUA precisam
recorrer a apenas um Banco Central, o BCE, para fazer pressão política e impor
seus interesses.
O socorro ao euro e a crescente concentração
de poderes em Bruxelas estão gerando inquietações nos europeus. Será que as elites políticas não estão
testando demais a disposição da população em aceitar ainda mais integração
política?
Governos
e estados têm a tendência de centralizar seus poderes. Na Europa, os poderes estão sendo
transferidos para Bruxelas com o intuito de eliminar a concorrência entre os
países. O sonho dos estatistas é um
estado mundial que imponha impostos e regulamentações uniformes, e que retire
totalmente dos cidadãos a capacidade de melhorar sua vida por meio de
emigração. Os europeus já perceberam
que, basicamente, a União Europeia nada mais é do que um enorme aparato de
redistribuição. Isso gera discórdia e
incita a inveja e o rancor entre os cidadãos de diferentes países.
O que podemos fazer quanto a isso?
Para
a causa da liberdade, o melhor seria se a Europa se desintegrasse no maior
número possível de micro-estados. Isso
também vale para a Alemanha. Quanto
menor a extensão espacial de um estado, mais fácil seria emigrar e,
consequentemente, menos intrusivo e coercivo teria de ser o estado. Afinal, seria de seu total interesse fazer de
tudo para que as pessoas produtivas se sentissem estimuladas a permanecer
dentro de seu território.
Estados
pequenos possuem vários concorrentes geograficamente próximos. Se um
governo passar a tributar e a regulamentar mais do que seus concorrentes, a
população emigrará, e o país sofrerá uma fuga de capital e mão-de-obra. O
governo ficará sem recursos e será forçado a revogar suas políticas
confiscatórias.
O senhor quer retornar ao "Kleinstaaterei", o
sistema de mini-países que vigorou na Alemanha no século XIX?
Apenas
veja a evolução econômica e cultural ocorrida naquela época. No século XIX, a área da qual a Alemanha hoje
faz parte era a principal região da Europa.
As grandes realizações culturais ocorreram em uma época em que não havia
um estado grande e centralizado. Os
pequenos territórios viviam em intensa concorrência entre si. Todos queriam ter as melhores bibliotecas, os
melhores teatros, as melhores universidades.
Essa região era significativamente mais avançada — tanto em termos
culturais quanto intelectuais — do que a França, que, àquela época, já possuía
um governo centralizado. À medida que
toda a cultura foi centralizada em Paris, o resto do país caiu na obscuridade
cultural.

Mas o livre comércio seria ameaçado pela
secessão e por esse retorno a um arranjo de nações fragmentadas
Muito
pelo contrário. Estados pequenos têm
necessariamente de comercializar. Não há
alternativas, pois seu mercado interno não é grande e nem suficientemente
diversificado para que a população possa viver de maneira autônoma e
independente. Se eles não praticarem um
livre comércio, morrerão de fome em uma semana.
É exatamente o mesmo fenômeno que ocorre com uma cidade pequena dentro
de um país grande. Se ela se fechar
completamente e não comercializar com as outras cidades, seus habitantes
morrerão.
Quanto
menor o país, maior será a pressão para que ele adote um genuíno livre comércio
e maior será a oposição a medidas protecionistas. Toda e qualquer
interferência governamental sobre o comércio exterior leva a um empobrecimento
relativo, tanto no país quanto no exterior. Quanto menor um território e
seu mercado interno, mais dramático será esse efeito. Se os EUA adotarem
um protecionismo mais forte, o padrão de vida médio dos americanos cairá, mas
ninguém passará fome. Já se uma pequena cidade, como Mônaco, fizesse o
mesmo, haveria uma quase que imediata inanição generalizada.
Adicionalmente,
estados pequenos e soberanos não podem permanentemente culpar forças externas
quando algo vai mal em suas economias.
Na União Europeia, Bruxelas é frequentemente culpada por todos os tipos
de malefícios vivenciados nos países da UE.
Já com estados pequenos e independentes, os governos teriam de aceitar a
responsabilidade pelos problemas vivenciados em seus próprios territórios. Isso gera um efeito pacificador nas relações
entre os países.
Mas se cada um destes pequenos estados
tivesse sua própria moeda, isso acabaria com a integração dos mercados de
capital.
Estados
pequenos não podem se dar ao luxo de utilizar uma moeda própria porque isso
elevaria enormemente os custos de transação.
É como se você tivesse de trocar de moeda todas as vezes que fosse de
uma cidade para outra dentro do mesmo país.
Isso seria um custo de transação irracional. Logo, tais estados teriam de se esforçar, de
forma natural, para adotar uma moeda em comum e que fosse independente de
governos e fora da influência de políticos e burocratas. Há uma grande probabilidade de que eles iriam
concordar em adotar como moeda uma commodity como o ouro ou a prata, cujo valor
é determinado pelo mercado.
Em
suma, a secessão também promoveria uma integração monetária e levaria à
substituição do atual sistema monetário baseado em moedas fiduciárias nacionais
— que flutuam entre si e se desvalorizam diariamente — por um padrão
monetário baseado em uma commodity totalmente fora do controle dos
governos. Assim, o mundo seria formado
por pequenos governos liberais e seria economicamente integrado por meio do
livre comércio e de uma moeda-commodity internacional. O Kleinstaaterei leva a mais
mercado e a menos intervenção estatal no sistema monetário.
Mas se a Europa fosse uma coleção de
pequenos estados, não seria correto dizer que, no cenário internacional, ela
não teria nenhuma influência, ao menos em relação aos grandes estados?
Essa
tese não se sustenta. Afinal, como é que
Suíça, Liechtenstein, Mônaco e Cingapura conseguem estar economicamente no
topo? A minha impressão é que estes
países são mais ricos do que a Alemanha, e que os alemães eram ricos antes de
embarcarem na aventura do euro. É
imperativo nos livrarmos desta falsa e perigosa ideia de que o comércio e os
negócios ocorrem entre estados. O
comércio e os negócios ocorrem entre indivíduos e empresas que produzem em
diversos pontos geográficos. Economias
não consistem de estados concorrendo com outros estados, mas sim de indivíduos
e empresas concorrendo com outros indivíduos e empresas.
Não é o tamanho de um estado o que determina
sua prosperidade, mas sim a capacidade e o preparo de seus cidadãos.
Na próxima e última parte da entrevista, o
professor Hoppe abordará a questão da ausência do estado e falará sobre as
possibilidades do funcionamento de um arranjo anarcocapitalista.