Coerção é um mal. Talvez seja necessário para a vida em sociedade. Nesse caso, será um mal
necessário. Seja como for, podemos
concordar que, tudo o mais constante, quanto menos coerção, melhor. Em um mundo ideal, perfeito, utópico, não
haveria coerção nenhuma. Como o estado é
um ente necessariamente coercitivo, segue-se que num mundo perfeito não haveria
estado.
Ainda não chegamos ao mundo ideal; nunca
chegaremos. Sempre haverá alguma coerção. Mas nem por isso o ideal morre. Na maioria das áreas da vida, quando o estado
impõe regras que vão além do direito individual, ele apenas atrapalha as
coisas. A formulação de leis e o aparato
bélico para garantir que elas sejam seguidas (chamo isso de "lei e ordem") são
serviços como tantos outros, que podem ser ofertados de maneira boa ou ruim. Que tal quebrar esse monopólio?
Reza a cartilha liberal clássica que as
características desse setor fazem com que o uso inicial da força seja
necessário. Pode ser; não tenho opinião
formada. Você também não sabe. No mínimo, temos que experimentar. Não precisa ser o mundo inteiro — ou o Brasil
inteiro — de uma vez. Bastaria um
território pequeno graciosamente cedido pelo estado (coisa que ele nunca fará, não importa quantas pessoas
tenha que matar para impedi-lo).
A experimentação, a ousadia de criar o
inexistente, essa atitude do espírito humano tão contrária à mentalidade estatal,
daria respostas a essa e outras perguntas da ciência política. Saberíamos
finalmente se a sociedade sem estado funciona.
Não
há respostas fora de nós
Lindo no papel, mas na prática a coisa não é
tão simples. Quando falamos de
experimentos sociais, imaginamos dois resultados possíveis: ou o experimento dá
certo e temos um mundo ensolarado em que todo mundo é feliz e as coisas
acontecem sem impedimentos; ou então ele dá errado e impera o caos. Mas e se o resultado apresentar — e ele
sempre apresenta — melhoras e pioras?
A magnitude do investimento em lei e ordem é
decidida por critérios políticos e o estado tem a pretensão (embora não a
capacidade) de estendê-las a toda a população gratuitamente (no consumo). Além disso, ele mantém câmaras legislativas
permanentes operando e criando leis, empregando não só os parlamentares eleitos
como toda uma horda de assessores e serviços como transporte. Suponho, então, que os gastos com lei e ordem
sejam superiores ao que seriam caso fossem serviços oferecidos sob o processo
de mercado (e em parte já são: seguranças privados, arbitragens não-estatais,
tribunais religiosos, etc.). Uma vez
liberalizado este setor, é provável que lei e ordem decrescessem, especialmente
no curto prazo, enquanto inovações e fracassos ocorreriam em grandes números. Com o tempo, no entanto, soluções mais estáveis
iriam sendo encontradas. A estabilidade
nunca é plena — devido a empreendedorismo e inovações —, mas aumenta.
Ou talvez o estado seja tão ineficiente que,
mesmo cobrando à força e inundando o mercado com seu serviço, lei e ordem aumentariam
sob o mercado, no qual vigoraria preço superior a zero (por outro lado, sem
impostos). Contudo, o mais provável é
que diminuíssem, ao menos num primeiro momento. Suponha então que os roubos sob uma sociedade
sem estado aumentassem 10%, mas as opções de lazer também crescessem e se
diversificassem; ou então que a saúde melhorasse; ou que a riqueza da população
em geral aumentasse.
O nível total de renda confiscada (que antes
era crime + impostos, e agora passa a ser só crime) pode diminuir, e a
imprevisibilidade desse confisco pode aumentar. Qual é melhor? Como comparar os diversos efeitos da mudança,
uns bons e outros ruins?
Não existe critério técnico, científico, que
responda a dilemas assim. Em qualquer
comparação entre duas realidades sociais nas quais uma não seja melhor em tudo
haverá espaço para discordâncias. Você
prefere mais segurança ou mais oportunidades? Mais estabilidade ou mais mobilidade? Há pessoas que precisam de rotina e ordem para
construir sua vida. Outras prosperam com
as oportunidades que só a incerteza e o risco dão. E não há teste científico que mostre quem está
certo. Às vezes, a discussão filosófica resolve
algumas das discordâncias; mesmo assim, concepções diferentes de vida e
sociedade sempre existiram e sempre existirão. O experimento social nos daria
conhecimentos novos, mas nenhuma resposta definitiva. E sob a dúvida, como dizer qual sistema é
melhor?
Ocorre que essa dúvida é um argumento em prol
de uma sociedade sem estado. Na ausência
de um ponto ótimo válido para todas as pessoas (entre risco e estabilidade,
entre segurança e riqueza etc.), com que critério se impõe qualquer um deles
sobre os demais? Se há um trade-off
entre lei e ordem e os demais bens da vida, então cada pessoa deve poder
escolher em que ponto desse trade-off
ela quer viver. O mercado refletirá
essas escolhas, levando como sempre a pontos de equilíbrio (sempre múltiplos e
setoriais) que, por sua vez, mudam de lugar conforme mudam as condições do
mercado.
As formas de vida e de organização social são muitas;
ao contrário de tantas ideologias que circulam por aí, apenas o libertarianismo
permite a todo mundo testar suas ideias e viver seus valores. Não quer dizer que todas as escolhas estão
certas ou têm o mesmo valor; muitos sonhos fracassarão, como é próprio dos
sonhos. A liberdade não garante a
felicidade de ninguém; garante o direito de fazer as próprias escolhas e arcar
com o custo delas. Você pode ser avesso
ao risco, como o estado-babá costuma ser. Pode até ser mais do que ele, mas suas medidas
de precaução não pesarão no bolso dos demais. E pode ser menos prudente; pode se lançar ao
risco para ver o que se esconde onde ninguém mais ousa ir; e se voar perto do
sol e cair, ninguém será obrigado a
te salvar. Uma vida em contato com o custo e o retorno real das próprias
escolhas; é isso que uma sociedade sem estado oferece.
A
miséria das anarquias reais
"Nós conhecemos alguns exemplos de anarquia, e
são todos péssimos. Olha a Somália!" O argumentum ad Somaliam precisa ser
respondido. O primeiro ponto que
ressalto é que, mesmo em meio ao caos do desmoronamento estatal, algumas coisas
melhoraram (veja aqui).
A telefonia e a internet só deslancharam
na Somália quando não havia mais um estado para impedi-los. O PIB cresceu. Um outro exemplo é favela de Kibera, no
Quênia, que por uma série de motivos foi abandonada pelo estado. É suja e densamente povoada (e ainda recebe
migrantes — bom sinal); no entanto, há um mercado vibrante, e serviços de
todos os tipos, mesmo de segurança, são negociados livremente.
Mais importante do que apontar os ganhos da
anarquia mesmo em situações de extrema pobreza é notar que há um viés de
seleção enorme nesses exemplos. Não é
por acaso que ela hoje exista apenas nos lugares mais pobres. São lugares tão conturbados e tão caóticos que
o estado simplesmente desmoronou; ou então tão pobres que o estado não tem
interesse em dominar. Em menor grau, o mesmo vale
para muitas favelas ao redor do mundo; a presença do estado é baixa porque não
há muito o que extrair – o que permite a ascensão de estados alternativos, como
gangues de tráfico ou milícias no Rio. Se o estado neozelandês abrisse mão de
uma vila sua, não veríamos o caos e a pobreza da Somália. Não é que a ausência de estado leve à pobreza;
é que o estado só permite a anarquia nos lugares mais pobres.
A
pluralidade das justiças
Eu, e suspeito que não só eu, recaio com frequência
num velho vício mental: pensar a lei estatal como um absoluto; uma regra que
pode ser justa ou injusta, binariamente, e que uma vez sancionada vira um
imperativo absoluto, que valerá sempre. Óbvio
que não é assim. Aliás, nós brasileiros
somos os criadores de dois patrimônios culturais inestimáveis que mostram o
quão relativa é a lei do estado (e, na verdade, de qualquer organização
impessoal): a "lei que não pega" e o jeitinho. Só porque está no papel, não quer dizer que
valha no mundo real. Regras ruins podem
(e devem) ser burladas para reduzir a ineficiência que produzem.
Em tese, o estado é absoluto e soberano. No mundo real, ele é mais uma entidade com
poder grande, mas limitado; não pune e nem previne todos os crimes, não faz
valer todas as leis. Ele tem custos. Ele pode ser mais ou menos eficaz não só na
aplicação mas também na qualidade das leis. Em um arranjo sem estado, você abre mão da
idéia de uma lei única e absoluta (que é ilusória), e de um poder inapelável e
invencível, da espada de Deus na terra. Em
troca você ganha sistemas que podem ser mais eficientes e mais de acordo com as
necessidades das pessoas. Troca uma
muleta mental pelo campo aberto da realidade.
Normalmente, estatistas e mesmo libertários
aferrados a uma concepção absolutista de lei natural enxergam a justiça como preta
e branca: ou uma lei é justa, ou é injusta. Em todos os conflitos possíveis há uma solução
racional e plenamente justa. Tudo que
foge dela é inaceitável. Discordo. Leis opostas podem ter cada uma o seu mérito.
Por exemplo: incitação ao crime deve ser proibida? E incitar ao crime com o uso de dinheiro? Difamação? Poluição visual? Diferentes respostas levarão a diferentes
arranjos sociais. O processo de mercado
permite a concorrência entre essas diferentes respostas — e a arbitragem entre
os diferentes sistemas —, enquanto o estado permite apenas uma resposta única,
não-testável e fixa.
Por mais que se especule, ninguém sabe como
seria uma sociedade anárquica moderna, sem monopólio territorial de lei e
ordem. Teremos que descobrir. A resposta conservadora é apostar sempre em mais
do mesmo. Ou então podemos experimentar
e ver no que dá; ousar e criar novas formas de convivência; replicar os modelos
de sucesso, que não impede a coexistência dos outros; fazer o que o estado,
essa tecnologia ultrapassada de resolução de problemas sociais, é incapaz de
fazer. Respostas antigas serão
destruídas e novas serão criadas. Como
será? Anarquize-se e veremos.