segunda-feira, 11 mar 2019
Um
dos erros mais frequentemente encontrados na maioria das análises ideologizadas
da ciência econômica é aquele que pressupõe uma visão estática da riqueza.
Quem pensa que a riqueza é estática cai no
erro de considerar que, quando uma pessoa se torna rica, ela e seus herdeiros
serão ricos — e cada vez mais ricos — para sempre.
Não
é necessário ir muito longe para encontrar um exemplo recente deste erro. O economista Thomas Piketty, bastante
em voga nestes tempos de demonização dos ricos, demonstra em seu deliciosamente
equivocado livro Capital
no Século XXI — o qual, obviamente, foi muito elogiado
por Paul Krugman — que é muito provável que exista uma tendência dentro do
capitalismo de que a rentabilidade do capital se situe acima da taxa de
crescimento da economia, o que significa que a classe capitalista irá se
apropriar de uma fatia cada vez maior da renda nacional, agravando as desigualdades
sociais.
Pior
ainda: Piketty também considera provável que os mais ricos dentro da classe
capitalista tenham maiores facilidades para obter uma taxa de retorno superior
àquela conseguida pelos capitalistas de menor dimensão, o que agravaria esse "curso
natural" do capitalismo de fazer com que os super-ricos (e seus herdeiros) se
apropriem de fatias crescentes da riqueza total.
Para
demonstrar sua teoria, Piketty recorre ao ranking de bilionários elaborado anualmente pela revista Forbes e chega à
seguinte conclusão: se agregarmos toda a riqueza possuída pela centésima
milionésima parte da população mundial adulta em 1987 (ou seja, as 30 pessoas
mais ricas do mundo em 1987) e compararmos esta riqueza à riqueza da centésima
milionésima parte da população mundial adulta de 2010 (ou seja, as 45 pessoas
mais ricas do mundo), chegaremos à conclusão de que esta riqueza cresceu a uma
taxa média real anual de 6,8% (já descontada a inflação).
Isso é o triplo do crescimento médio anual do
conjunto da riqueza mundial (2,1%).
Os
super-ricos, portanto, estão cada vez mais ricos, segundo Piketty. E estão mais ricos não por causa de sua
exitosa gestão empresarial, mas simplesmente porque acumularam uma enorme
quantidade de riqueza que é capaz de se auto-reproduzir como se estivesse no
piloto automático.
Como
diz o próprio Piketty em seu livro: "Uma das lições mais impactantes do ranking
da Forbes é que, a partir de um determinado valor de riqueza, todas as grandes
fortunas têm suas origens ou na herança ou no valor gerado por uma empresa já
estabelecida no mercado, e crescem a taxas extremamente elevadas —
independentemente de se seu proprietário trabalha ou não trabalha."
No
entanto, Piketty dá um salto lógico inadmissível: o fato de a riqueza da camada
mais rica da sociedade ter crescido a uma taxa média anual de 6,8% entre 1987 e
2010 não
significa que as pessoas ricas de 1987
sejam as mesmas de 2010 (ano em que ele escrevia seu livro).
E muito menos que sejam as mesmas de hoje.
E
isso faz toda a diferença em sua teoria.
Por
exemplo, se o indivíduo A foi a pessoa mais rica do mundo em 1987, tendo uma
riqueza estimada em 20 bilhões de dólares, nada impede que, em 2010, este mesmo
indivíduo já tenha se arruinado por completo, e que outro indivíduo, o
indivíduo B, tenha se tornado a pessoa mais rica do mundo, com uma riqueza
estimada em 40 bilhões de dólares.
Tendo
isso em mente, será que podemos concluir que a conservação e o acréscimo de
riqueza é um processo simples e automático, o qual não requer nenhuma destreza
pessoal da parte de seu proprietário? É
óbvio que não.
Por
sorte, não há necessidade nenhuma de ficarmos apenas especulando hipóteses
teóricas sobre o crescimento da riqueza dos super-ricos entre 1987 e hoje. Podemos
simplesmente analisar o que de fato ocorreu com os ricaços de 1987.
Será verdade que a riqueza deles cresceu
desde então a uma taxa de 6,8% ao ano, como afirma Piketty? Ou será que ela estancou ou até mesmo
retrocedeu, fazendo com que eles tenham sido desbancados por outros criadores
de riqueza?
Os dez homens mais ricos do mundo em 1987
Foi
em 1987 que a revista Forbes começou a elaborar seu ranking de bilionários.
Se você
olhar hoje aquela lista de 1987, provavelmente irá se surpreender: você não
conhecerá praticamente ninguém. E não, a
razão disso não é que a maioria daqueles bilionários morreu; a razão é que
praticamente todos eles viram seu patrimônio definhar de maneira considerável.
Comecemos
pelo homem mais rico do mundo em 1987: o japonês Yoshiaki Tsutsumi, que tinha
uma fortuna estimada em 20 bilhões de dólares. A última vez em que ele apareceu no ranking da Forbes foi no ano de
2006, e sua riqueza já havia encolhido para 1,2 bilhão de dólares. Descontando-se a inflação do período, isso
equivalia a 678 milhões em dólares de 1987.
Ou
seja, tomando por base o poder de compra de 1987, sua fortuna caiu de 20 bilhões
para 678 milhões entre 1987 e 2006, o que significa que sua riqueza encolheu
96% neste período. E, desde 2006, sua riqueza
continuou em irreversível declínio, de modo que ele hoje nem sequer figura no
ranking da Forbes.
No
entanto, segundo Piketty, a riqueza de Yoshiaki Tsutsumi deveria ter se
multiplicado por seis.
O
segundo homem mais rico do mundo em 1987 também era japonês: Taikichiro Mori. Na época, ele tinha uma fortuna estimada em
15 bilhões de dólares, o que o tornaria, em 1991, o homem mais rico do mundo,
superando Tsutsumi. Taikichiro Mori
faleceu em 1993 e legou sua fortuna a seus filhos: Minoru Mori e Akira
Mori. O patrimônio conjunto de ambos é
atualmente de 6,3 bilhões, o que equivalia a 3,075 bilhões de dólares em
1987. Ou seja, a riqueza encolheu 80%.
Não
consegui encontrar dados referentes às atuais fortunas dos homens (ou de seus
herdeiros) que ocupavam a terceira e a quarta posição da lista de 1987, os
também nipônicos Shigeru Kobayashi e Haruhiko Yoshimoto, com fortunas
estimadas em 7,5 bilhões e 7 bilhões de dólares respectivamente. No entanto, o fato de que ambos estavam
acentuadamente investidos no setor imobiliário japonês em 1987, e dado que este
setor vivenciou uma acentuada desvalorização no período — tudo combinado ao fato
de que não há quase nada na internet sobre eles (ou sobre suas famílias) —,
parece sugerir que ambos não tiveram melhor sorte do que seus conterrâneos
Tsutsumi e Mori.
O
quinto lugar da lista de 1987 era ocupado por Salim Ahmed Bin Mahfouz, cambista
profissional e criador do maior banco da Arábia Saudita (o National
Commercial Bank da Arábia Saudita). Naquele ano, o saudita gozava de uma fortuna estimada em 6,2 bilhões de
dólares. Em 2009, faleceu seu herdeiro,
Khalid bin Mahfouz, com uma riqueza estimada em 3,2 bilhões de dólares, que
equivaliam a 1,7 bilhão em dólares de 1987. Ou seja, um empobrecimento de
72,5%.
O
sexto lugar da lista era ocupado pelos irmãos Hans e Gad Rausing, donos da
multinacional sueca Tetra Pak. Ambos
detinham um patrimônio estimado em 6 bilhões de dólares. Atualmente (2019), Hans Rausing, já com 92 anos de
idade, possui um patrimônio estimado em 12 bilhões de dólares, e ocupa a discretíssima 112ª
posição entre os mais ricos do mundo. Gad morreu no ano 2000, mas estima-se que seus herdeiros possuem uma
fortuna de 13 bilhões de dólares. No
total, portanto, a fortuna de ambos passou de 6 bilhões de dólares para 25
bilhões. No entanto, descontando-se a
inflação do período, o enriquecimento de ambos foi muito menor: de 6 bilhões
para 12,90 bilhões, o que equivale a uma taxa média de rentabilidade anual de
2,5%. Muito abaixo dos 6,8% sugeridos por Piketty.
O
sétimo lugar era ocupado por um trio de irmãos: os irmãos Reichmann, proprietários
da Olympia and York,
uma das maiores imobiliárias do mundo. Sua riqueza também era estimada em 6 bilhões de dólares. No entanto, cinco anos depois, a empresa
protagonizou uma das mais estrondosas bancarrotas da história, a qual reduziu
seu patrimônio a apenas 100 milhões de dólares. Um dos irmãos, Paul, conseguiu se recuperar das cinzas e hoje a riqueza
de seus herdeiros está estimada em 2 bilhões de dólares, equivalentes a 925
milhões em dólares de 1987. Ou seja, uma perda de 84%.
A
oitava posição estava ocupada por outro japonês, Yohachiro Iwasaki, com uma
fortuna estimada em 5,6 bilhões de dólares. Seu herdeiro, Fukuzo Iwasaki, morreu em 2012 com um patrimônio de 5,7
bilhões, equivalentes a 2,8 bilhões em dólares de 1987: ou seja, uma perda
patrimonial de 50%.
Melhor
sorte teve o nono homem mais rico do mundo em 1987: o canadense Kenneth Roy
Thomson, proprietário da Thomson Corporation (hoje parte do grupo Thomson
Reuters). Naquele ano, Kenneth
desfrutava um patrimônio de 5,4 bilhões de dólares; quando morreu, em 2006,
havia conseguido incrementá-lo para 17,9 bilhões, equivalentes a 9,3 bilhões em
dólares de 1987. Neste caso, sua média de
retorno anual foi de 2,9%. De novo, muito
abaixo dos 6,8% certificados por Piketty.
Finalmente,
em décimo lugar estava Keizo Saji, com um patrimônio de 4 bilhões de
dólares. Saji morreu em 1999 com uma
fortuna de 6,7 bilhões de dólares, a qual, descontando-se a inflação do
período, equivalia a 4,6 bilhões em dólares de 1987. Ou seja, uma taxa média de retorno anual de
1,1%.
A extremamente complicada conservação do
capital
Ludwig
von Mises já alertava para a inevitabilidade deste fenômeno ainda na década de
1940:
Em uma economia de mercado, naquela em que
há liberdade de empreendimento, e ausência de privilégios e protecionismos
estatais, a riqueza de um indivíduo representa a recompensa concedida pela
sociedade pelos serviços prestados aos consumidores no passado.
E esta
riqueza só pode ser preservada se ela continuar a ser utilizada — isto é,
investida — no interesse dos consumidores.
Atribuir a cada um o seu lugar próprio na
sociedade é tarefa dos consumidores, os quais, ao comprarem ou absterem-se de
comprar, estão determinando a posição social de cada indivíduo. Os
consumidores determinam, em última instância, não apenas os preços dos bens de
consumo, mas também os preços de todos os fatores de produção. Determinam
a renda de cada membro da economia de mercado.
Se um empreendedor não obedecer estritamente
às ordens do público tal como lhe são transmitidas pela estrutura de preços do
mercado, ele sofrerá prejuízos e irá à falência. Outros homens que melhor
souberam satisfazer os desejos dos consumidores o substituirão.
Os consumidores prestigiam as lojas nas
quais podem comprar o que querem pelo menor preço. Ao comprarem e ao se
absterem de comprar, os consumidores decidem sobre quem permanece no mercado e
quem deve sair; quem deve dirigir as fábricas, as fornecedoras e as distribuidoras. Enriquecem um homem pobre e empobrecem um homem rico. Determinam
precisamente a quantidade e a qualidade do que deve ser produzido. São
patrões impiedosos, cheios de caprichos e fantasias, instáveis e imprevisíveis.
Para eles, a única coisa que conta é sua própria satisfação. Não se
sensibilizam nem um pouco com méritos passados ou com interesses estabelecidos.
Contrariamente
ao que muitos imaginam, e ao que Thomas Piketty pretende demonstrar, não é nada
simples conservar seu patrimônio em uma economia de mercado: este sempre estará
ao sabor (1) das volúveis e inconstantes preferências dos consumidores, (2) do
surgimento de novos concorrentes que podem acabar roubando sua fatia de
mercado, (3) de um possível reajuste (e posterior colapso) do preço dos seus
ativos e, é claro, (4) das políticas econômicas de sucessivos governos.
É teórica e empiricamente falso dizer que há um valor
acima do qual a acumulação de capital passa a ocorrer de modo quase automático.
Com efeito, a realidade chega a ser oposta: quanto maior for o patrimônio pessoal de um indivíduo, mais complicado será fazê-lo crescer. As oportunidades para reinvestir todo o seu
capital a altas taxas de retorno são muito escassas, a menos que se queira arriscar
e se aventurar em outros mercados, nos quais não se tem nenhuma vantagem
comparativa.
As
mesmas razões que fazem com que um estado grande seja um péssimo gestor de
capitais servem para explicar por que os bilionários vão ficando sem ideias e
aptidões para gerenciar sua fortuna — até o ponto em que não mais são capazes
de se reinventarem continuamente, acabando por ver seu patrimônio reduzido, nem
que seja apenas pela inflação.
Não é à
toa que a sabedoria popular a este respeito vale mais do que as elucubrações de
muitos economistas míopes: from clogs to clogs in three generations[1],
o que significa que a riqueza acumulada por uma geração já estará totalmente
dissipada na terceira geração.
Atualmente,
com efeito, nem sequer são necessárias três gerações. Bastam três décadas para se perder quase
tudo.
Para concluir
Hoje, os sobrenomes Tsutsumi, Mori, Reichmann, Iwasaki e Saji são praticamente
irrelevantes. Da mesma maneira, em 1987,
muitos dos homens mais ricos da atualidade — Bill Gates, Jeff Bezos, Larry Page, Amancio Ortega, Larry Ellison, Sergey Brin, Mark
Zuckerberg — estavam trabalhando em uma garagem, ou estavam fazendo faculdade,
ou estavam brincando no jardim de infância. Nenhum herdou sua atual fortuna. Veremos quantos deles seguirão na lista dentro de três décadas.
[1] Clogs é um tipo de sapato barato, feito inteiramente de
madeira e comumente utilizado por operários que realizam trabalho pesado.