No
Direito Romano clássico existe uma expressão em latim válida até hoje para o
nosso país:
Permittitur quod non prohibetur.
Significa
que o ato não-proibido por lei presume-se permitido aos particulares. No entanto, o que se vê na atualidade é a
crescente quantidade de atividades do nosso cotidiano que foram proibidas por
atos administrativos criados justamente por aqueles que possuem a lei como
limite de atuação.
Evitemos
a fadiga: não é necessário ler os burocráticos e prolixos livros de Direito
Administrativo para entender como as agências reguladoras estatais atrapalham
nosso dia a dia.
A
maioria dos cidadãos reclama dos preços dos produtos, da falta de concorrência
em setores fundamentais do mercado, da má utilização de verbas públicas e da
ineficiência dos setores
"privatizados" (e aqui não estamos falando de "livre mercado", mas sim de
um oligopólio extremamente regulado, em que houve concessões de monopólios
estatais para poucas e grandes empresas eficientes em fazer lobby, arranjo esse
que não permite nenhuma concorrência).
Finalmente chegou a hora de apontar alguns culpados: aqueles
funcionários públicos que não são políticos eleitos, mas que mesmo assim mandam
na vida de todos, e que na direção de agências possuem poder direto sobre a sua
e a minha vida.
Caso
ainda não tenham sido apresentados, com vocês as três agências reguladoras que
adoram atrapalhar sua vida.
1.
ANVISA
Aquele
carro de cachorro-quente que você tanto gostava não existe mais? Quer comprar
um simples remédio para tratar a doença da sua filha, mas ele não é legalizado
no país? Precisa de alto rendimento no esporte, mas importar o suplemento que
você precisa é crime? Agradeça a ANVISA!
A
Agência Nacional de Vigilância Sanitária, vinculada ao Ministério da Saúde,
alega (tentar) proteger a saúde da população ao realizar o controle sanitário
da produção e da comercialização de produtos e serviços que devem passar por
vigilância sanitária. Leia-se: comidas, remédios, suplementos alimentares, água
para consumo e drogas (partidos políticos estão liberados!).
Sabe
aquela lanchonete, o carro de pamonha, o picolé artesanal da praia e o vendedor
de fruta da sua rua? Eles provavelmente são ilegais e só continuam funcionando
graças à ineficiência do estado — algo que nesse caso merece ser comemorado.
Infelizmente,
às vezes os funcionários públicos decidem trabalhar e você já não pode comer
aquilo que bem entender ou comercializar uma simples fruta sem a devida
autorização. Foi o que aconteceu com esse violentíssimo e perigoso vendedor de
goiabas. Um claro perigo para a sociedade. Ao menos na visão do estado.
Atenção
para o detalhe: será feita uma investigação se houve abuso na
abordagem. Quanta reflexão é necessária para obter uma resposta quando 5
guardas armados imobilizam de forma violenta um cidadão por cometer uma
"infração" dessa gravidade? E ainda foi concluído que não houve nenhum tipo de
abuso.
Quando
é o estado quem dá o direito, é ele quem também tem o poder de tirá-lo. Que
poder tem a constituição perante esse tipo de abuso policial? Nesse tipo de
situação a tutela jurídica sempre chega tarde demais — você já perdeu a
mercadoria, já apanhou e já foi humilhado. Acabou, já era.
A
violência não se limita ao comerciante — afinal, quem gostava daquele produto
perde o seu fornecedor. Enquanto os
burocratas se preocupam com como você irá se defender dessas goiabas (tão
perigosas!), ninguém se preocupa em defender a liberdade do cidadão de se
responsabilizar por suas próprias escolhas.
Já
discuti aqui a proibição de suplementos alimentares. A criminalização no Brasil é feita de forma
ineficiente tanto na prática quanto na teoria, uma vez que não há lei no nosso
ordenamento jurídico que defina o que são drogas, nem o porquê de elas serem
proibidas.
O
Código Penal e o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas utilizam a
expressão drogas sem nenhuma vez citar quais são suas
substâncias. E é assim porque quem define o que são e quais são as drogas no
Brasil é a Anvisa, por meio de portarias — atos administrativos normativos de
pouca expressão no campo jurídico.
Nesse
sentido, é importante destacar que existe uma corrente doutrinária em nosso
país, ainda que minoritária, que defende a inconstitucionalidade dos crimes
relacionados ao comércio de drogas, uma vez que é necessária uma lei para
definir o crime e sua pena, o que não existe nesse caso.
De
um lado ou de outro, a Anvisa é a principal culpada pela patética guerra contra
as drogas no Brasil. E seu poder é ilimitado, pois ela pode continuar
elaborando portarias definidas segundo seus próprios critérios sobre quais
substâncias devem ser consideradas proibidas ou permitidas. Não há como domá-la.
Para
saber mais sobre os abusos da Anvisa recomendo a leitura deste
artigo e deste.
2.
Anatel
Se
o sinal do celular está ruim, se cada minuto com alguém de outra operadora
custa uma fortuna, apresento-lhe a principal culpada: a Anatel.
A
Agência Nacional de Telecomunicações alega promover o desenvolvimento do setor
no país. A Anatel tem poderes de outorga, de regulamentação e de fiscalização,
e deve, de acordo com suas diretrizes, adotar medidas necessárias para atender
aos interesses dos cidadãos — uma pena terem esquecido de informar quais são,
afinal, esses cidadãos.
Se
você acredita que a telecomunicação brasileira foi realmente privatizada, você
foi enganado. Diferentemente da Guatemala, nosso país abriu o
mercado de telecomunicações apenas para as comadres, para aquelas empresas que
aceitaram as suas regras, que prometeram obediência e apoio, que pagam os
pedágios necessários, e que, em troca, são totalmente protegidas contra
qualquer tipo de concorrência estrangeira.
As
empresas de telecomunicações brasileiras são os principais focos de reclamação
dos consumidores, tanto pelos preços, quanto pela baixa qualidade do serviço. O
que a maioria dos clientes dessas empresas não sabe é que a Anatel é a
principal responsável por deixá-los sem ter para onde correr.
O
oligopólio atual de telefonia e internet no Brasil é claro e transparente.
Grandes corporações que prestam serviços de qualidade nos mercados
internacionais — como a AT&T, Vodafone, Verizon, T-Mobile, Orange —
quando não são expressamente proibidas de entrar no mercado do nosso país, sofrem
com uma carga de dificuldades tão alta, que tal proibição se torna
desnecessária na prática. A carga tributária colossal, os encargos
trabalhistas, as exigências de registro, fiscalização e principalmente a
burocracia apagam o interesse de entrada de outras corporações no nosso
mercado. Simplesmente não vale a pena, por maior que seja o interesse em obter
lucro.
E
o pior é que nem o Tiririca está certo nessa, pois pior do que está pode ficar,
graças ao Marco Civil, pelos motivos que destaquei aqui mesmo.
Se
você está mais interessado em conhecer uma análise dos preços que pagamos e do que
não podemos comprar graças à Anatel, recomendo esse artigo do
mestre e amigo Klauber Pires, e outro do
sempre pertinente e admirado Fernando Chiocca.
3.
Ancine
Todo
mundo quer assistir a mais episódios da sua série favorita na TV por
assinatura, todo mundo quer mais salas de cinema, ingressos mais baratos e
menos desperdício de dinheiro público. Todo mundo. Ou melhor, quase todo mundo: a Ancine não acha
isso uma boa ideia.
Como
se não bastasse a tutela estatal e a regulamentação dos bens e serviços
necessários e essenciais para a população, o governo ainda quer crescer e
engordar mais um pouco regulando algo que nenhum brasileiro considera como
prioridade dentre os quase infinitos problemas nacionais: a produção
cinematográfica.
Vinculada
ao Ministério da Cultura, a Agência Nacional do Cinema tem como objetivo
principal o fomento à produção, à distribuição e à exibição de obras
cinematográficas e videofonográficas. O problema é que não é possível para
nenhuma empresa — e muito menos para o governo — fomentar a produção,
distribuição e exibição de todas as obras.
Logo,
quais obras você acha que serão mais fomentadas: aquelas que valorizam e
enaltecem o Brasil e a nossa cultura, ou a que critica seus problemas com uma
carga ideológica contra o governo? Será possível a Ancine fomentar a criação de
uma obra que critica o partido no poder?
Não
bastasse, a Ancine regula e fiscaliza as indústrias que atuam nessas áreas,
inclusive as empresas de TV por assinatura. Como é o caso da Lei 12.485, de 12 de setembro de 2011, que definiu
cotas de "conteúdo nacional" para as operadoras de TV por assinatura.
Nesse
tipo de regulamentação, a Ancine se atribui o poder de qualificar previamente
os conteúdos transmitidos pelos canais de TV, decidindo o que deve e o que não deve
ser considerado "conteúdo nacional". A expressão é utilizada com aspas,
pois a lei considera que, por exemplo, entrevistas feitas por jornalistas
brasileiros, com personagens brasileiros e comentários produzidos por
especialistas ou jornalistas brasileiros não servem para cumprir a quota
semanal de três horas e meia de "conteúdo nacional" no horário nobre.
Outro
exemplo bizarro é que os canais de esporte, mesmo transmitindo jogos, programas
e debates sobre clubes nacionais, da seleção brasileira de vôlei ou da equipe
de judô do Brasil, não servem para a cota de "conteúdo nacional".
Conteúdo
nacional não é mais o que for produzido no Brasil, por brasileiros e para
brasileiros; seu significado saiu do dicionário. Atualmente, "conteúdo nacional" é aquilo que
o governo decidir que seja.
Orwell
já havia nos alertado sobre o controle estatal da linguagem. Hoje, isso não mais parece ficção. O estado utiliza expressões como "função
social" ou "neutralidade da rede" e "conteúdo nacional" sem nenhum critério
lógico ou específico, simplesmente distorcendo seu significado para incluir
nele o conteúdo que mais convém para garantir seus plenos poderes.
Para
finalizar, uma dica: cada vez que o estado atrapalhar ou se meter na sua vida,
procure identificar qual agência ou órgão está agindo, e quem está por trás de
cada um deles. Quanto mais se regula, mais se torna necessário regular. Uma regulação sempre acaba levando a novas
regulações que visam a corrigir as distorções geradas pela regulação anterior. Esse ciclo vicioso tem de ser abolido.
(publicado originalmente no Liberzone)