A
semana passada marcou o início do 100º aniversário do início da Primeira Guerra
Mundial. Aquela guerra, que gerou mais
de
37 milhões de
cadáveres — e sem considerar as mortes por inanição e epidemias
relacionadas que ocorreram como consequência da guerra —, também destruiu os
sistemas políticos até então vigentes em vários países, deixando livre o
caminho para a implantação do fascismo e do comunismo na Europa.
Nos
EUA, e é claro também na Europa, a guerra levou a uma paranóia e a uma
repressão política raramente vistas no século anterior. Nos EUA, o governo Wilson e suas medidas contra a liberdade de
expressão e de manifestação geraram uma destruição em larga escala das mais
básicas liberdades americanas, algo que não havia sido alcançado nem mesmo
pelas leis
contra estrangeiros e contra críticas ao governo implantadas no século
XVIII, durante a quase-guerra naval contra a França.
Especialmente
para os americanos, a guerra e os mais de 100.000 americanos mortos lograram
apenas uma depressão econômica pós-guerra.
Ao passo que alguns europeus podiam ao menos alegar estar lutando contra
uma invasão física, os americanos lutaram em troca de nada — exceto para
defender alguns regimes autoritários contra ataques de outros regimes autoritários.
A
ideia de que a guerra tinha algo a ver com "democracia" era obviamente
mentirosa, mesmo à época; e, olhando em retrospecto, a alegação se torna ainda
mais ridícula quando se considera a ascensão do totalitarismo na Europa, que
foi estimulada pelo Tratado
de Versalhes.
Os
efeitos fatais da guerra, as medidas de repressão promulgadas por regimes
supostamente iluminados, e como a guerra pavimentou o caminho, vinte e cinco
anos depois, para sua ainda mais sangrenta segunda parte são questões que já
foram cobertas por vários
economistas e historiadores. A
guerra gerou revoluções no campo ideológico, na administração pública, no governo
e no próprio conceito de guerra. Poucas
dessas mudanças melhoraram a vida do cidadão comum, e a maioria delas gerou
apenas um desapreço pela vida humana e pelas liberdades humanas.
A
natureza revolucionária da guerra quase não mais é contestada hoje. No entanto, em vez de nos centrarmos apenas
na guerra em si ou em suas consequências, seria proveitoso considerarmos também
o que a guerra relegou à lata de lixo da história.
A economia do século burguês
Aquilo
que alguns historiadores hoje chamam de "o século da burguesia" se refere ao
período de noventa e nove anos entre as guerras napoleônicas e o início da
Primeira Guerra Mundial. De 1815 a 1914,
não houve nenhuma grande guerra na Europa, e o padrão de vida no continente
aumentou em uma intensidade muito além de tudo o que já havia sido testemunhado
ao longo da história. A
industrialização, a mecanização, e os consequentes aumentos na produtividade da
mão-de-obra se difundiram por todo o continente, gerando um enriquecimento até
então inédito na história humana.
Em
meados do século XIX, o livre comércio já havia se tornado predominante e ocorria
em um nível de inédita amplitude, com a mão-de-obra e o capital usufruindo uma
nunca antes vivenciada liberdade de movimento através das fronteiras nacionais. Na maior parte da Europa central e ocidental,
não era necessário passaporte para cruzar as fronteiras dos países. Com efeito, passaportes e postos policiais
nas fronteiras eram coisas associadas a países despóticos e mais atrasados,
como a Rússia.
Foi
durante este período que o mundo vivenciou o surgimento de escolas de
pensamento econômico liberais, com a ascensão dos cobdenistas (seguidores de Richard Cobden —
ardoroso defensor do livre comércio — e também conhecidos como os liberais de
Manchester) na Grã-Bretanha, os quais, começando com a associação que
defendia a abolição de tarifas sobre cereais,
lentamente conseguiram dobrar o domínio mercantilista da nobreza latifundiária
que se opunha ao livre comércio. A
ascensão da classe média, tanto em termos econômicos quanto em termo políticos,
foi sustentada por maciços movimentos populares que defendiam a implementação
das teses do liberalismo clássico por toda a Europa, movimentos esses que
demandavam maiores liberdades econômicas para eles próprios e menos subsídios
— financiados por tributos — concedidos às classes dominantes.
À
medida que o livre comércio foi se difundindo pelo mundo — e com isso
diminuindo as vantagens de se possuir colônias estrangeiras —, o imperialismo
também retrocedeu. Um movimento
internacional pela paz surgiu, e Cobden, rotulado de "o homem internacional", era
uma de suas celebridades.
Ao
mesmo tempo, vários luxos se tornaram acessíveis às classes médias, e isso
ocorreu em uma época em que quase todas aquelas coisas que hoje consideramos
triviais e rotineiras representavam grandes novidades. Foi durante aquela época que algo semelhante
a um "fim de semana" se tornou conhecido.
Para a maioria das pessoas, o descanso se limitou apenas ao domingo, mas
ainda assim foi a primeira vez na história humana em que os cidadãos comuns já
podiam se dar ao luxo não apenas de não trabalhar por algumas horas, como
também de gastar algum dinheiro com atividades de lazer, como uma pequena
viagem à praia, ou ir às compras, ou praticar esportes, ou ir a um museu, a um
teatro, ou a qualquer outro evento cultural.
Essa
nova realidade econômica também levou a grandes mudanças nas famílias. Pela primeira vez, um grande número de pais
podia bancar uma educação formal para seus filhos, seja por meio de escolas ou
por meio de livros e do autodidatismo. Mais lazer e mais renda também significava que
os pais podiam dar a seus filhos mais atenção, brincar mais com eles, ler
livros conjuntamente e praticar várias outras atividades familiares. Um número cada vez menor de crianças tinha de
trabalhar para ajudar a família a manter um nível mínimo de subsistência.
Com
a libertação econômica das crianças também vieram melhores condições de vida para
as mulheres, que se tornaram mais bem educadas e passaram a ser mais valoradas
por suas habilidades em efetuar tarefas complexas, como educar as crianças,
manter a higiene da casa (algo bastante trabalhoso em uma cidade do século
XIX), comprar alimentos duas vezes por dia (a geladeira ainda estava longe de
ser massificada) e muito mais.
Ademais,
homens e mulheres finalmente começaram a incorrer na "esquisita" prática de se
casarem por motivos de "sentimento e atração física", uma vez que o casamento
por motivos financeiros se tornava cada vez menos uma questão de vida ou
morte. Assim como o lazer aos domingos
permitia uma maior recreação ao ar livre, o tempo de lazer dentro da família
permitia aos adultos mais "recreação privada", a qual era complementada por 'manuais
de casamento', sendo os principais encontrados na França, que lembravam aos
homens que eles também tinham de satisfazer as necessidades sexuais da mulher.
A ascensão do imperialismo e o caminho para
Primeira Guerra Mundial
Naturalmente,
sexo, família e uma tarde na praia passaram a ser vistos por muitos políticos
conservadores e por "intelectuais respeitados" como frívolas perdas de
tempo. O lazer e o tempo dedicado à
família eram vistos como desvios de foco que impediam que mais energia fosse
dedicada a objetivos muito mais "honrosos", como a invenção de uma identidade
nacional por meio do poder do estado, da criação de símbolos nacionais, e do
estímulo a um orgulho nacional, bem como a prática de aventuras colonizadoras, a
construção de impérios além-mar e o domínio da arte da guerra estavam sendo
negligenciados.
Otto
von Bismarck, um inimigo declarado dos liberais, expressou seu total desdém por
esse estilo de vida pró-família quando declarou seu desprezo pelos liberais de
Manchester quando disse que "aqueles endinheirados de Manchester" estavam
preocupados não com a glória do estado-nação, mas sim em ganhar dinheiro.
Ao
final do século XIX, o liberalismo burguês já estava em declínio. Atacado de um lado pelos
marxistas e demais socialistas, e de outro por conservadores, nacionalistas e
imperialistas, as grandes potências da Europa mergulharam novamente no
mercantilismo, no nacionalismo e no imperialismo. A Partilha da África
foi uma atitude ilustrativa desse novo imperialismo, uma vez que as grandes
potências europeias se tornaram ainda mais agressivas em sua busca por novas
colônias. Enquanto isso, os britânicos
recrudesceram seu controle sobre a Índia ao mesmo tempo em que inventavam os
campos de concentração com o intuito de esfaimar os bôeres e
deixá-los submissos.
Ao
final do século XIX, Bismarck já estava totalmente dedicado a inventar e
implantar o estado assistencialista e em fazer com que a Alemanha se tornasse
um estado-nação unificado. Na virada do
século, um dos poucos liberais remanescentes, Vilfredo Pareto, da Itália,
declarou que o socialismo havia finalmente triunfado na Europa.
Na
década anterior à Primeira Guerra Mundial, toda a geração de liberais europeus,
dentre eles Gustav de Molinari, Cobden, John Bright, Herbert Spencer, Eugen
Richter e outros, já estava morta ou quase morta. Havia apenas alguns poucos jovens liberais
acadêmicos aptos a substituí-los.
Ao
mesmo tempo, barreiras comerciais voltavam a ser erigidas por toda a Europa à
medida que as grandes potências se voltavam ao imperialismo econômico
caracterizado pelo mercantilismo, pelas tarifas de importação, pelo controle de
fronteiras, por regulamentações e pelo militarismo.
Conclusão
A
Europa durante o século burguês certamente não era nenhuma utopia. As novas cidades eram repletas de doenças,
poluição e criminalidade. As ciências
médicas ainda não haviam alcançado os feitos do século XX e, obviamente, os padrões
de vida eram baixos se comparados aos de hoje.
No entanto, mesmo se considerarmos estes problemas — os quais, aliás,
ainda assolam várias sociedades mais atrasadas ao redor do mundo —, os enormes
ganhos obtidos pelos cidadãos comuns, graças à industrialização e à ascensão do
livre comércio, foram ainda mais difundidos pela ascensão do liberalismo
clássico, o qual ativamente procurou evitar a guerra, a repressão política, e o
intervencionismo econômico, pois não os via como sendo a maneira correta de se
alcançar uma sociedade mais próspera.
Com
efeito, o historiador Daniel Yergin se refere a esse período como a época da
"primeira era da globalização", e observou que "a economia mundial vivenciou
uma era de paz e prosperidade que, após a carnificina da Primeira Guerra
Mundial, passaria a ser lembrada como a era de ouro".
O
liberalismo já estava em profundo declínio em 1914, mas a Primeira Guerra
Mundial talvez tenha representado o último prego no caixão. Após a guerra, veio a depressão econômica na
Europa, a qual foi seguida por hiperinflação em vários países, instabilidade política,
declínio no padrão de vida e, finalmente, fascismo, comunismo e guerra.
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Leia
também:
As consequências ignoradas
da Primeira Guerra Mundial