segunda-feira, 29 jun 2015
Sempre
que um país passa por problemas econômicos, surge um grupo de economistas
dizendo que tudo pode ser corrigido caso o governo simplesmente desvalorize a
moeda — isto é, deprecie sua taxa de câmbio.
Não obstante não seja possível
encontrar um só exemplo de país que tenha saído da pobreza e se tornado
próspero depreciando sua moeda em relação às outras, tal "solução" segue impavidamente em voga. A desvalorização da moeda é uma panacéia que ainda atrai muitos
"pensadores" e continua sendo uma ideia extremamente popular entre alguns
círculos de economistas.
Aproveitando
o momento, façamos um exercício mental para analisar as prováveis consequências
da desvalorização. Vamos utilizar a
Grécia como exemplo.
Suponhamos
que a Grécia, que hoje faz parte da zona do euro, conseguisse de alguma forma
voltar a emitir um Novo Dracma, e que essa nova moeda se desvalorizasse rapidamente,
passando de um dracma por euro para dois dracmas por euro em um curto período
de tempo (um mês, talvez), o que representaria uma desvalorização de 50%.
Vamos
também supor que o governo utilize seus poderes coercivos para estipular que todas as obrigações existentes em euro,
tais como títulos e contratos trabalhistas, para todas as pessoas e entidades
na Grécia, sejam unilateralmente convertidas em dracmas na relação de 1 dracma para 1 euro.
O
dracma agora é uma moeda independente e com câmbio flutuante, e sua taxa de
câmbio está relativamente estável perto de 2 dracmas por euro (uma taxa até
bastante otimista).
Sendo
assim, o valor total da dívida do governo da Grécia, em termos de euro, cai 50% (repetindo: a moeda se desvalorizou 50% em relação ao euro, mas todos os passivos foram convertidos de euro para dracma à taxa de 1 para 1).
Consequentemente, as dívidas de todos os outros devedores na
Grécia, tais como empresas, bancos e pessoas físicas, também são reduzidas em
50% em termos de euro. (Se uma empresa
devia 100 milhões de euros, agora ela deve 100 milhões de dracmas. Mas como 1 dracma vale 0,50 euro, 100 milhões
de dracmas são 50 milhões de euros.)
A
princípio, isso não é um grande benefício para os endividados gregos, dentre
eles o governo, pois a renda deles, denominada em dracmas desvalorizados,
também caiu 50% em valores de euro.
Tanto a dívida quanto a receita tributária do governo foram
simultaneamente desvalorizadas, e o mesmo ocorre com os salários das pessoas e
suas dívidas.
No
entanto, não vai demorar muito para que as receitas tributárias, as receitas
das empresas e os salários das pessoas comecem a subir (em termos nominais) em
decorrência tanto da inflação monetária que agora o governo grego poderá causar (ao sair do euro e adotar uma moeda própria, o governo está mais livre para inflacionar a moeda) quanto da grande inflação de preços que será causada pela desvalorização da moeda.
Como
consequência de tudo, os calotes nas dívidas diminuirão. O declínio nos calotes irá permitir que os
bancos gregos, até então descapitalizados por causa de empréstimos ruins,
readquiram alguma saúde financeira. Para
completar, os ativos estrangeiros dos bancos gregos (como títulos do governo
alemão ou empréstimos feitos a empresas italianas e espanholas) irão dobrar de
valor em termos de dracma, o que irá melhor seus balancetes consideravelmente.
Com
a redução dos calotes, as falências corporativas também irão diminuir, o que
significa menos desemprego. Trabalhadores
gregos, cujos salários foram reduzidos à metade em termos de euro, agora estão
mais "competitivos" (isto é, recebem menos) que os de Portugal, Espanha e
Itália.
Por
outro lado, as empresas gregas voltadas exclusivamente para o mercado interno não
usufruirão grandes benefícios, pois os trabalhadores gregos não serão capazes
de comprar muita coisa com seus salários desvalorizados. Por causa da súbita desvalorização cambial, o poder de compra dos gregos despencou. O custo dos bens e serviços importados
dobrou, o que reduz ainda mais a renda disponível dos trabalhadores. Tudo o que foi produzido no país e que não foi consumido (pois a renda real da população caiu), será transformado em excedente exportável.
Aqueles
assalariados mais bem pagos da Alemanha e da Inglaterra, que querem escapar de
seus respectivos invernos e estão à procura de uma praia (ou mesmo de um local
barato para viver quando se aposentarem), trocarão a Espanha pela Grécia e
aproveitarão todas as ofertas sendo oferecidas em dracmas desvalorizados.
Sendo
assim, a Grécia vivenciará um forte aumento nos negócios e nas
contratações relacionadas ao turismo e, talvez, ao setor de exportação. Por causa disso, a economia parecerá estar
melhorando, e as receitas tributárias do governo estarão aumentando, ao menos
em termos nominais de dracmas. Os preços
ao consumidor subirão aproximadamente 20% no primeiro ano da desvalorização, e
os economistas aplaudirão efusivamente, pois a deflação de preços "foi superada".
Principalmente
por ter começado com valores pequenos em decorrência da crise, a bolsa de
valores da Grécia irá disparar. Mas ela
teria de subir pelo menos 100% apenas para se manter com o mesmo valor em
termos de euros.
Esse
cenário parece palatável, não?
Mas
há outros fenômenos ocorrendo. O que
acontecerá com todos os bancos alemães e franceses que fizeram empréstimos para
empresas gregas? O que acontecerá com
todos aqueles títulos do governo grego em posse dos bancos alemães? Os títulos e os empréstimos agora valem
apenas 50% de seu valor de face em termos de euro. Os bancos alemães e franceses terão de ser
socorridos, e milhões de correntistas alemães e franceses darão esse socorro
compulsório por meio de uma redução em suas contas bancárias (exatamente como ocorreu no Chipre).
Os
destinos turísticos na Espanha e no sul da Itália perderão clientes e, como
consequência dessa súbita perda de receitas, começarão a dar calotes em suas
dívidas. As indústrias de cimento e
naval de outros países europeus não conseguirão concorrer contra as importações
baratas da Grécia, e também começarão a dar calotes em suas dívidas. O desemprego nestes países irá subir.
O
trabalhador grego agora tem um novo emprego, mas seu salário, reduzido à metade
em termos de euro, não mais compra tudo aquilo que antes ele conseguia
comprar. Os preços internos aumentam continuamente, e,
embora seu salário também aumente em termos nominais, ele não acompanha a subida
dos preços. Os pensionistas gregos são
os mais afetados, principalmente aqueles cuja poupança estava nos bancos gregos
(e não em outros países da zona do euro).
Ao passo que seus semelhantes na França e na Alemanha tiveram uma perda
de 20% em suas contas bancárias (20% é o total de títulos gregos em posse dos bancos europeus), os poupadores gregos descobrirão que agora
compram aproximadamente 50% menos com sua poupança (por causa da desvalorização cambial e da inflação de preços crescente na Grécia).
O
sistema tributário grego certamente não será ajustado de acordo com a
desvalorização. A consequência será a de
que, com rendas nominais maiores, uma maior fatia dos ganhos será tributada. E o resultado final é que pessoas com renda
real mais baixa — e até então isentas — também terão de pagar imposto de
renda. Isso gerará um grande fardo sobre
toda a economia, o qual poucos serão capazes de identificar. Tradicionalmente, a culpa será atribuída aos
altos preços da energia importada.
Após
algum tempo — talvez alguns anos —, os salários dos trabalhadores gregos já
terão subido, em termos nominais, o bastante para acabar com aquela "vantagem
comparativa" inicial. Os impostos reais
mais altos começarão a introduzir uma persistente obstrução na economia grega.
Adicionalmente,
o sistema financeiro grego já se tornou deficiente e inconfiável. Após a desvalorização, ninguém mais está
disposto a conceder mais empréstimos em dracmas. Afinal, quem vai querer
correr o risco de ter seus ativos subitamente desvalorizados novamente? As taxas de juros domésticas já subiram e
estão altas, e o volume de empréstimos está baixo.
Grandes empresas ainda conseguem tomar
empréstimos em euros, mas isso não estará disponível para famílias e pequenas
empresas. As famílias, que já foram
prejudicadas uma vez, não irão manter sua poupança nos bancos gregos. O mais provável é que elas descubram maneiras
informais de poupar e investir sem recorrer ao sistema financeiro. Já as famílias mais sofisticadas irão
simplesmente utilizar os bancos alemães (mesmo porque os mais ricos já retiraram quase todo o seu dinheiro dos bancos gregos), e sua poupança e seu capital jamais
retornarão à Grécia.
Por
tudo isso, a economia grega apresentará uma baixa criação de capital, um
ambiente de investimentos totalmente distorcido, no qual apenas as grandes
corporações conseguem financiamento, e uma baixa criação de empregos. A economia volta a se estagnar. Consequentemente, o governo volta a incorrer
em déficits orçamentários, uma vez que as receitas tributárias começam a cair e
as demandas por serviços assistencialistas cresceram. Como o governo não mais consegue se endividar
em dracmas — só a taxas de juros proibitivas —, ele terá de se endividar em euros.
Mas isso também será difícil, pois o governo já se
mostrou inconfiável. A única opção
restante será aumentar ainda mais os impostos.
À
medida que essas dificuldades vão se acumulando, alguns economistas acreditarão
ter encontrado a solução: desvalorizar novamente! Essa ideia ganhará o imediato
apoio dos grandes exportadores e do setor de turismo, os quais adorariam voltar
a ter uma "vantagem competitiva" em termos de mão-de-obra barata.
Como esses setores já haviam se beneficiado
economicamente antes, eles se tornaram mais politicamente influentes. Por outro lado, os setores que foram
prejudicados pela desvalorização, como as empresas que dependem de importações
e as voltadas exclusivamente para o mercado doméstico, já perderam toda a sua
influência política. Sendo assim, o
sistema político passa a ser guiado apenas pela ideia de mais desvalorizações.
Com
a imposição de novas desvalorizações, todo o ciclo se reinicia: o setor
exportador e o setor turístico ganham um impulso temporário, mas todo o
restante dos trabalhadores gregos perde poder de compra, e seu custo de vida
sobe. A inflação de preços dá outro
salto. O imposto de renda continuará não sendo corrigido pela inflação — pois o governo precisa de todas as receitas
possíveis —, o que gerará um confisco cada vez maior da renda real das pessoas
e empresas, o que, por sua vez, prejudicará ainda mais os investimentos.
Já
os outros países da zona do euro muito provavelmente não ficarão passivos
perante os setores exportador e turístico gregos. É provável que imponham pesadas tarifas sobre
as importações e também sobre a conversão de euros em dracmas.
A
conclusão é que a desvalorização funciona apenas por algum tempo, e é benéfica
apenas para poucos setores muito específicos — e ainda assim apenas no curto
prazo.
Em
termos gerais, a desvalorização da moeda prejudica toda a população, pois esta
é roubada do seu poder de compra, é submetida a uma grande inflação de preços, e acaba ficando sem acesso a bens importados
de maior qualidade.
Um
governo que desvaloriza sua moeda está, na prática, fechando suas fronteiras
aos bens estrangeiros, isolando sua população (e prejudicando principalmente a fatia mais pobre, agora proibida de comprar produtos estrangeiros mais baratos), reduzindo sua renda, e
destruindo enormemente seu padrão de vida.
Economista
que realmente acredita que desvalorizar a moeda é o caminho para a prosperidade
está, na prática, dizendo que uma sociedade formada por uma minoria exportadora
e rica e por uma maioria que não tem nenhum poder de compra é o arranjo ideal. Está dizendo que uma redução compulsória da renda total da população
representa prosperidade e enriquecimento. Não faz absolutamente nenhum sentido.
O
que aconteceu com a
Argentina em 2002, quando a súbita desvalorização do peso fez com que fosse quase impossível para muitas mães comprarem leite para seus filhos, pode perfeitamente acontecer com a Grécia em 2015. É muito difícil uma desvalorização da moeda passar impune.
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Leia também:
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O sonho do governo grego: espoliar permanentemente os pagadores de impostos da União Europeia
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Autores:
Nathan Lewis é colunista de revista
Forbes, escreve sobre política monetária e tributária, e gerencia uma pequeno
fundo de investimentos de alcance global.
Leandro Roque é
o editor e tradutor do site do Instituto Ludwig von Mises Brasil.