Na
primeira parte deste artigo, vimos como o Fed aniquilou o mercado
interbancário, decretando, para todos os efeitos, o óbito da
federal funds rate. Então, depois de
encurralar a si próprio, qual será a saída para o Fed? Quais ferramentas estão
de fato ao dispor do banco central americano? Quais as reais alternativas de
Janet Yellen?
Antes de tudo, é preciso entender por que a taxa de juros
americana deveria ser elevada, isto é, por que apertar a política monetária.
Primeiro, por causa do óbvio: é imprescindível normalizar a
postura da política do Fed. As medidas expansionistas e não convencionais
inquietam o FOMC, não há dúvida. Mas ele jamais tornará restritiva a conduta da
política monetária enquanto julgar que a recuperação da economia americana
ainda é frágil.
Segundo, porque o Fed precisa cumprir o seu duplo mandato
de emprego máximo e estabilidade de preços. Caso a economia americana mostre
sinais de superaquecimento ou inflação de preços acima do tolerável — acima de
2%, provavelmente —, o FOMC será obrigado a elevar os juros para conter uma
escalada do CPI e um desarranjo da economia.
E quando será isso? De acordo com a própria Yellen,
o momento exato em que o FOMC normalizaria sua postura foi mudando ao longo do
tempo. Em 2008, os juros permaneceriam em zero "por algum momento". Ao passar
dos anos, a linguagem adquiriu um tom mais específico, "por um período mais
estendido de tempo", depois "meados de 2013", "ao fim de 2014" e então "meados
de 2015".
A verdade é que o FOMC perdeu grande parte da credibilidade
que ainda lhe restava devido aos seus constantes adiamentos na mudança da
política monetária pós-crise financeira. Quando o QE1 estava para acabar,
afirmaram que não haveria mais afrouxamento quantitativo. Quando o QE2 chegava
ao seu término, alegavam que não haveria mais nenhuma rodada de QE. Afirmaram
que a Operation Twist seria encerrada em setembro de 2012, mas quando chegou o
prazo, prolongaram-na.
Ofereceram orientação baseada em datas específicas, mas
acabaram abandonando essa estratégia. Por fim, estipularam limites econômicos
objetivos — desemprego abaixo de 6,5% e inflação em 2% —, mas, quando eles
foram atingidos, o FOMC inventou novas justificativas, ponderando que as
estatísticas não forneciam informações suficientes sobre o estado do mercado de
trabalho.
Em todas as instâncias, o Fed sinalizou X e fez Y. Das duas,
uma: ou está mentindo deliberadamente ou a hesitação em elevar a federal funds rate denota uma economia
frágil, que não se sustentaria com uma taxa de juros acima de zero — uma
política mais contracionista poderia descarrilar a economia americana e
derrubar o mercado financeiro, instaurando o pânico novamente.
Retomaremos este ponto — se o Fed está propositalmente
postergando uma elevação de juros — mais adiante. Por ora, assumiremos como
premissa que Janet Yellen decidirá de fato subir a federal funds rate em 2015. Quando esse dia chegar, o FOMC é
resoluto ao afirmar que dispõe de todas as ferramentas necessárias. Será?
Quais as opções na
mesa de Janet Yellen?
Na reunião dos dias 16 e 17 de setembro, o FOMC divulgou ao
público os Princípios e Planos da Normalização da Política (Policy Normalization Principles and Plans).
Isso não quer dizer que a normalização ocorreria logo. Dentro de sua postura de
orientação futura, o Fed apenas quis sinalizar ao mercado que, chegado o
momento de normalizar a conduta da política monetária, seu norte seriam os
seguintes princípios e planos:
1) Quando as condições da economia e a perspectiva
econômica permitirem uma política monetária menos acomodatícia, o Comitê
elevará a banda-alvo para a FFR.
2) Durante a normalização, o Federal Reserve
pretende mover a FFR para dentro de sua meta principalmente por meio do ajuste
da taxa de juros paga sobre o saldo de reservas em excesso (Interest
on Excess Reserves, IOER, guarde essa sigla).
3)
Durante a normalização, o Federal Reserve
pretende usar o programa de compromisso de recompra reverso overnight (overnight
reverse repurchase agreement facility, RRP, guarde essa sigla)
e outras ferramentas suplementares à medida necessária para auxiliar no
controle da FFR. O Comitê somente usará o RRP enquanto for preciso para
auxiliar a controlar a FFR.
4) O Comitê pretende reduzir o ativo do Federal
Reserve de forma gradual e previsível, principalmente por meio do abandono
da política de reinvestir o pagamento do principal.
5) O Comitê espera começar reduzir progressivamente
seu ativo depois de iniciar a elevação da FFR, mas sempre dependendo da
evolução da condição e da perspectiva econômica.
6)
No momento, o Comitê não se propõe a vender as
hipotecas em seu ativo (mortgage-backed securities, MBS) como parte do processo
de normalização, embora possam ocorrer vendas bastante limitadas no
longo prazo.
7)
O Comitê pretende que o Federal Reserve detenha,
no longo prazo, apenas a quantidade de títulos de dívida necessária para
implementar a política monetária eficaz e eficientemente, possuindo principalmente
Treasuries e minimizando, assim, o efeito do ativo do Fed na alocação de crédito
ao longo dos diversos setores da economia.
À primeira vista, tudo parece muito bem pensado e
esquematizado: o Fed tem um plano detalhado e o colocará em prática assim que
for preciso. Basta apertar alguns botões e puxar algumas manivelas, e as
engrenagens da economia responderão conforme esperado. Simples.
Na verdade, o plano do banco de Yellen tem mais furos que
um queijo suíço. Já antecipando a conclusão da análise a seguir, o programa de
normalização delineado pelo FOMC é incapaz de elevar de fato a FFR, tem o
potencial de aprofundar os desequilíbrios e excessos no balanço do Fed e no
mercado interbancário e será absolutamente deficiente para lidar com condições
econômicas mais adversas — como no caso de uma escalada na inflação de preços.
Na melhor das hipóteses, os Princípios e Planos de Normalização do Fed serão
inócuos.
Dissequemos então ponto por ponto do plano do FOMC —
perdoem a profundidade técnica da análise que se segue, mas ela é essencial
para entender o porquê da conclusão acima.
Juros sobre reservas
em excesso
O racional de pagar juros sobre as reservas em excesso é
estabelecer um piso para a federal funds
rate — por que um banco irá emprestar a outro por uma taxa menor do que a
que suas reservas são remuneradas pelo Fed? Desde o fim de 2008, a IOER paga 25
pontos-base sobre o saldo em excesso das instituições depositárias.
Há dois agravantes nessa estratégia. O primeiro é que o
pagamento de IOER acaba incrementando ainda mais as reservas em excesso,
exacerbando o problema, ao invés de amenizá-lo — a receita dos juros é
acrescida ao saldo das reservas dos bancos depositadas no Fed.
Em segundo lugar, o FOMC não pode elevar esse suposto piso
sem limite. Existe um teto para a
taxa de juros sobre reservas em excesso (IOER), embora o Fed não o reconheça
explicitamente. E qual seria esse teto? O ato de pagar juros sobre reservas
acarreta uma despesa no resultado do Fed. Com um saldo de mais de US$ 2,6
trilhões de reservas em excesso, uma IOER de 0,25% implica em um pagamento de
US$ 6,5 bilhões em juros.
Considerando que o ativo de US$ 4,5 trilhões do Fed rende
cerca de 2% ao ano — decorrente de Treasuries e MBS com taxas majoritariamente
pré-fixadas —, o banco central americano registra uma receita anual com juros
de US$ 86,5 bilhões. Descontadas as despesas de operação, o Fed remite todo o
lucro anual ao Tesouro americano.
Façamos os cálculos. Se o FOMC elevar a IOER para 1%, o Fed
incorrerá uma despesa de US$ 26 bilhões. Se der uma pancada na IOER e subi-la
para 2%, a despesa com juros vai para US$ 52 bilhões. Seria aceitável para o
Fed consumir quase três quartos da sua receita com pagamento de IOER, levando
em conta que tal despesa aumentaria ano após ano, uma vez que o pagamento da
IOER é acrescido ao saldo de reservas, sobre o qual a própria IOER incide?
Estimar com precisão qual seria o teto da IOER é
desnecessário. Mas podemos inferir que a estratégia de usá-la para elevar
indiretamente a FFR é bastante limitada. O Fed conseguiria apenas incrementos
módicos na IOER — algumas dezenas de pontos-base —, nada que pudesse
realmente impactar a economia americana e trazer a FFR a níveis mais normais —
algo entre 3% e 5%.
Mas podemos analisar essa estratégia por outro prisma.
Ignorando por um momento as limitações expostas acima, a política de juros
sobre reservas em excesso tem funcionado na prática? Afinal de contas, ela foi
instituída lá em 2008. Desde então, teve ela êxito em sustentar um piso à federal funds rate? Deixemos o gráfico
abaixo responder a indagação.

Com a exceção de alguns breves momentos, a FFR jamais foi
cotada no piso de 25 pontos-base, sendo que, no último ano, não passou sequer
de 13 pontos-base. Empiricamente, a IOER já está fracassando.
Reverse Repurchase
Agreement
Depois de marginalizar o interbancário e assegurar sua
própria impotência para controlar a federal
funds rate, o Fed buscou criar outra taxa de juros de curto prazo por meio
da qual pudesse influenciar indiretamente o mercado interbancário — e logo o
mercado financeiro como um todo.
A RRP é uma linha de crédito a taxas pré-fixadas em
depósitos overnight, pela qual o Fed toma dinheiro emprestado, entregando
títulos de seu ativo como colateral, com a promessa de recomprá-los em uma data
futura, daí o nome reverse repurchase
agreement — é "reverso" porque nesse arranjo o tomador é o próprio Fed, e
não os bancos.
Essa ferramenta
suplementa a IOER porque ela abrange uma lista muito mais ampla de instituições
qualificadas a aderir ao programa, como as GSE (government-sponsored
enterprises, Fannie Mae e Freddie Mac) e fundos de money market, os quais —
por motivos sobre os quais não nos interessa entrar em detalhes — estão
impedidos de receber juros sobre os saldos de reservas depositados no Fed.
Dessa forma, o FOMC acomodou mais uma enorme gama de
entidades financeiras e de quebra abriu um mercado cativo e seguro para
estacionar dinheiro redundante com juros garantidos — normalmente cinco pontos-base
— e com a tranquilidade de emprestar à instituição mais segura do planeta, o
próprio Fed, dono da impressora de dólares.
Quando o programa começou, em setembro de 2013, não havia
limites para o montante que cada instituição poderia entregar ao Fed. Mas após
muitas críticas — veja este artigo
de Sheila Bair, ex-presidente do FDIC — e a própria constatação do FOMC de que
o RRP causaria uma distorção ainda maior nas taxas do mercado interbancário,
decidiu-se por um máximo de US$ 300 bilhões por operação.
Assim como a IOER, as taxas de juros fixadas nas operações
de RRP não estão livres de restrições. O Fed não pode oferecer ao mercado juros
tão atraentes porque pressionaria o lucro do banco, além de criar um potencial ímã
para o mercado financeiro em momentos de crise — em um cenário de credit crunch, para quem os solventes
vão preferir emprestar: ao Fed de risco zero ou ao banco XPTO possivelmente
quebrado?
Term Deposit
Facility
Dentro do ferramental suplementar disponível, o Fed vem
testando outro programa inovador: o chamado Term Deposit Facility (TDF), ou
Programa de Depósito a Prazo. Segundo o FOMC, tais depósitos facilitarão a
implementação da política monetária por prover uma nova ferramenta pela qual o
Federal Reserve possa administrar a quantidade total das reservas mantidas
pelas instituições depositárias.
Fundos alocados nesses depósitos a prazo são removidos do
saldo de reservas dos participantes durante todo o termo do depósito, drenando,
assim, reservas do sistema bancário. Esse é o racional do novo programa.
Ao contrário do RRP, o TDF visa principalmente manipular o
volume de reservas — a taxa de juros fica em segundo plano. Mas para estimular
as instituições depositárias a aderir ao programa, o FOMC vem oferecendo taxas
de 26 a 30 pontos-base, ligeiramente superiores ao que paga a IOER. Com
trilhões de dólares estacionados no Fed, qualquer ponto-base adicional é lucro.
A última oferta de TDF alcançou um volume de US$ 400 bilhões por um prazo de
uma semana, rendendo 30 pontos-base.

À primeira vista, cinco pontos-base não parecem muita
coisa. Mas considerando a magnitude dos volumes depositados, a última oferta,
por exemplo, rendeu aos bancos cerca de US$ 38 milhões em uma única semana.
Nada mal, considerando que o único trabalho foi dizer "sim, dai-me juros" ao
FOMC. Algum dia, talvez, o Occupy Wall Street mudará de alvo; Maiden Lane nº 44
parece ser o endereço mais apropriado.
A impossibilidade de se elevar substancialmente as taxas de
juros se aplica perfeitamente ao programa TDF. Há um limite. Os juros pagos
sobre os depósitos a prazo pressionam o balanço do Fed e acabam aumentando
ainda mais o nível de reservas dos bancos — efeito prático idêntico ao da
IOER.
A alegação de que o TDF "drena reservas do sistema
bancário" tampouco se sustenta, pois não passa de uma mera tecnicalidade. Ora,
quando uma instituição adere ao programa, o Fed realoca o montante específico
para uma conta com a etiqueta "depósitos a prazo" — um trivial registro
contábil, crédito em depósitos a prazo e débito no saldo de reservas. Essa
artimanha não drena dinheiro do sistema bancário coisa nenhuma, por mais que Bernanke
alegue o contrário.
O passivo do Fed não diminui com essa operação. O volume de
dinheiro mantido pelos bancos no Fed não se altera — aliás, aumenta, por conta
da remuneração paga —, apenas troca de "etiqueta". Como essa tecnicalidade
impacta a "base monetária" — menos reservas, menor é a base monetária —,
alguns analistas, precipitadamente, afirmam que o Fed estaria efetivamente
adotando uma postura contracionista.

As bruscas oscilações na base monetária são resultado
direto das operações de TDF. Não há nenhuma mudança de postura do Fed, apenas
tecnicalidades contábeis.
Por que é falho o
plano de normalização do Fed
O pagamento de juros sobre reservas em excesso (IOER), o
compromisso de recompra reverso overnight (RRP) e os depósitos a prazo (TDF)
são formas de tentar controlar alguma taxa de juros e influenciar a FFR — e a
partir dela as demais taxas do mercado — sem precisar vender um único papel do
seu ativo.
Por meio das taxas oferecidas pelo Fed nesses programas,
espera-se impor um piso à federal funds
rate: até hoje isso não aconteceu.
Por meio do TDF, espera-se drenar reservas do sistema: isso
acontece apenas temporariamente —
durante a vida útil dos depósitos a prazo — e se ignorarmos a tecnicalidade
contábil já apontada.
Da definição dada pelo FOMC à "normalização
da política monetária", a parte referente à redução do ativo do Fed a
níveis mais normais foi postergada às gerações futuras. No atual plano de
Yellen, restou apenas a intenção de
algum dia, quando as condições econômicas permitirem, decorrido um longo tempo
da decisão de iniciar, quem sabe, a contração do ativo, o FOMC refletir quando
iniciar a venda de Treasuries. E somente Treasuries, porque já foi assegurado ao
mercado que o US$ 1,7 trilhão de hipotecas não deixará o balanço do Fed.
Decidido a não reduzir o balanço e eliminar as reservas em
excesso, o Fed recorre a programas inéditos e ineficazes para influenciar a federal funds rate. Em outras palavras,
a FFR está em coma induzido, mas o Fed acredita que conseguirá ressuscitá-la
com homeopatia.
E apesar de o FOMC alegar que dispõe do ferramental
necessário para normalizar a política monetária, ele carece de perfeito domínio
sobre como tais intervenções impactarão o mercado de juros. Como o próprio FOMC
atesta na ata
da reunião de dezembro passado: "Embora os testes de RRP tenham sido informativos, o staff sugeriu que testes
adicionais podem melhorar ainda mais o entendimento de como essa ferramenta
suplementar poderia ser usada para atingir um maior controle da federal funds rate durante a política de normalização".
Em suma, o plano de normalização do FOMC, além de não
atingir o seu propósito, instaura graves distorções no mercado de juros,
tomando para si um papel ainda mais centralizador e introduzindo incentivos
perversos no sistema — especialmente no caso da RRP. Invertendo o racional
histórico dos bancos centrais, o Fed cada vez mais se torna o prestamista, o
mutuário e o formador de mercado de primeira
instância.
E ao assegurar ao mercado a manutenção do seu balanço nos
níveis atuais, o Fed frustra indefinidamente qualquer chance de normalização
efetiva da política monetária.
O que pode dar
errado?
Toda a análise do plano de normalização foi feita a partir
da premissa de que o Fed realmente irá normalizar a política monetária. Mas
como antecipamos no início deste artigo, o Fed está encurralado e por isso adia
propositalmente uma elevação dos juros. Janet Yellen não vai tocar na FFR
porque tem plena noção da dependência dos mercados financeiros da política
acomodatícia do Fed.
Se decidir alguma elevação, ela será módica; com relevância
apenas simbólica, mas com potencial de influenciar expectativas e, talvez,
fazer o dólar se apreciar perante as demais moedas globais. Porém, nada que
configure uma real normalização de postura e muito menos uma redução do seu
balanço.
É inegável que o Comitê de Política Monetária teve bastante
sorte até o momento. Pouca coisa — ou quase nada — saiu do script. Injetaram
volumes maciços de liquidez no sistema, sustentaram a alta dos Treasuries e das
dívidas corporativas, fizeram os índices de ações decolar, a economia cresceu —
de acordo com o PIB —, o desemprego tem diminuído — embora com muitas
ressalvas — e a inflação de preços vem caindo — por causa do petróleo, da
alta do dólar e porque a liquidez inflou basicamente o preço dos ativos no
mercado financeiro.
Diante desse cenário, o que pode dar errado? Ou,
parafraseando o jornalista financeiro da CNBC Rick Santelli em um
desabafo inspiradíssimo, "do que você tem medo, Janet Yellen?".
A chairwoman do Fed jamais diria o que realmente pensa; ela
precisa assegurar a todos constantemente que está tudo sob controle. A eficácia
do trabalho do Fed depende disso.
Mas essa pergunta merece resposta. Levantemos, então,
algumas hipóteses e possíveis desdobramentos.
A primeira grande questão é óbvia, mas nem por isso menos
preocupante: o quanto a economia americana está dependente de juro zero? Quando
qualquer taxa acima de zero é alta demais, qual não seria a dimensão e a
profundidade dos desequilíbrios no sistema? Esse estado de coisas não é normal
nem sustentável.
O que se vê é a baixa volatilidade, o CPI contido e a
exuberância nos mercados financeiros. Mas ninguém consegue antever — quanto
menos evitar — os investimentos equivocados e os excessos nos mercados. Quando
o capital não tem custo, qualquer investimento é viável. Quando o risco é mal
precificado, erros são inevitáveis. Juro zero não é capaz de criar uma economia
saudável e sustentável, mas pode mascarar por alguns anos os mais variados
desequilíbrios.
Em algum momento os malinvestiments
se tornarão nítidos, e os excessos precisarão ser expurgados. Onde isso pode
aparecer? Talvez alguma empresa declare falência e seu título de dívida vire
pó, instalando o pânico nos mercados, precipitando a venda em massa de outros junk bonds, derrubando os demais ativos
em efeito cascata. Talvez uma elevação simbólica da taxa de juros pelo FOMC
provoque tumulto nos mercados. Como o Fed enfrentaria esse cenário?
William
Dudley, presidente do New York Fed, já deixou claro que, mais do que Main
Street, "Como os mercados de ativos vão reagir será chave para a mudança da
política monetária". Em um momento de pânico, o Fed certamente interviria outra
vez, com um EQE (emergency quantitative
easing) ou qualquer outra ferramenta para despejar liquidez nos mercados e
conter quedas abruptas nos preços dos ativos.
Esse cenário não é improvável. É uma questão meramente
temporal: quando, e não "se".
Mas não é só isso que pode dar errado. A inflação de preços
pode começar a incomodar logo. A julgar pela expansão creditícia do sistema
bancário, é possível que o CPI sinalize uma escalada nos preços em um futuro
breve.

O crédito bancário não acelerava consistentemente desde o
estouro da crise. E considerando o crescimento da economia, a tendência de
queda do endividamento das famílias americanas, bem como o peso do serviço da
dívida sobre a renda — um presente da era do juro zero —, podemos concluir
que há espaço para o volume de crédito crescer novamente e com força. Afinal de
contas, bancos servem para criar moeda e conceder empréstimos. Havendo
oportunidade para auferir uma maior receita com juros, os bancos saberão
aproveitá-la.


Como o FOMC vai encarar uma inflação de 3%? Ou 5%? Neste
momento, tal cenário parece pouco provável. Mas não é nenhuma impossibilidade.
O que o Fed faria para conter essa inflação? Provavelmente aguardaria novos
dados para ter certeza de que algum aperto monetário seja realmente
imprescindível. E como fazê-lo? Aí voltamos ao plano de normalização dissecado
acima. Não há ferramental disponível para refrear uma escalda de preços. O Fed
amarrou suas próprias mãos.
Alguns analistas aventaram a possibilidade de o Fed elevar
o percentual do compulsório — reserve
requirements, atualmente em 10% —, para refrear a expansão do crédito e a
inflação de preços. Embora seja tecnicamente factível, creio ser altamente
improvável. Primeiro, o Fed jamais fez qualquer menção quanto a usar o
compulsório para normalizar a política monetária.
Segundo, porque seria preciso elevar o percentual a um patamar
sem precedentes — talvez algo entre 50% e 100% —, represando um volume de
reservas na casa dos trilhões, o que poderia ser encarado pelos bancos como uma
espécie de confisco pelo Federal Reserve. Politicamente, seria um remédio quase
intragável de se testar. Os bancos iriam espernear, e, talvez, com razão. No
entanto, como "tempos extremos requerem medidas extremas", não duvido que isso
possa ser tentado. Mas certamente não está entre os primeiros itens da lista.
Assim, torna-se cada vez mais claro que as medidas
extraordinárias adotadas a partir de 2008 foram e são uma via de mão única e
sem retorno. Não se faz mais política monetária como antigamente. The Fed has gone all-in and there is no
turning back.
Resumo da ópera
Este é um texto para guardar e ler
mais de uma vez. Há muito detalhes técnicos implícitos sobre o funcionamento de
um banco central e da política monetária — algo de que a maioria dos economistas
não entende bulhufas. Não é um artigo de fácil digestão. Mas considerando a complexidade
do assunto e a quantidade de desinformação propagada por analistas e pelo
mercado financeiro, era preciso explicar e analisar todas as questões
relevantes minuciosamente.
Com o intuito de facilitar a síntese do artigo, seguem
alguns pontos-chave para guardar a essência do que foi dito aqui:
1)
A federal
funds rate não pode ser elevada porque, com as rodadas de QE, o Fed inundou
o mercado interbancário com liquidez.
2) A expansão do balanço do Fed é preocupante e a
qualidade do seu ativo é cada vez pior.
3) Mesmo que não houvesse reservas em excesso, sem
T-Bills no seu ativo para vender, o Fed estaria impossibilitado de atender a
demanda por reservas e influenciar o mercado interbancário.
4) O Plano de Normalização da Política anunciado
pelo FOMC é incapaz de elevar de fato a FFR, tem o potencial de aprofundar os
desequilíbrios e excessos no balanço do Fed e no mercado interbancário e será
absolutamente deficiente para lidar com condições econômicas mais adversas.
5) O Fed não vai decidir por uma elevação de juros
tão cedo porque tem plena ciência da dependência dos mercados na política
acomodatícia.
6) Se o Fed decidir elevar a federal funds rate, serão incrementos módicos e simbólicos, nada
que possa ser considerado uma real normalização da política monetária.
7) Nesse cenário, e considerando a divergência da
política monetária dos demais países avançados, o dólar pode se fortalecer
ainda mais.
8) Se as condições favoráveis permanecerem, o Fed
não retrocederá o seu balanço por vários anos.
9) O Fed cada vez mais se torna o prestamista, o
mutuário e o formador de mercado de primeira
instância.
10) Apesar
das estatísticas positivas, os desequilíbrios no mercado financeiro e na
economia real estão em contínua gestação.
11) É
mais provável um cenário com mais rodadas de QE do que uma reversão da política
atual.
12) A
ideia de que o Federal Reserve tem tudo sob controle não passa de uma ilusão.
Estamos vivendo o grande experimento monetário do século
XXI. Iniciado em 2008, a era das políticas monetárias não convencionais está a
todo vapor e sem data para cessar. Já não há mais alternativas palatáveis. As
ações do Fed e dos demais bancos centrais estão garantindo uma reprise da crise
de 2008. A próxima vez será pior. O mundo não vai acabar, porém, passaremos por
alguns meses de aperto.
Mas se perecer a crença de que os bancos centrais devem
controlar o preço mais importante da economia — a taxa de juros —, já
sairemos no lucro, pois daremos o primeiro passo para a abolição do principal
bastião do socialismo nas economias modernas: o planejamento central da moeda.