Morreu
ontem, aos 91 anos de idade, Lee
Kuan Yew, o homem responsável por implantar as reformas econômicas que
fizeram com que Cingapura deixasse de ser um país de terceiro mundo —
praticamente uma favela a céu aberto — e se transformasse em um país de primeiro
mundo, com uma renda
per capita muito superior à americana.
Yew
desenvolveu o modelo de Cingapura por pura necessidade. Além de não possuir recursos naturais,
Cingapura não possuía nenhuma terra fértil na qual desenvolver atividades
agrícolas. Ou seja, não havia nem como
plantar comida nem como extrair petróleo no país. Logo, ele teve de recorrer ao comércio
global.
A estratégia
de Cingapura
Cingapura
se tornou independente da Malásia em 1965.
Na verdade, o país foi praticamente expulso da Malásia. À época, Cingapura era um país pobre e
atrasado — uma mancha estéril, improdutiva e sombria em uma das mais perigosas
regiões do mundo. Com efeito, a renda
per capita de Cingapura em 1965 seria equivalente à de um país como Angola ou
Kosovo hoje, ajustada pela inflação.
No
entanto, Cingapura contava com um líder, um fundador visionário: Lee Kuan
Yew. E ele tinha ideias claras sobre
como modernizar o país.
Sua
estratégia continha os seguintes elementos:
Moeda forte e estável
O
primeiro e mais crucial — sem o qual nada mais funciona — era uma moeda forte
e estável. Cingapura implantou um
sistema de Currency Board, um regime
monetário no qual não há política monetária e nem interferência política.
Currency
Board é o sistema que se utiliza quando se quer adotar uma genuína "âncora
cambial", o que faz com que a moeda de um país se torne um mero substituto de
uma moeda estrangeira. Neste sistema, a
moeda nacional é totalmente atrelada a uma moeda estrangeira (no caso de
Cingapura, o dólar de Cingapura nasceu ancorado à libra esterlina, depois passou
para o dólar, e depois para uma cesta de moedas), e a variação da base
monetária nacional se dá de acordo com o saldo do balanço de pagamentos (saldo
da quantidade de moeda estrangeira que entra e sai da economia nacional).
A
única função de um Currency Board é trocar moeda nacional (que ele próprio
emite) por moeda estrangeira, e vice versa, a uma taxa fixa.
Neste
sistema, não há nenhuma política monetária.
Todo o arranjo funciona como se estivesse no piloto automático. A base monetária do país é igual à quantidade
de reservas internacionais (no caso, a moeda adotada como âncora), e varia de
acordo com a quantidade de moeda estrangeira que entra e sai da economia em
decorrência das transações internacionais do país. Quando há um superávit nas transações
internacionais, a base monetária doméstica aumenta; quando há um déficit,
diminui.
Quando
a quantidade de moeda nacional é idêntica à quantidade de reservas
internacionais, é impossível haver um ataque especulativo, pois seria
impossível exaurir as reservas internacionais (a moeda nacional teria de ser
toda mandada pra fora, algo por definição impossível).
O
país que adota o Currency Board passa a funcionar como se fosse um estado do
país emissor da moeda utilizada como âncora pelo Currency Board. Para que tal sistema funcione plenamente, uma
Caixa de Conversão (o Currency Board) é criada com a única missão de trocar
moeda nacional (que ela própria emite) por moeda estrangeira, e vice versa, a
uma taxa de câmbio estritamente fixa. (Veja mais detalhes sobre Currency Boards aqui.)
Um
arranjo de câmbio fixo, para um país em desenvolvimento, é bastante superior a um
arranjo de câmbio flutuante, pois gera estabilidade de longo prazo para os
investimentos (os investidores sabem exatamente qual será a definição da moeda
nos anos vindouros), acaba com as especulações e retira completamente das
autoridades políticas do país a capacidade de fazer política monetária — e,
consequentemente, de desvalorizar a moeda, o que afeta sensivelmente a taxa de
retorno dos investidores estrangeiros.
Além
de estabilizar a moeda, um Currency Board impõe forçosamente uma disciplina ao
sistema bancário e às políticas fiscais do governo. Para Cingapura, um Currency Board forneceu
preços estáveis (uma das menores
inflações de preço do mundo) e uma moeda plenamente segura e conversível, o
que atraiu investimentos estrangeiros maciços.
Hoje,
a autoridade monetária de Cingapura, embora não mais funcione como um Currency
Board ortodoxo, tem como única função controlar o valor do dólar de Cingapura
em relação a uma cesta de moedas das principais economias do mundo. A autoridade monetária de Cingapura não
controla juros; ela atua para garantir que o dólar de Cingapura mantenha um
valor relativamente estável perante as principais moedas do mundo.
E
o resultado é que de 1982 a 2005, o dólar de Cingapura foi a moeda
que menos perdeu poder de compra no mundo, superando inclusive o franco
suíço e o marco alemão. (A partir de
2005 ela perde para o iene japonês, dado que o Japão entrou em uma longa
estagnação e seus preços ficaram em zero durante quase uma década).
Nada de ajuda internacional
O
segundo elemento foi a total ausência de ajuda estrangeira. Lee Kuan Yew proibiu que o país mendigasse
auxílio internacional. Cingapura se
recusou a aceitar ajuda estrangeira de todo e qualquer tipo.
Essa
é uma postura francamente oposta à de vários outros países em desenvolvimento,
nos quais o que mais há são esquemas de corrupção em que políticos e burocratas
tentando abiscoitar algum tipo de ajuda estrangeira, seja de alguma ONG
internacional, de algum organismo internacional (como o FMI e o Banco Mundial),
ou de algum governo.
Em
contraste, placas em que se lê "Nada de ajuda estrangeira" ainda estão
penduradas, figurativamente, em cada gabinete governamental de Cingapura.
Setor privado forte
O
terceiro elemento foi o notável esforço de Cingapura em criar empresas privadas
de excelência, com características de primeiro mundo e genuinamente
competitivas no mercado global.
Isso
foi alcançado majoritariamente por meio de baixa tributação, burocracia quase
inexistente e mínima regulação. Tudo
isso em conjunto com tarifas de importação nulas e livre comércio pleno
(sistema idêntico ao adotado
em Hong Kong).
Baixa
tributação, baixa regulação, burocracia quase inexistente, moeda forte e livre
comércio pleno atraíram para Cingapura empresas de todas as regiões do globo —
e fez com que as empresas privadas de Cingapura se tornassem tigres asiáticos.
Respeito à propriedade
O
quarto elemento na estratégia de Cingapura foi uma ênfase na proteção à
propriedade privada, na segurança pública, e na ordem pública.
Neste
quesito, no entanto, as coisas são mais nebulosas, como será mostrado mais
abaixo.
Do terceiro
ao primeiro mundo
Estes
foram os quatro objetivos da estratégia de Lee Kuan Yew: moeda forte e estável,
nada de ajudas estrangeiras, empresas privadas de primeiro mundo, plenamente
competitivas, operando em um arranjo de livre comércio pleno e sem sofrer
regulações onerosas, e um arranjo de lei e ordem.
E,
para cumprir esses objetivos, o segredo da estratégia era ter um governo
"pequeno" e transparente; um governo minimalista em termos econômicos, que não
impunha complexidades e nem burocracia — daí a contínua presença de Cingapura
no topo
do ranking da Doing Business,
entidade que mensura a facilidade de se empreender ao redor do mundo.
O
gráfico abaixo mostra bem a evolução de um país que saiu do Terceiro Mundo e se
converteu plenamente em uma das regiões mais ricas do planeta. Ele mostra o impressionante êxito econômico
de Cingapura, cuja renda per capita em dólares supera a dos EUA e a da Suécia,
é o dobro da da Espanha e cinco vezes maior que a da vizinha Malásia, de quem
Cingapura se separou (ou melhor, foi expulsa):

Além
de todas as características já citadas acima, vale ressaltar que o gasto
público de Cingapura é a metade do americano, e um terço do sueco.

A mente de Lee Kuan Yew
No
entanto, nada mais justo e pertinente do que deixarmos que o próprio Lee Kuan
Yew nos ofereça
sua própria visão sobre como as sociedades prosperam e enriquecem.
O
pai fundador de Cingapura se sentiu atraído, até os anos 1960, pelo socialismo
inglês. No entanto, felizmente, acabou
descobrindo que a hipertrofia do estado não é o caminho adequado para o
progresso:
Assim como Jawaharlal Nehru [o primeiro
primeiro-ministro da Índia, de 1947 a 1964], no começo me senti influenciado
pelas ideias do socialismo
fabiano inglês. No entanto,
rapidamente me dei conta de que, para distribuir o bolo, é necessário antes
fabricá-lo. Por isso me distanciei da
mentalidade do estado de bem-estar: ela minava o espírito empreendedor e
impedia que uma pessoa se esforçasse para prosperar e seguir adiante.
Também abandonei o modelo de
industrialização baseado na substituição de importações. Enquanto a maioria dos países do Terceiro
Mundo denunciava a exploração das multinacionais ocidentais, nós as convidamos
todas para ir a Cingapura. Desse modo
conseguimos crescimento, tecnologia e conhecimento científico, os quais dispararam
nossa produtividade de uma maneira mais intensa e acelerada do que qualquer
outra política econômica alternativa poderia ter feito.
Lee
Kuan Yew percebeu com clareza que a única maneira de um país sem recursos
naturais como Cingapura ter alguma vantagem competitiva era se convertendo em uma
região livre e segura no mercado global, uma região em que investidores
pudessem investir e poupar sem medo de expropriações:
Somos o país com menos recursos naturais em
toda a nossa região; portanto, só nos resta sermos honestos, eficientes e
capazes. [...] Cingapura tem as
qualidades para ser a Chicago ou a Zurique da Ásia Oriental.
Para
lograr tal feito, abraçou sem titubear a globalização:
Não
nos esqueçamos de que o protecionismo e um menor comércio equivalem a um menor
crescimento econômico para os países ainda em desenvolvimento. [...]
Aproveitamos todas as vantagens que nos
legaram os ingleses: o idioma, o sistema jurídico, a democracia parlamentarista
e a administração imparcial. Mas
conseguimos evitar ceder ao charme do estado de bem-estar social. Já vimos como um povo inteiro pode competir
entre si para se afundar na miséria e na mediocridade. As pessoas menos empreendedoras e
trabalhadoras não podem ser igualadas ao resto à custa de piorar a situação das
mais empreendedoras e esforçadas. E
também já vimos quão difícil é desmantelar um sistema de subsídios tão logo as
pessoas se acostumam às benesses que o estado lhes proporciona.
A
oposição de Lee Kwan Yew à desvairada expansão do estado de bem-estar social
do Ocidente foi uma constante ao longo de toda a sua vida. Seus princípios eram claros: uma coisa é
ajudar quem realmente está necessitado; outra, bem diferente, é subsidiar o
parasitismo:
O estado de bem-estar e os subsídios
destroem a motivação para as pessoas se esforçarem e crescerem. Se for para ajudar alguém, é preferível que
seja dando-lhes algum ativo ou dinheiro e permitido que tenham total liberdade
para decidir como gastá-lo. Quando as
pessoas se tornam dependentes dos subsídios e o estado não pode mais continuar
lhes pagando, elas protestam. Tornaram-se
mal acostumadas.
É
a sociedade civil, e não o estado, quem essencialmente tem de ajudar os mais
desfavorecidos. A missão do governo não
é administrar monopolisticamente a filantropia de uma sociedade, mas sim não
impedir seu florescimento:
O estado não pode substituir o calor pessoal
e o contato direto das ajudas voluntárias.
Os sentimentos altruístas e filantrópicos motivam as pessoas a se
ajudarem entre si. Muitos estados
ocidentais se converteram em burocracias esbanjadoras nas quais os funcionários
públicos bem pagos não possuem esse indispensável sentimento de altruísmo e
idealismo visto nos trabalhadores voluntários.
Cingapura,
por conseguinte, não se especializou em redistribuir a renda, mas sim em atrair
capital humano, capital físico e capital financeiro para impulsionar a
prosperidade de todos:
Cingapura tem uma maioria chinesa; porém,
não importa qual seja a sua raça, se você se unir a nós como cidadão,
desfrutará dos mesmos direitos e oportunidades.
Em Cingapura, somos uma sociedade cosmopolita e aberta, que recebe de
braços abertos o talento, pois é ele que nos permite continuar crescendo e
prosperando.
Em
vez de denegrir a figura do empreendedor, este é exaltado como o motor do
crescimento e da inovação:
O sonho da riqueza atrai todos. No entanto, somente aqueles que inovam e que
sabem criar bens e serviços se tornam ricos.
São poucos os que nascem com uma aguçada mentalidade empresarial, e são
ainda menos aqueles que triunfarão. O
êxito empresarial necessita de qualidades extraordinárias, como elevados níveis
de energia, perspicácia para enxergar as oportunidades onde outros só veem
problemas, e intuição para antecipar quais produtos ou serviços serão rentáveis.
À
luz de tão excepcionais reflexões, estaríamos tentados a pensar que Lee Kuan
Yew era o paradigma do político liberal no qual todos deveriam se
inspirar. Mas, infelizmente, não. Lee Kuan Yew era um conservador pragmático
que, em matéria econômica, havia entendido boa parte das regras do jogo, mas que,
em matéria social, permaneceu ancorado a um intenso intervencionismo estatal.
Ele
próprio se vangloriava de interferir na vida privada das pessoas para
orientá-las a seguir o bom caminho. Em
termos sociais, suas ideias eram mais comunitárias do que liberais, e ele tinha
uma noção particular de bem comum:
Na cultura americana, o interesse do
indivíduo vem em primeiro lugar. Isso
transforma os EUA em uma sociedade agressivamente competitiva. Em Cingapura, o interesse da sociedade vem
antes do indivíduo. Mas, ainda assim,
Cingapura tem de ser competitiva no mercado de trabalho, e no de bens e
serviços.
Uma
das consequências dessa mentalidade é que Cingapura é hoje um estado que
pratica a tortura de presos, que limita a liberdade de expressão e de imprensa,
que mantém um serviço militar obrigatório e que proíbe as relações homossexuais. A ordem pública é mantida rigidamente. Há punições severas para pichações. É proibido até mesmo mascar
chicletes (só são permitidos chicletes terapêuticos com receita médica). O governo pode encarcerar criminosos por tempo
indefinido e sem julgamento.
Conclusão
Cingapura
é, em muitos aspectos, um exemplo para o Ocidente. Em outros, longe disso.
O
mesmo, no entanto, pode ser dito sobre o Ocidente para Cingapura: é um exemplo
em muitas coisas, mas não em outras.
Felizmente,
liberdade é algo que não tem de ser adquirida em um pacote conjunto. A liberdade não é um combo que necessariamente tem de vir com concessões
governamentais.
Não
é necessário optarmos entre a liberdade civil e a liberdade econômica quando
podemos ter ambas: o Ocidente provou que a liberdade civil permite que as
pessoas desenvolvam seus planos de vida sem se sentirem oprimidas por estados
repressores ou pela intolerância de grupos organizados; já Cingapura provou que
a liberdade econômica gerava um aumento formidável na prosperidade e na
riqueza.
Por
que, então, não podemos optar por ambas as manifestações de liberdade individual? Esse é o programa ideológico dos libertários.