O
que é mais impressionante quando se considera todo o surrealismo da atual
situação da Venezuela é que tudo já está virando rotina. As pessoas parecem não mais ter a capacidade
de se indignar.
A
furiosa hiperinflação que assola o país desde 2013,
combinada com uma política de racionamento e de controle de preços implantada
pelo governo, esvaziou as prateleiras dos supermercados do país. Itens básicos e rotineiros como xampu,
farinha, açúcar, detergente, óleo de cozinhar e o já famoso papel higiênico se
tornaram tão escassos no país, que os venezuelanos hoje têm de pedir permissão
para faltar ao trabalho e assim poder ficar o dia inteiro em
longas filas nas portas dos poucos supermercados que ainda têm tais
produtos à venda.
Além
daqueles que se ausentam do trabalho, também há aqueles que acordam de
madrugada para ir para as filas. E há
aqueles que vão para as filas no horário do almoço. Os venezuelanos estão o tempo todo enviando
mensagens de texto no celular para dar informações sobre filas. Eles se transformaram em especialistas em filas.
Com
uma moeda inconversível e que ninguém quer portar, com uma inflação de
preços estimada
em 327% ao ano, e com rígidos controles de preços, toda a distribuição
de alimentos na Venezuela foi colocada sob
supervisão militar desde o início de fevereiro.
Segundo
essa matéria
de capa do Times, enquanto os venezuelanos se aglomeram em filas que
normalmente acumulam mais de mil pessoas apenas para conseguir comprar comida,
"soldados armados pedem as carteiras de identidade para se certificarem de
que ninguém está comprando itens básicos mais de uma vez na mesma
semana".
E
prossegue:
Todas as compras feitas pelos venezuelanos
são computadas em um sistema de dados para garantir que cada consumidor não
tente comprar os mesmos produtos racionados em um período menor do que sete
dias.
Soldados patrulham as filas fora dos
supermercados, policiais da guarda bolivariana ficam dentro dos supermercados,
e funcionários públicos conferem as carteiras de identidade à procura de
falsificações que poderiam ser utilizadas para driblar o sistema de
racionamento. Procuram também por imigrantes com visto expirado. Um
funcionário público da imigração grita alertando que transgressores serão
presos.
[...]
O governo enviou tropas para patrulhar as
enormes filas que se estendem por várias quadras. Alguns estados
proibiram as pessoas de esperaram fora dos supermercados ao longo das
madrugadas, e funcionários do governo estão de prontidão perto das portas de
entrada e saída, prontos para prender qualquer um que tenta driblar o sistema
de racionamento.
O
curioso, no entanto, é que, bem ao estilo da tradição socialista, tudo isso é
visto como um exemplo de "boa organização".
Além dessa exigência de pedir documentos para evitar que as pessoas
comprem mais de uma vez por semana, as autoridades estão ordenando os
supermercados a permitirem que os clientes formem filas nos estacionamentos
subterrâneos, pois assim eles não correriam o risco de sofrer queimaduras de
sol.
Segundo
reportagem da BBC:
Jornalistas são proibidos de filmar ou tirar
fotos das prateleiras vazias. Já os
consumidores também estão sob instruções rígidas. Você só pode comprar bens escassos em dias
específicos da semana, dependendo do número final na sua carteira de
identidade. Sendo assim, se, por
exemplo, a sua carteira de identidade termina em zero ou em um, você só pode
ficar em uma fila às segundas-feiras. E,
ainda assim, isso não significa que o sabonete e o leite que você quer comprar
estarão necessariamente disponíveis naquele dia.
[…]
É comum ver pessoas entrando em filas sem
nem sequer saber o que está à venda.
Elas simplesmente veem a fila, entram nela e então perguntam a quem está
imediatamente à frente para o que é aquela fila. E é extremamente provável que essa pessoa à
frente também tenha feito exatamente o mesmo com a pessoa que está à frente
dela.
Testemunhamos uma fila que só se movia
quando algumas pessoas que já estavam lá na frente desistiam de esperar e iam
tentar a sorte em outro lugar. Isso
significa que as pessoas que estavam lá no fim da fila, dobrando a esquina, não
viam isso, e acreditavam enganosamente que estava havendo algum progresso e que
a fila de fato estava se movendo. E isso
as estimulava a permanecer na fila por mais tempo.
Só que, para tragédia geral, essa fila não
era para absolutamente nada.
Simplesmente ouviu-se um rumor de que o supermercado em questão havia
recebido uma remessa de algo — ninguém sabia o quê —, e isso bastou para que
se formasse uma fila. No final,
não havia nada. Apenas mais um dia
perdido.
Nessa
interessante reportagem, um jornalista da BBC mostra quanto tempo é necessário
para comprar apenas 8 itens básicos na Venezuela:
(SPOILER
ALERT: ele só consegue comprar 3, tendo de recorrer ao mercado negro para
conseguir o resto; e só no dia seguinte).
Sem comida e sem remédios
Há
outro fantasma ameaçando levar ainda mais terror para os venezuelanos: a
escassez de dólares no país.
A
queda no preço do petróleo, o principal item exportador da Venezuela, reduziu
brutalmente a entrada de dólares no país.
E dado que a moeda venezuelana, o bolívar, é inconversível — nenhum
estrangeiro está disposto a trocar sua moeda pelo bolívar, pois não há
investimentos atrativos na Venezuela —, nenhum empreendedor na Venezuela está
tendo acesso a dólares.
A
única entidade na Venezuela que ainda tem dólares é o governo, e é ele quem
decide qual empresa pode receber dólares para importar bens. No momento, por causa de sua escassez, a
ração de dólares está suspensa.
Consequentemente,
a importação de itens básicos está suspensa.
"Há
uma forte tempestade se formando devido à falta de dólares. A situação é desesperadora e pode piorar
ainda mais", diz
Russ Dallen, chefe do Caracas Capital Markets, um banco de investimento
local. Russ está há vários anos
acompanhando de perto a situação da Venezuela.
"Nos próximos dois ou três meses, haverá um grande desabastecimento,
muito pior do que estes que estamos vivenciando — não apenas porque os
estoques já estão muito baixos, mas também porque a importação de produtos que
só serão demandados daqui a 8-12 semanas não está entrando no país."
Segundo
reportagem
do Latin America Herald Tribune:
"Os estoques, inclusive os das indústrias
farmacêutica e alimentícia, estão chegando a níveis críticos", disse Eduardo
Garmendia, presidente da Confederação Venezuelana das Indústrias
(Conindustria). "Todo o sistema já está
sendo afetado pela dificuldade de se conseguiu matérias-primas, mas tudo é
ainda pior no quesito bens essenciais, pois estes estão sofrendo um impacto
direto; estamos falando de remédios e comida".
No caso dos alimentos, os estoques das
principais indústrias do país irão durar menos de um mês, de acordo com dados
publicados pela Câmara Venezuelana da Indústria de Alimentos (Cavidea).
"Há empresas de alimentos que, até hoje,
neste ano, ainda não conseguiram um único dólar", disse Pablo Baraybar,
presidente da Cavídea. "Em algumas
linhas de produção, temos estoques para apenas mais 10 ou 20 dias".
Isso certamente tornará as coisas
exponencialmente mais difíceis para aqueles venezuelanos que sofrem diariamente
para colocar comida em suas mesas.
O que pode ocorrer daqui a apenas algumas
semanas é a total paralisação do país após o esgotamento de todos os estoques,
pois as empresas não estão recebendo do governo os dólares necessários para
pagar pelas importações.
[...]
É por isso que o governo venezuelano vem
fazendo uma intensa propaganda sobre a possibilidade de que a China esteja
disposta a fornecer um empréstimo de US$ 10 bilhões para projetos de
infraestrutura na Venezuela.
"O governo está a todo o momento dizendo 'os
chineses estão vindo, os chineses estão vindo; os chineses são os únicos que
podem nos salvar desse martírio", disse Russ Dalen.
Só que, quando o dinheiro chinês chegar —
caso isso realmente ocorra —, ele só poderá ser utilizado para importar
produtos da China ou ser investido em projetos específicos previamente
aprovados pelos governos venezuelano e chinês, o que não necessariamente irá
trazer alívio para os milhões de venezuelanos, que, dentro de poucos meses, não
mais conseguirão obter leite e farinha nas prateleiras dos supermercados após
passarem o dia inteiro na fila.
Segundo
o The
New York Times, o suprimento de remédios está acabando. Salas de
cirurgia estão fechadas há meses, não obstante centenas de pacientes estejam na
fila de espera para cirurgias. Em uma clínica privada, um cirurgião
conseguiu manter a sala de cirurgias funcionando porque conseguiu contrabandear
dos EUA, sem que o governo venezuelano soubesse, remédios essenciais.
Paralelos com a Romênia

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Acima, uma fila na Romênia em 1986; abaixo, uma fila na Venezuela em 2015
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É
interessante constatar que, ao redor de todo o globo, os fracassos do
socialismo não apenas se originam das mesmas causas, como também tendem a se
manifestar de maneiras incrivelmente similares.
Aproximadamente
30 anos atrás, do outro lado do Oceano Atlântico, os romenos também tinham o
hábito de passar várias horas parados em filas que se formavam perante
prateleiras vazias. A diferença é que,
para os romenos, tal situação rotineira já havia deixado de ser uma mera "crise
temporária", que é como a atual situação da Venezuela ainda é descrita pelo
governo. Tudo já era tristemente rotineiro.
E,
assim como o governo da Venezuela se gaba de sua "boa organização" para controlar
as filas dos supermercados e impedir que as pessoas comprem duas vezes na mesma
semana, o regime comunista da Romênia, que já estava no poder havia mais de
duas décadas, dizia que o racionamento de alimentos era uma medida voltada para
promover a saúde e melhorar a qualidade de vida!
Por
exemplo, o ditador Nicolau Ceausescu instituiu,
em 1982, um "programa de alimentação científico/racional" para o país, no qual
quantidades de leite, ovos, carne, peixe etc. eram listadas, ao mesmo tempo,
como recomendações de dieta e quotas permitidas para a compra. À medida que o tempo foi passando, essas
rações se tornaram cada vez mais escassas.
A
gasolina também foi racionada em apenas 25 litros por mês, e a fila para
conseguir o combustível frequentemente envolvia um esforço conjunto, no qual
dois amigos se revezavam na fila em turnos diários, dentro do mesmo carro,
esperando seu momento para abastecer.
Enquanto um ficava na fila, o outro ia trabalhar.
E
para garantir que os romenos não iriam consumir muita gasolina, o governo
adotou um rodízio, segundo o qual os carros não poderiam circular nos fins de
semana dependendo do número final de suas respectivas placas.
Por
fim, dado que os meses de inverno na Romênia são muito piores do que os da
Venezuela, aquecimento e água quente só estavam disponíveis durante algumas
horas do dia. Assim como televisão e
eletricidade.
À
época, as autoridades comunistas gostavam de se gabar dizendo que os cidadãos
romenos usufruíam todos os benefícios da vida moderna, mas nenhuma de suas
injustiças. O regime de Nicolás Maduro
também emite opiniões similares sobre o Ocidente — que represente seu suposto
inimigo, a epítome do capitalismo cruel, e o único culpado pelas tribulações do
país.
No
entanto, em ambos os casos, é o socialismo que está fadado a terminar em
colapso e na total destruição da atividade econômica, bem como na desintegração
de todo o tecido social. Se a atual situação
da Venezuela ainda impressiona alguém, é porque falta conhecimento econômico e histórico.
Se o exemplo venezuelano das consequências
inevitáveis do socialismo ainda surpreende, isso só mostra como as lições econômicas
e históricas são rapidamente esquecidas.
Fora
essas lições, resta-nos apenas a esperança de que os venezuelanos, no futuro, irão
se lembrar com algum humor dos bizarros momentos deste período. Nos 50 anos em que viveram sob o comunismo, os
romenos criaram um vasto folclore de piadas jocosas, muito provavelmente como uma
válvula de escape para lidar com a situação tenebrosa em que viviam. Eis uma delas:
O
filho de um medalhão do Partido Comunista da Romênia foi estudar nos Estados
Unidos. Tão logo chegou aos EUA, ele enviou
um curto telegrama ao pai: "Vida longa ao Partido Comunista, já que eu nunca
irei retornar."
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Autores:
Carmen Dorobat é
pós-doutoranda em economia na Universidade de Angers e professora na Bucharest
Academy of Economic Studies.
Leandro
Roque é o editor e tradutor do site do Instituto Ludwig von Mises
Brasil.
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Leia
também:
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