Nestas
últimas semanas, especialmente nos últimos dias, um dos assuntos de maior
repercussão na internet e nas praças das cidades Brasil afora guardou relação
com as proibições do aplicativo Uber em algumas cidades. Especialmente em
São
Paulo e
Brasília.
Não é
o objetivo aqui prolongar tal discussão e buscar os contra-argumentos à
proibição do aplicativo. Tampouco
rebater as falácias apresentadas a favor dos taxis legalizados (assim chamados),
ou rebater argumentos daqueles que defendem a regulamentação de serviços
similares. Para ter uma melhor
compreensão das opiniões, recomendo alguns artigos: este
artigo do site Spotniks; este artigo do
Instituto Mises Brasil; este
artigo do site da Revista Trip (Nada será como antes) e, por último, este
artigo do site Medium.
O artigo
do Spotinks faz um pequeno resgate histórico de algumas tecnologias de
transporte urbano, e conclui que querer disputar contra a inovação e a
competição no transporte urbano moderno é ignorar todos os processos inventivos
que possibilitaram o nascimento do próprio transporte urbano moderno.
O artigo
do IMB descreve o funcionamento do Uber, argumenta que o setor de táxi é um
cartel protegido pelo estado, e mostra a reação — muitas vezes violenta — desse
cartel ao ver sua reserva de mercado ameaçada pelo livre mercado.
O
artigo do site Medium, por sua vez, apresenta uma série de argumentos
falaciosos, mas, para fins deste texto, tal artigo é útil, pois faz algumas
descrições precisas e interessantes de alguns aspectos do funcionamento do
aplicativo.
Por
último, a revista Trip apresenta um panorama mais amplo. Argumenta que estamos em uma Era da Disrupção, em que as tais "inovações
disruptivas" são cada vez mais rápidas e frequentes. Nesse contexto, o Uber
seria apenas mais um exemplo, em conjunto com Wikipedia, Netflix, Airbnb e outras
tecnologias.
Nesse
sentido, a disrupção traz sempre o medo da mudança; porém, em vez de se
acovardar e querer abolir as novas tecnologias (em uma clara demonstração de misoneísmo), o melhor é abraçá-las
entusiasmadamente e buscar utilizá-las de maneira mais adaptativa ao usuário.
Com
exceção do artigo da revista Trip — que se contrapõe ao artigo do site Medium —
, todos os outros abordam quase exclusivamente o aplicativo Uber. E a abordagem é especialmente centrada em
livre concorrência, liberdade do usuário, reação dos cartéis, reação dos governos
etc. Portanto, não é necessário mais um artigo abordando esses tópicos; seria
redundante e desnecessário.
O
que se pretende fazer aqui é ampliar o escopo de aplicações analisadas
(especialmente aplicações peer-to-peer — "P2P")
e fazer uma abordagem do uso destas novas técnicas e sua implicação na dinâmica
dos mercados.
Como a tecnologia P2P irá quebrar cartéis,
monopólios e trazer mais liberdade aos mercados
Pode-se
dizer que o Uber faz parte de um conjunto de aplicações (aplicativos ou sites)
em que a arquitetura de rede P2P é utilizada.
P2P
é uma arquitetura de redes de computadores na qual cada um dos pontos ou nós da
rede funciona tanto como cliente quanto como servidor, permitindo
compartilhamentos de serviços e dados sem a necessidade de um servidor central.
Só que, no caso de aplicações P2P, os usuários são clientes e servidores (não
os computadores).
Conforme
destacou Cesar na revista Médium, a tecnologia do Uber é o aplicativo que ele
usa conectando os pares: motoristas, usuários e o sistema de pagamento por meio
de cartão de crédito. Simplesmente isso. Elimina-se a necessidade de uma
companhia de táxi, de uma central de radiotaxi, do uso de dinheiro em espécie
(inclusive para troco) etc.
Semelhante
ao Uber há uma verdadeira miríade de aplicações P2P existente hoje em dia. Para ilustrar, vamos citar
alguns exemplos.
O
site Cabe na Mala conecta pessoas
que fazem compras à distância com viajantes que têm algum espaço sobrando na
sua bagagem. Quem estiver disposto a receber uma grana para trazer uma
encomenda pode participar. Elimina-se a necessidade de empresas de encomendas
ou dos Correios.
O Airbnb simplesmente conecta anfitriões e
potenciais hóspedes. Nada mais é do que uma
nova forma de hotelaria caseira. Obviamente,
o Airbnb representa uma forte concorrência às
redes de hotelaria no mundo inteiro.
O
site Descola Aí se apresenta como o
primeiro portal de empréstimo P2P do Brasil. Basicamente, é uma aplicação em
que se pode alugar de tudo. Eles possuem até um vídeo explicativo.
Já o
site Banca Club
é o primeiro mercado de empréstimo P2P do mundo, com mais de 1.880 membros e
mais de R$ 22.700.000,00 em pedidos de financiamento. Em suma, trata-se de uma comunidade de
empréstimos financeiros diretos em que qualquer um pode ser o cliente ou o
banqueiro, por assim dizer. Já
há sites concorrentes semelhantes, como o Fairplace.
Sites
como Mercado Livre, OLX e Ebay
são imensos mercados que funcionam basicamente como classificados online. E, de certa maneira, podemos também considerar
a enciclopédia virtual Wikipédia como também tendo uma arquitetura familiar ao
P2P — no caso, a Wikipédia está bastante focada na construção de verbetes de
maneira colaborativa.
A
característica comum de todas essas aplicações é a arquitetura P2P. Tal
arquitetura facilita o encontro entre as pontas demandantes e ofertantes de
determinados produtos ou serviço, sejam estes uma corrida de táxi ou um
empréstimo financeiro. A arquitetura P2P
reduz os custos de negociação, facilita o acesso a todos os usuários e permite
o encontro entre as duas pontas de tal maneira que torna quase obsoleta a
necessidades de algumas tecnologias de comércio do passado.
Por
exemplo, o Netflix e o YouTube são fortes concorrentes para as locadoras de
vídeo e para empresas de TV; o Uber, para as empresas de táxi; o Fairplace e o Banca
Club, para empresas de factoring,
agiotas e bancos; o Airbnb, para hotéis, pousadas, motéis e pensões; o Mercado Livre e OLX, para os
jornais e revistas que vendem espaço para anúncios.
Mas há
outro argumento a ser feito. É fato que
o sucesso dessas aplicações reside em uma série de vantagens, mas o principal
fator está, fundamentalmente, no fato de que uma rede P2P maximiza as
oportunidades para a ponta de ofertantes atender melhor às necessidades dos
demandantes. Isso está em total acordo com a abordagem feita por Ludwig von
Mises sobre o processo de mercado e as características de uma economia
capitalista.
Mises
dedica várias partes de sua obra para descrever tal processo. Segundo ele:
"A economia de mercado é o sistema social baseado na
divisão do trabalho e na propriedade privada dos meios de produção. Todos agem
por conta própria; mas as ações de cada um procuram satisfazer tanto as suas
próprias necessidades como também as necessidades de outras pessoas. Ao agir,
todos servem seus concidadãos. Por outro lado, todos são por eles servidos.
Cada
um é ao mesmo tempo um meio e um fim; um fim último em si mesmo e um meio para
que outras pessoas possam atingir seus próprios fins.
Este
sistema é guiado pelo mercado. O mercado orienta as atividades dos indivíduos
por caminhos que possibilitam melhor servir as necessidades de seus semelhantes. Não há, no
funcionamento do mercado, nem compulsão nem coerção...
...O slogan marxista "produção anárquica"
retrata corretamente essa estrutura social como um sistema econômico que não é
dirigido por um ditador, um czar da produção que pode atribuir a cada um uma
tarefa e obrigá-lo a obedecer a esse comando. Todos os homens são livres;
ninguém tem de se submeter a um déspota.
O indivíduo, por vontade própria, se integra num
sistema de cooperação. O mercado o
orienta e lhe indica a melhor maneira de promover o seu próprio bem estar, bem
como o das demais pessoas. O mercado comanda tudo; por si só coloca em
ordem todo o sistema social, dando-lhe sentido e significado". [Ação
Humana, capítulo XV "O mercado"].
Esse
é o núcleo central do argumento. Na abordagem de Mises, serão bem-sucedidos na
economia de mercado aqueles que, primordialmente, souberem criar mecanismos que
os permitam atender com mais eficiência às necessidades do público consumidor.
Tão simples quanto isso, mas ao mesmo tempo consideravelmente difícil.
Esse
é um dos elementos cruciais para entender a abordagem austríaca do processo de
mercado. Também ajuda a entender o
porquê do sucesso de algumas novas aplicações. Ao facilitar o encontro entre as
pontas compradoras e vendedoras, ao reduzir as assimetrias de informação
tanto para quem vende quanto para quem compra, tais aplicações P2P trouxeram
para o tabuleiro do jogo econômico pessoas que tinham habilidades, capacidades
e capital para melhor servir seus concidadãos.
Isso
porque basta uma consulta nas aplicações, e os usuários podem saber quem está
vendendo o quê, onde, como, a que preço etc.
O mesmo vale para os vendedores, pois o custo informacional reduziu-se
substancialmente. Agora eles possuem melhores mecanismos para colocar seus
conhecimentos em prática, desta forma melhor servindo seus clientes.
Ou
seja, colocando nos
termos de Hayek, o conhecimento — que é difuso (está disperso pela
sociedade, e não concentrado em poucos indivíduos), subjetivo, prático e
pessoal — agora tem mecanismos mais fáceis, rápidos e baratos para se
manifestar: basta ser dono de um veículo e conhecer a geografia de uma cidade
para se transformar num motorista do Uber; basta ter um quarto vazio e desejar
alugar para se tornar um anfitrião no Airbnb; basta ter alguns recursos
sobrando e saber gerenciar seus riscos para se tornar um "banqueiro" do
Fairplace, e assim por diante.
A arquitetura
P2P democratizou o acesso ao empreendedorismo: todos podem se tornar
empreendedores capitalistas. Isso é fantástico.
E o
mais interessante é que tais aplicações P2P não trouxeram inovações
tecnológicas revolucionárias. Elas não inventaram
uma nova forma de se locomover, de emprestar dinheiro, ou de se hospedar. No entanto, há gente por aí que tem
conhecimento aplicado e que pode dirigir e guiar tão bem (ou melhor) que um
taxista; gente que pode se arriscar um pouco a emprestar dinheiro e obter taxas
de retorno melhores do que as que os bancos oferecem; e gente que sabe hospedar
muito bem e pode até ganhar algum um bom retorno com isto.
Sendo
assim, poderíamos dizer que, de acordo com a abordagem de Mises e Hayek, tais
aplicações permitem que o conhecimento humano espalhado se manifeste de uma
forma bem mais eficaz, reordenando espontaneamente os mercados e fazendo com
que os seres humanos possam melhor atender às necessidades de seus semelhantes.
Essa
talvez seja a "disrupção" que tais aplicações trazem. Trata-se, obviamente, de uma disrupção
salutar. Ironicamente, elas trazem um
pouco mais de "anarquia" ao processo produtivo, como talvez Marx gostaria de
dizer.
E, também
ironicamente, isso é algo positivo, pois tais aplicações permitem que, além de
consumidoras, as pessoas também sejam mais empreendedoras. Ou mais
"capitalistas", poderíamos dizer.
Seja
dirigindo seu próprio carro, alugando uma parte de sua própria casa ou emprestando
seu próprio dinheiro, haverá mais oportunidades para o cidadão comum empreender
e, com isso, melhorar seu padrão de vida.
E sem ter de pagar nenhuma taxa para nenhum cartório.
Quanto
mais pessoas com espírito capitalista e empreendedor no mundo, melhor para
todos. Haverá mais bens e serviços ofertados,
e, consequentemente, um padrão de vida em contínua elevação.
________________
Nota do autor
O autor gostaria de
registrar que não recebeu recurso de nenhum dos sites ou aplicativos
apresentados aqui. As aplicações citadas foram fruto de uma simples pesquisa na
Internet, com caráter meramente ilustrativo e para exemplificar. Há diversos
sites e aplicações semelhantes com arquitetura P2P que fornecem diversos tipos
de serviços. O autor registra também suas restrições em relação à veracidade de
algumas definições da Wikipédia, bem como já ter encontrado verbetes com
informações claramente erradas. Mesmo assim não se furta de usar a enciclopédia
on-line, tanto que buscou alguns verbetes na mesma para fins deste artigo.