quinta-feira, 29 out 2015
O assunto
simplesmente não sai da mídia. O novo "terror"
do momento é a suposta iminência de um aumento da taxa básica de juros nos
Estados Unidos, pelo Banco Central americano,
já
agora em dezembro.
Há apenas
um problema: ninguém ainda explicou exatamente como isso seria possível.
O que o Fed controla
Comecemos
pelo básico: o Fed — o Banco Central americano — não controla todas as taxas
de juros da economia americana. Ele não controla
as taxas de juros sobre os títulos públicos de 6 meses, 5 anos, 10 anos ou 30
anos. Essas taxas são livremente
determinadas pelo mercado. Logo, ele não
pode elevar os juros desses papeis. Ele não
tem nenhum poder sobre estes juros. (O
mesmo, aliás, é válido para todos os outros Bancos Centrais do mundo).
O Fed
controla uma única taxa de juros, a qual, nos EUA é chamada de "Federal Funds Rate". Essa taxa (idêntica à SELIC brasileira)
representa a taxa de juros que os bancos cobram entre si no mercado
interbancário para emprestar (ou tomar emprestado) dinheiro que possuem em suas
reservas, por um dia de duração.
Os bancos
recorrem a essas operações interbancárias diariamente porque, ao final de cada
dia, precisam manter um determinado volume de dinheiro em suas reservas.
(Esse volume de reservas é o equivalente a uma determinada porcentagem do total
de seus depósitos, e é determinado pelo Banco Central; chama-se compulsório).
O Banco
Central, por meio de suas injeções monetárias neste mercado interbancário —
ele cria dinheiro para comprar títulos públicos em posse dos bancos e destrói
dinheiro ao vender títulos públicos para os bancos —, afeta a taxa de juros do
mercado interbancário e, com isso, é capaz de determinar a taxa básica de juros
da economia.
Esta é a única
taxa que ele de fato pode controlar.
O gráfico
abaixo mostra a evolução de três taxas de juros da economia americana.

A linha inteiriça
laranja representa a "Federal Funds Rate" (a nossa SELIC), que é a única taxa
que o Fed controla. A linha laranja
pontilhada representa a taxa de juros paga por título públicos com prazo de
vencimento de 2 anos. Já linha cinza representa a taxa de juros paga por títulos
públicos com prazo de vencimento de 10 anos.
A única taxa
que o Fed controla diretamente é aquela que está totalmente horizontal.
O problema
Só que há
um enorme problema: a demanda dos bancos por empréstimos no mercado
interbancário está praticamente nula. Os
bancos não estão demandando empréstimos um dos outros neste mercado. E isso nunca havia acontecido antes.
Por quê?
Porque o
Fed, em resposta à crise
financeira de 2008, tomou duas atitudes: a primeira, típica de países latino-americanos
da década de 1980; a segunda, completamente inédita nos anais da teoria macroeconômica
e jamais discutida nem sequer como hipótese em nenhum livro-texto de economia.
A primeira
medida foi imprimir dinheiro a rodo e entregar esse dinheiro aos bancos em
troca de título podres que estes carregavam.
Tratou-se de uma medida que, na prática, tinha a intenção de limpar os
balancetes dos bancos.
O gráfico
a seguir mostra o que ocorreu com a base monetária americana em decorrência desta
medida:

Tamanha injeção
de dinheiro no sistema bancário iria, segunda a teoria macroeconômica,
degenerar em hiperinflação caso os bancos
decidissem emprestar todo esse dinheiro para pessoas e empresas.
Vale enfatizar
que, no atual arranjo financeiro, o Fed (bem como o Banco Central
brasileiro) não injeta
dinheiro diretamente na economia; ele injeta dinheiro apenas nos bancos, e os
bancos é que decidem se irão despejar este dinheiro na economia (por meio da
criação de crédito). Se os bancos não quiserem despejar este dinheiro
na economia, não há nenhum risco de inflação de preços.
E foi aí
que o Fed teve então a sua segunda ideia, completamente inédita na história dos
Bancos Centrais: para impedir que toda esta dinheirama fosse emprestada pelos
bancos, ele simplesmente decidiu
pagar aos bancos juros anuais de 0,25%
sobre todo e qualquer dinheiro que os bancos voluntariamente deixassem parado
no Fed.
Normalmente,
um Banco Central paga juros aos bancos apenas sobre o valor do
compulsório. Nos EUA, no entanto, o Fed
criou a política de pagar juros para todo e qualquer montante que os bancos voluntariamente
deixem parados no Fed.
Ou seja,
de um lado, o Fed imprimiu (eletronicamente) trilhões de dólares e entregou
esse valor aos bancos em troca de títulos podres que estavam em posse destes
bancos; de outro, ele começou a pagar, para os bancos, juros de 0,25% sobre
todo este dinheiro.
Tão logo
o Fed adotou essa prática, a taxa de juros do mercado interbancário caiu para
quase zero. E esta taxa de 0,25% acabou se tornando a taxa básica de juros da
economia americana.
A consequência
disso é que os bancos americanos estão hoje com US$ 2,6 trilhões de "reservas
em excesso" voluntariamente estacionadas no cofre eletrônico do Fed.

Consequentemente,
com todo este excesso de reservas, nenhum banco tem de ir ao mercado
interbancário pedir dinheiro emprestado para outro banco com o intuito de manter
um determinado volume de dinheiro em suas reservas. O sistema bancário americano está hoje
inundado de dinheiro na forma de reservas em excesso. Nenhum banco precisa mais se preocupar com a hipótese
de não ter reservas suficientes. Nenhum
banco precisa se preocupar em recorrer ao mercado interbancário para pedir
dinheiro emprestado.
Sendo assim,
para o Fed elevar a taxa básica de juros — que é a taxa de juros do mercado
interbancário —, ele teria de enxugar uma boa parte desses trilhões de dólares
que estão nas reservas em excesso. Isso exigiria
uma venda maciça, pelo Fed, de títulos públicos para esses bancos.
Na prática,
o Fed teria de fazer uma liquidação maciça de títulos públicos de 3 meses, 6
meses, 2 anos, 5 anos, 10 anos, 30 anos, títulos de Fannie Mae e Freddie Mac,
títulos lastreados em hipotecas, títulos lastreados em empréstimos estudantis, títulos
lastreados em crediário para automóveis etc.
Em suma, ele teria de pegar seu portfólio e, em cada categoria de ativo,
teria de vender esses ativos no mercado.
Obviamente,
se ele fizer essa liquidação, os preços desses ativos iriam desabar, o que
significa que as taxas de juros desses ativos iriam disparar. Com a disparada
das taxas de juros de todos esses papeis, os juros para todos os empréstimos iriam
subir concomitantemente.
E o governo,
obviamente, não quer isso.
O que o Fed realmente pode fazer
A única política
monetária que o Fed realmente pode fazer é elevar
a taxa de juros que ele paga sobre todas essas reservas em excesso que os
bancos mantêm depositadas junto ao Fed.
Se atualmente
ele paga uma taxa de 0,25% ao ano, ele pode elevá-la para, por exemplo, 0,5%;
Isso ele
pode fazer quando quiser.
Mas isso
gera alguns problemas.
Ao contrário
de todas as outras operações de política monetária, esse dinheiro com o qual o
Fed paga juros de 0,25% aos bancos não
é criado eletronicamente por ele. Esse dinheiro
advém dos lucros operacionais do Fed.
Em termos
puramente contábeis, esse dinheiro é retirado do patrimônio líquido do Fed e
colocado em seu passivo (as reservas bancárias representam contabilmente um
passivo para o Fed).
Sendo assim,
se o Fed elevar os juros de 0,25% para, digamos, 0,5% ou até mesmo 1%, não apenas
os lucros operacionais do Fed serão brutalmente reduzidos, como também será
reduzido o montante que o Fed repassa anualmente ao Tesouro.
Legalmente,
o Fed é obrigado a repassar o Tesouro americano todo o dinheiro que ele obteve
de lucro menos o necessário para cobrir suas operações.
Se o Fed
elevar os juros que paga sobre as reservas em excesso, o orçamento do governo
federal americano sofrerá um baque. Cada
centavo que o Fed paga sobre as reservas em excesso é um centavo a menos que não
pode ser dado ao Tesouro americano ao final de cada ano fiscal. Consequentemente, se o Fed elevar os juros, o
déficit orçamentário do governo federal americano irá aumentar.
Por último,
se os bancos estão dispostos a manter US$ 2,6 trilhões de dólares estacionados
no Fed em troca de 0,25% ao ano, quanto mais eles estariam dispostos a manter
estacionado no Fed em troca de, digamos, 1% ao ano? Certamente, muito mais.
Logo, o
Fed irá gastar ainda mais com juros. E,
consequentemente, o Tesouro receberá ainda menos repasses.
Não obstante
esses problemas, essa é a única taxa de juros que o Fed realmente pode elevar.
Portanto,
quando se fala que "o Fed irá aumentar os juros em dezembro", a pergunta a ser
feita é: qual taxa de juros exatamente o Fed irá elevar? Como ele irá fazer isso?
Até hoje,
nunca foi publicado na mídia especializada um único artigo explicando
exatamente como o Fed irá "elevar os juros". Desde meados
de 2013 há essa "ameaça" de aumento dos juros.
E ela nunca se concretiza. Há várias razões econômicas e contábeis para isso.
O Fed também pode elevar a taxa de redesconto o quanto quiser; mas este recurso raramente é utilizado pelos bancos.
Conclusão
Quando o
Fed, em outubro de 2008, adotou a política de pagar juros sobre toda e qualquer
reserva em excesso voluntariamente mantida pelos bancos no Banco Central, ele
revolucionou completamente as práticas dos Bancos Centrais. Nenhum livro-texto, nem mesmo os próprios livros
publicados
pelo Fed, jamais discutiu essa hipótese.
Tal política,
com efeito, colocou uma rolha no mecanismo de transmissão entre a expansão da
base monetária e o aumento da quantidade de dinheiro na economia. Esse mecanismo de transmissão
foi rompido. A relação entre aumento da base monetária
e aumento de M1, M2, M3 e M4 foi quebrada.
Não há manual de macroeconomia que discuta essa possibilidade.
Consequentemente,
há uma nova era na economia americana no que diz respeito a práticas de Banco
Centrais. Qualquer economista que queira
apresentar uma teoria sobre hiperinflação nos EUA em decorrência da volumosa expansão
da base monetária terá de explicar como essa hiperinflação poderá ocorrer agora
que o Fed descobriu essa prática de pagar juros sobre todo e qualquer dinheiro
que os bancos voluntariamente depositem no Fed.
Com essa
medida de pagar juros sobre todo e qualquer depósito voluntário que os bancos depositarem
no Fed, a possibilidade de hiperinflação é praticamente nula.
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Atualização em 16/12/2015
Exatamente como previsto neste artigo, o Fed acaba de anunciar que irá pura e simplesmente elevar o valor que ele paga sobre as reservas em excesso.
Veja o anúncio na íntegra e o trecho principal abaixo:
"The Board of Governors of the Federal Reserve System voted unanimously to raise the interest rate paid on required and excess reserve balances to 0.50 percent, effective December 17, 2015."
E também como previsto neste artigo, o Fed elevou a taxa da janela de redesconto, de 0,75% para 1%. Trecho:
"In a related action, the Board of Governors of the Federal Reserve System voted unanimously to approve a 1/4 percentage point increase in the discount rate (the primary credit rate) to 1.00 percent, effective December 17, 2015."
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Leia também:
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saída do Fed?
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