Nota do IMB
Alguns consideram que o melhor ensaio de Hayek, que hoje completaria 122 anos de idade, seja O uso do conhecimento na
sociedade, no qual ele explica detalhadamente a importância do
sistema de preços: são os preços que transmitem todas as informações detalhadas
que diferentes pessoas ao redor do mundo possuem sobre aspectos específicos de
vários mercados.
Em termos puramente econômicos, realmente aquele
é o melhor artigo.
Entretanto, o texto abaixo, um excerto de seu gigantesco
livro A
Constituição da Liberdade, é definitivamente o seu mais impressionante.
Seu tamanho relativamente curto (para um ensaio)
esconde sua grande profundidade e sua incrível sagacidade. Você pode lê-lo
várias vezes — a cada releitura, descobrirá algo novo.
Hayek apresenta seu argumento contra os controles
e as regulações estatais — e apresenta também sua constatação sobre como o
conhecimento é disseminado e utilizado na sociedade — da forma mais completa e
profunda possível. Ele apresenta argumentos que fazem você interromper sua
leitura, pensar e repensar.
Por exemplo, ele argumenta que, se já soubéssemos
antecipadamente todos os resultados que surgiriam em um ambiente de liberdade, não
precisaríamos da liberdade: apenas implementaríamos diretamente todos esses
resultados.
Ele também explica que todo o propósito da
liberdade é exatamente o de descobrir, no futuro, tudo aquilo que ainda não sabemos
no presente. Sendo assim, o argumento em prol da liberdade é, em última
instância, baseado na humildade e no respeito pela sabedoria e pela experiência
humana futura.
Eis um ensaio profundamente brilhante, o qual,
sem exageros, fará diferença em como você encara o mundo e como você viverá o
resto de sua vida.
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O argumento em prol da liberdade individual
fundamenta-se, principalmente, no humilde reconhecimento de que somos
ignorantes. A realização dos nossos objetivos
e do nosso bem-estar depende de uma série de fatores sobre os quais somos
inevitavelmente ignorantes.
Se existissem indivíduos oniscientes, se pudéssemos
conhecer não apenas tudo o que influi na realização dos nossos desejos atuais,
mas também conhecer nossos desejos e necessidades futuras, não haveria muita
razão para defendermos a liberdade.
Por outro lado, a liberdade do indivíduo tornaria,
evidentemente, impossível uma previsão perfeita.
A liberdade é essencial para que o imprevisível
exista; nós a desejamos porque aprendemos a esperar dela a oportunidade de
realizar a maioria dos nossos objetivos. E, justamente porque o indivíduo sabe
tão pouco e, mais ainda, como raramente podemos determinar quem de nós conhece
mais, confiamos aos esforços independentes e competitivos de muitos a criação
daquilo que desejaremos, quando tivermos a oportunidade de apreciá-lo.
Por mais humilhante que seja para o orgulho humano,
devemos reconhecer que o progresso e até a preservação da civilização dependem
de um máximo de oportunidades para que o imprevisível possa acontecer. Estas casualidades ocorrem graças à combinação
de conhecimentos e atitudes, aptidões e hábitos adquiridos pelos indivíduos, e
também quando indivíduos treinados se defrontam com problemas específicos que
estão preparados para solucionar.
Nosso inevitável desconhecimento de tantas coisas
significa que teremos de lidar, em grande parte, com probabilidades e acasos.
Naturalmente, tanto na vida social quanto na individual, os acidentes
favoráveis não ocorrem simplesmente. Devemos estar preparados para quando
acontecerem.
Mas, mesmo assim, ainda são acasos, e não se
transformam em certezas. Envolvem riscos deliberadamente aceitos, possíveis
reveses de indivíduos e grupos que têm tanto mérito quanto outros que
prosperam, possibilidade de fracassos ou de recaídas, até para a maioria, e
apenas uma probabilidade de ganhos líquidos no cômputo geral.
O máximo que podemos fazer é aumentar as
possibilidades de que certa combinação de dons individuais e de circunstâncias
leve à criação de algum novo instrumento ou ao aperfeiçoamento de um
instrumento antigo e melhorar a perspectiva de que tais inovações se tornem rapidamente
conhecidas por aqueles que podem beneficiar-se delas.
Seres
imperfeitos
Todas as teorias políticas pressupõem,
evidentemente, que a maioria dos indivíduos é muito ignorante. Aqueles que
defendem a liberdade se diferem dos outros porque incluem na categoria de
ignorantes eles próprios e também os mais sábios. Comparada com a totalidade do
conhecimento que é continuamente utilizado no processo evolutivo de uma
civilização dinâmica, a diferença que existe entre o conhecimento dos mais
sábios e aquele que pode ser deliberadamente empregado pelos mais ignorantes é
insignificante.
Embora não percebamos habitualmente, todas as
instituições da liberdade constituem de adaptações a esta fundamental constatação
da ignorância, adaptadas para lidar com possibilidades e probabilidades, mas
não com a certeza. Não existe certeza na ação humana e é por esta razão que,
para fazer o melhor uso do nosso conhecimento individual, devemos seguir as
normas indicadas pela experiência como as mais adequadas de um modo geral,
embora não saibamos quais serão as conseqüências de sua observância em casos
específicos.
O homem aprende pela frustração de suas esperanças.
É óbvio que não devemos aumentar a imprevisibilidade dos acontecimentos com a
criação de tolas instituições humanas. Na medida do possível, deveríamos ter
como objetivo a melhoria das instituições humanas, a fim de aumentar as
possibilidades de previsão correta. Todavia, acima de tudo, deveríamos
proporcionar o máximo de oportunidades para que indivíduos que não conhecemos
aprendessem fatos que nós mesmos ainda desconhecemos e utilizassem este
conhecimento em suas ações.
E é graças aos esforços harmônicos de muitas pessoas
que se pode utilizar uma quantidade de conhecimento maior do que aquela que um
indivíduo isolado pode acumular ou do que seria possível sintetizar
intelectualmente. E graças a essa utilização do conhecimento disperso é que se
tornam possíveis realizações superiores às que uma mente isolada poderia
prever.
É justamente porque liberdade significa renúncia ao
controle direto dos esforços individuais que uma sociedade livre pode fazer uso
de um volume muito maior de conhecimentos do que aquele que a mente do mais
sábio governante poderia abranger.
As
chances de erro
A partir destas premissas básicas sobre as quais se
fundamenta a justificativa da liberdade, segue-se que não poderemos alcançar
suas metas se limitarmos o uso da liberdade apenas àquelas circunstâncias
especiais nas quais sabemos que ela será benéfica. Não é liberdade aquela
concedida somente quando seus efeitos benéficos são conhecidos de antemão.
Se soubéssemos de que forma a liberdade seria usada,
não teríamos necessidade de justificá-la. Nunca conseguiremos os benefícios da
liberdade, nunca alcançaremos os avanços imprevisíveis que ela possibilita, se
ela não for também concedida nos casos em que sua utilização parecer
indesejável.
Portanto, não se pode alegar como argumento contra a
liberdade individual que as pessoas frequentemente abusam dessa liberdade. Liberdade significa, necessariamente, que cada
um acabará agindo de uma forma que poderá desagradar aos outros.
Nossa fé na liberdade não se baseia nos resultados
previsíveis em determinadas circunstâncias, mas na convicção de que ela acabará
liberando mais forças para o bem do que para o mal.
Segue-se, também, que a importância de termos
liberdade de ação não está de modo algum relacionada com a perspectiva de nós,
ou a maioria, estarmos, algum dia, em condições de utilizar tal possibilidade. Conceder
apenas o grau de liberdade que todos têm a possibilidade de exercer
significaria interpretar sua função de modo totalmente errado.
Por esse raciocínio errôneo, a liberdade utilizada apenas
por um homem entre um milhão pode ser mais importante para a sociedade e mais
benéfica para a maioria do que qualquer grau de liberdade que todos nós
poderíamos desfrutar. Poder-se-ia dizer até que, quanto menor a oportunidade de
se fazer uso da liberdade para determinado fim, mais preciosa ela será para a
sociedade como um todo. Quanto menor a oportunidade, tanto mais grave será
perdê-la quando surgir, pois a experiência que oferece será quase única.
Por outro lado, é provavelmente correto dizer que a
maioria não se interessa diretamente senão por uma parcela mínima das coisas
importantes que uma pessoa deveria ter liberdade de fazer. A liberdade é tão
importante justamente porque não sabemos como os indivíduos a usarão. Se não
fosse assim, também seria possível chegar aos resultados da liberdade se a
maioria decidisse o que os indivíduos deveriam fazer. Mas a ação da maioria
está necessariamente restrita ao que já foi testado e averiguado, a questões
que já obtiveram o consenso no processo de análise que deve ser precedido por
diferentes experiências e ações de indivíduos diferentes.
Liberdade
para o desconhecido
Os benefícios que a liberdade me concede são, assim,
em grande parte, o resultado do uso que outros fazem dela e, principalmente,
dos usos dos quais eu nunca me poderia valer. Por isso, o mais importante para
mim não é necessariamente a liberdade que eu próprio posso exercer. É muito
mais importante que alguém possa experimentar tudo do que a possibilidade de
todos fazerem as mesmas coisas.
Não é porque gostamos de poder fazer determinadas
coisas, nem porque consideramos algum tipo de liberdade essencial à nossa
felicidade, que temos direito à liberdade. O instinto que nos faz reagir contra
qualquer restrição física, embora seja um aliado útil, nem sempre representa
padrão seguro para justificar ou delimitar a liberdade. O importante não é o
tipo de liberdade que eu próprio gostaria de exercer e sim o tipo de liberdade
de que alguém pode necessitar para beneficiar a sociedade. Só poderemos
assegurar essa liberdade a uma pessoa desconhecida se a conferirmos a todos.
Os benefícios da liberdade não são, portanto,
limitados aos homens livres — ou, pelo menos, um homem não se beneficia apenas
daqueles aspectos da liberdade dos quais ele próprio tira vantagem. Não há
dúvida de que, ao longo da história, maiorias não-livres se beneficiaram com a
existência de minorias livres, e as sociedades não-livres de hoje se beneficiam
daquilo que podem obter e aprender de sociedades livres.
Evidentemente, os benefícios que obtemos com a
liberdade de outros tornam-se maiores na medida em que cresce o número daqueles
que podem exercer a liberdade.
A tese que justifica a liberdade para alguns
aplica-se, portanto, à liberdade para todos. Mas é ainda melhor para todos que
alguns sejam livres do que ninguém; e, também, bem melhor que muitos possam
gozar de plena liberdade do que todos terem uma liberdade restrita.
O mais significativo é que a importância da
liberdade de agir de determinada maneira nada tem com o número de pessoas que
querem agir assim: a proporção poderia ser inversa. Uma consequência disto é
que uma sociedade pode ser tolhida por controles, embora a grande maioria possa
não se dar conta de que a sua liberdade foi restringida de forma considerável.
Se agíssemos a partir do pressuposto de que só é importante o uso que a maioria
venha a fazer da liberdade, estaríamos criando uma sociedade estagnada com
todas as características da falta de liberdade.
A
natureza das mudanças
As inovações imprevistas que aparecem constantemente
ao longo do processo de adaptação consistirão, primeiramente, em novos arranjos
ou modelos, em que se encontram coordenados os esforços de diferentes
indivíduos, e em novas organizações para o uso de recursos, por natureza tão
passageiras quanto as condições específicas que permitiram seu aparecimento.
Haverá, em segundo lugar, modificações de
instrumentos e de instituições, adaptadas às novas circunstâncias. Algumas
delas serão também meras adaptações temporárias às condições do momento,
enquanto outras constituirão melhoramentos que, por aumentar a versatilidade
dos instrumentos e hábitos existentes, serão mantidos.
Estes últimos representarão uma adaptação melhor,
não apenas às circunstâncias específicas de tempo e espaço, mas a uma
característica permanente do nosso meio. Nestas "formações" espontâneas
está incorporada uma percepção das leis gerais que governam a natureza. Esta
incorporação cumulativa da experiência em instrumentos e formas de ação
permitirá uma evolução do conhecimento explícito, de normas genéricas expressas
que podem ser transmitidas pela linguagem de uma pessoa a outra.
Este processo de surgimento do novo pode ser mais
bem entendido na esfera intelectual quando seu resultado são idéias novas.
Neste campo, a maioria de nós percebe pelo menos alguns estágios individuais do
processo; sabe necessariamente o que está ocorrendo e, por esta razão, em
geral, reconhece a necessidade de liberdade. A maioria dos cientistas
compreende que não podemos planejar o avanço do conhecimento, que na busca rumo
ao desconhecido — e é isso que constitui a pesquisa — dependemos, em grande
parte, dos caprichos dos gênios e das circunstâncias, e que o avanço
científico, assim como uma idéia nova que surge na mente de um indivíduo, será
a consequência de uma combinação de conceitos, hábitos e circunstâncias que a
sociedade proporciona a um indivíduo, resultando tanto de acasos felizes quanto
de um esforço sistemático.
Como percebemos mais facilmente que nossos avanços
na esfera intelectual muitas vezes são fruto do imprevisto e do não-planejado,
somos levados a exagerar a importância da liberdade de pensamento e a ignorar a
importância da liberdade de ação. Mas a liberdade de pesquisa e de opinião e a
liberdade de expressão e discussão, cuja importância é plenamente compreendida,
são significativas somente no último estágio do processo de descoberta de novas
verdades.
Enaltecer o valor da liberdade intelectual, em
detrimento do valor da liberdade de ação, equivaleria a tomar o topo de um edifício
como o todo. Novas idéias devem ser discutidas, diferentes pontos ajustados, pois
estas idéias e pontos de vista surgem dos esforços, em circunstâncias sempre
novas, de indivíduos que se valem, em suas tarefas concretas, dos novos
instrumentos e formas de ação que eles assimilaram.
A
complexidade do progresso
O aspecto não intelectual deste processo — a
formação do ambiente material modificado, no qual o novo emerge — exige, para
a sua compreensão e apreciação, um esforço de imaginação bem maior do que os
fatores destacados pela perspectiva intelectualista.
Embora às vezes possamos identificar os processos
intelectuais que conduziram a uma idéia nova, provavelmente nunca poderíamos
reconstituir a sequência e a combinação das contribuições que não levaram à
aquisição do conhecimento explícito; provavelmente nunca poderíamos
reconstituir os hábitos adequados e as aptidões que foram empregadas, os meios
e as oportunidades utilizadas e o ambiente peculiar dos atores principais que
permitiram aquele resultado.
As nossas tentativas de compreender essa parte do
processo não podem ir além de mostrar, em modelos simplificados, as forças que
nele operam e de indicar o princípio geral e não o caráter específico das influências
que atuam no caso. Os homens sempre se preocupam apenas com o que sabem.
Portanto, as características que, durante o processo, não são conhecidas ao
nível da consciência costumam ser ignoradas e provavelmente nunca podem ser
identificadas em detalhe.
Na realidade, estas características inconscientes,
além de geralmente desprezadas, muitas vezes são consideradas um obstáculo e
não uma contribuição ou uma condição essencial. Por não serem
"racionais", no sentido de serem utilizadas em nosso raciocínio, frequentemente
são consideradas irracionais, contrárias à ação inteligente.
Todavia, embora a maior parte dos elementos não-racionais
que afetam nossa ação possa ser irracional neste sentido, a maioria dos
"meros hábitos" e "instituições sem sentido", que usamos e
pressupomos em nossas ações, representa condições essenciais para a realização
de nossos objetivos, constituindo formas de adaptação da sociedade que já
demonstraram sua eficácia e utilidade, que estão sendo constantemente aperfeiçoadas
e das quais depende a dimensão daquilo que podemos realizar. Embora seja
importante descobrir suas falhas, nem por um momento poderíamos ir em frente
sem confiar nelas constantemente.
A maneira pela qual aprendemos a organizar nosso
dia, a nos vestir, a comer, a arrumar nossas casas, a falar, a escrever e a utilizar
outros incontáveis instrumentos e implementos da civilização, sem esquecer a experiência
prática (o know-how) da produção e do
comércio, dá-nos constantemente os fundamentos nos quais se devem basear nossas
próprias contribuições ao processo de civilização.
E, no novo uso e aperfeiçoamento dos instrumentos
que nos são oferecidos pela civilização, surgem as novas idéias que serão
empregadas finalmente na esfera intelectual.
Embora o uso consciente do pensamento abstrato, uma
vez iniciado, tenha até certo ponto uma vida própria, não poderia perdurar e
desenvolver-se por muito tempo sem os desafios constantes que se apresentam, pois
os indivíduos são capazes de agir de uma maneira nova, de experimentar outras
maneiras de fazer as coisas e de mudar toda a estrutura da civilização, na
tentativa de se adaptar à mudança.
O processo intelectual é, com efeito, apenas um
processo de elaboração, seleção e eliminação de idéias já formadas. E o fluxo
de novas idéias nasce, em grande parte, da esfera na qual a ação, muitas vezes
não racional, e acontecimentos materiais se influenciam reciprocamente. Este fluxo estancaria se a liberdade fosse
confinada à esfera intelectual.
A importância da liberdade, portanto, não depende do
caráter elevado das atividades que ela torna possíveis. A liberdade de ação,
mesmo nas coisas simples, é tão importante quanto a liberdade de pensamento.
Tornou-se um senso comum desmerecer a liberdade de ação apelidando-a de
"liberdade econômica". Mas o
conceito de liberdade de ação é muito mais amplo do que o de liberdade econômica
(o qual ela engloba).
E, o que é mais importante, é extremamente duvidoso
que haja ações que possam ser consideradas meramente "econômicas" e
que as restrições à liberdade possam ficar limitadas aos chamados aspectos
"econômicos".
Considerações econômicas são apenas aquelas pelas
quais conciliamos e ajustamos nossos diferentes objetivos, nenhum dos quais, em
última análise, é econômico (exceto os do avarento ou do homem para o qual
ganhar dinheiro se tornou um fim em si mesmo).
Os
objetivos são abertos
O que dissemos até agora se aplica, em grande parte,
não apenas ao uso dos meios para a realização dos objetivos individuais, mas também
a estes mesmos objetivos.
Uma sociedade é livre, entre outras razões, porque
as aspirações dos indivíduos não são limitadas, uma vez que o esforço
consciente de alguns indivíduos pode gerar novos objetivos, que posteriormente
serão adotados pela maioria. Devemos reconhecer que mesmo o que agora
consideramos bom ou bonito pode mudar — se não de uma forma perceptível que
nos permita adotar uma posição relativista, pelo menos no sentido de que, em
muitos aspectos, não sabemos o que será bom ou bonito para outra geração.
Também não sabemos por que consideramos isto ou
aquilo bom, nem quem está com a razão quando há divergência acerca do que é bom
ou não. Não somente em termos do seu conhecimento, mas também em termos dos
seus objetivos e valores, o homem é um produto da civilização; em última
análise, é a importância destas aspirações individuais para a perpetuação do
grupo ou da espécie que determinará se persistirão ou mudarão.
Evidentemente, é um erro acreditar que podemos tirar
conclusões acerca da qualidade dos nossos valores apenas porque compreendemos
que são produto da evolução. Mas dificilmente poderíamos duvidar que estes
valores são criados e alterados pelas mesmas forças evolutivas que produziram
nossa inteligência. Podemos apenas saber que a decisão final a respeito do que
é bom ou ruim não caberá à sabedoria de indivíduos, mas à decadência dos grupos
que adotaram idéias "erradas".
Medidas
de sucesso
É na busca dos objetivos a que o homem se propõe em
determinado momento que podemos comprovar se os instrumentos da civilização são
adequados; os ineficazes serão abandonados e os eficientes mantidos. Mas não se
trata apenas do fato de que, com a satisfação de necessidades antigas e com o
aparecimento de novas oportunidades, surgem constantemente novas finalidades. O
sucesso e a perpetuação deste ou daquele indivíduo ou grupo dependem tanto dos
objetivos por eles perseguidos, dos valores que governam suas ações, como dos
instrumentos e da capacidade de que dispõem.
A prosperidade ou extinção de um grupo dependerá
tanto do código de ética ao qual obedece, ou dos ideais de beleza e felicidade
a que se atém, como do grau em que aprendeu, ou não, a satisfazer suas
necessidades materiais.
Em qualquer sociedade, certos grupos podem ascender
ou declinar de acordo com as metas que perseguem e os padrões de conduta que
observam. E as metas do grupo que teve êxito tenderão a ser adotadas pelos
demais membros da sociedade.
Na melhor das hipóteses, podemos entender somente
em parte a razão pela qual os valores que defendemos ou as normas éticas que
observamos contribuem para a perpetuação da nossa sociedade. E nem podemos ter certeza de que, em condições de
mudança constante, todas as normas que, comprovadamente, contribuem para a
consecução de um determinado fim continuarão desempenhando esta função.
Embora
se costume supor que todo padrão social estabelecido contribui, de certa forma,
para preservar a civilização, o único meio de confirmá-lo será averiguar se,
concorrendo com os padrões adotados por outros grupos ou indivíduos, ele
continua a se mostrar adequado.
A
concorrência permite alternativas
A concorrência, na qual se baseia o processo de
seleção, deve ser entendida no seu mais amplo sentido. Ela implica não apenas a
concorrência entre indivíduos como também a concorrência entre grupos
organizados e não organizados. Encará-la como algo que se contrapõe a
cooperação ou a organização seria interpretar incorretamente sua natureza.
O esforço para conseguir certos resultados mediante
a cooperação e a organização é tão inerente à concorrência quanto os esforços
individuais. A distinção relevante não está entre a ação individual e a ação de
grupo mas, por um lado, entre as condições em que seja possível experimentar
alternativas, baseadas em diferentes pontos de vista ou métodos, e, por outro
lado, as condições nas quais um organismo detém o direito exclusivo e o poder
de impedir que outros participem.
Somente quando tais direitos exclusivos são
conferidos na pressuposição de que certos indivíduos ou grupos possuem
conhecimento superior, o processo deixa de ser experimental e as convicções que
prevalecem em dado momento podem tornar-se um obstáculo ao progresso do
conhecimento.
Defender a liberdade não significa opor-se à
organização — que constitui um dos meios mais poderosos que a razão humana
pode empregar —, mas opor-se a toda organização exclusivista, privilegiada ou monopolística,
ao emprego da coerção para impedir que outros tentem apresentar melhores
soluções.
Toda organização baseia-se em certos conhecimentos;
organização significa dedicação a um objetivo específico e a métodos
específicos, mas até a organização destinada a aumentar o conhecimento só será
eficiente na medida em que o conhecimento e as convicções nas quais seu plano
se baseia forem verdadeiros.
E, se qualquer fato vier a contradizer as convicções
nas quais está alicerçada a estrutura da organização, isto só se tornará
evidente se ela fracassar e for suplantada por outro tipo de organização. A
organização, por este motivo, poderá ser benéfica e eficiente enquanto for
voluntária e se der em uma esfera livre, e terá de se ajustar a circunstâncias
que não foram consideradas em sua concepção, ou então fracassar.
Transformar toda a sociedade em uma única
organização, criada e dirigida conforme um único plano, equivaleria a extinguir
as próprias forças que formaram as mentes humanas que a planejaram.
Vale a pena parar por um momento e analisar o que
aconteceria se fosse empregado em todas as ações somente aquilo que o consenso
geral considerasse o conhecimento mais avançado. Se fossem proibidas todas as
tentativas que parecessem supérfluas à luz do conhecimento aceito pela maioria,
e se se indagasse apenas a respeito das coisas consideradas significativas pela
opinião dominante ou se realizassem apenas as experiências ditadas por esta
opinião, a humanidade chegaria talvez a um ponto em que seu conhecimento
permitiria prever as consequências de todas as ações comuns e evitar todas as
desilusões ou fracassos.
Então, aparentemente, o homem teria sujeitado seu
ambiente à sua razão, pois somente empreenderia aquelas tarefas cujos
resultados fossem totalmente previsíveis. Poderíamos imaginar que a civilização
teria deixado de evoluir, não por se terem esgotado as possibilidades de um
crescimento futuro, mas porque o homem teria conseguido sujeitar tão
completamente todas as suas ações e o meio ambiente imediato ao seu nível de
conhecimento, que novos conhecimentos não teriam qualquer oportunidade de
surgir.
O racionalista que deseja sujeitar tudo à razão
humana encontra-se, assim, diante de um verdadeiro dilema. O uso da razão visa
ao controle e à possibilidade de previsão. Mas o processo evolutivo da razão
baseia-se na liberdade e na imprevisibilidade da ação humana.
Aqueles que exaltam os poderes da razão humana
normalmente veem apenas um lado da interação do pensamento e da conduta, na
qual a razão atua na prática e, ao mesmo tempo, é modificada por esta prática.
Eles não percebem que, para haver progresso, o processo social que possibilita
a evolução da razão deve permanecer livre do seu controle.
Congelando
o processo
Resta pouca dúvida de que o homem deve parte de seus
maiores sucessos ao fato de não ter sido capaz de controlar a vida social. Seu
avanço contínuo provavelmente dependerá de sua renúncia deliberada aos
controles que agora estão em seu poder.
No passado, as forças evolutivas espontâneas, embora
muito limitadas pela coerção organizada do estado, ainda podiam afirmar-se
contra este poder. Dados os meios tecnológicos de controle hoje à disposição do
governo, talvez já não seja possível afirmar isso; de qualquer forma, em breve
poderá tornar-se impossível.
Não estamos longe do momento em que as forças
deliberadamente organizadas da sociedade poderão destruir as forças espontâneas
que tornaram possível o progresso.