quinta-feira, 25 fev 2016
Quando a moeda perde seu valor, toda a economia
degringola.
Sendo a moeda a metade de toda e qualquer transação
econômica, se ela deixa de funcionar, você retorna a um estado de escambo. Ninguém aceita abrir mão de bens —
principalmente alimentos e outros produtos essenciais — em troca de uma moeda
sem poder de compra nenhum. Escassez e
desabastecimentos se tornam rotineiros.
Uma moeda fraca destrói o aspecto econômico mais
básico da economia de mercado, que é o sistema de preços. Consequentemente, sem uma formação de preços
minimamente racional, todo o cálculo econômico permitido pelo sistema de preços
— o cálculo de lucros e prejuízos, que é o que irá estimular investimentos —
se torna praticamente impossível.
Esta é exatamente a atual situação da Venezuela.
Uma moeda em contínuo enfraquecimento, que nenhum
venezuelano quer portar e que nenhum estrangeiro está disposto a aceitar em
troca de dólares (o que inviabiliza importações), levou a uma escassez
generalizada de bens essenciais na economia — inclusive comida
e remédios, que estão sendo substituídos por remédios para cachorros
—, impondo um trágico suplício aos cidadãos daquele país.
Como já explicado
detalhadamente nos artigos deste site, o valor do
bolívar está desabando feito uma pedra. O gráfico a seguir,
elaborado pelo site Dolar Today,
que mantém um histórico do valor do dólar no mercado paralelo da Venezuela, mostra
a evolução da taxa de câmbio do bolívar em relação ao dólar americano.

Taxa
de câmbio bolívar/dólar no mercado paralelo
Como mostra o gráfico, em meados de 2014, um dólar
custava 200 bolívares no mercado paralelo. Atualmente, o bolívar já desabou
acentuadamente, com um dólar valendo mais de 1.000 bolívares. Isso
implica uma desvalorização da moeda nacional de 80% em apenas um ano.
O país está hiperinflação. Organismos internacionais, em uma projeção
conservadora, estimam uma inflação
de preços de 720% para este ano.
Uma das causas desta hiperinflação está na acelerada
criação de dinheiro.
O gráfico abaixo mostra a evolução da quantidade de cédulas
de papel e de depósitos em conta-corrente na economia venezuelana (agregado M1)
de acordo com as estatísticas do próprio Banco Central venezuelano. Em apenas dois anos, essa variável
praticamente quadruplicou.

Evolução
da quantidade de cédulas de papel e de depósitos em conta-corrente na Venezuela
No entanto, segundo reportagem
do The Wall Street Journal, as
impressoras do Banco Central da Venezuela, localizadas na cidade industrial de
Maracaíbo, não têm mais papel suficiente para continuar a impressão de
cédulas. Não no volume exigido pelo
governo — que, após a queda do preço do petróleo, passou a se financiar quase
que exclusivamente via impressão de dinheiro.
Sendo assim, como manter o ritmo dessa tresloucada
criação de cédulas de papel?
O próprio The
Wall Street Journal respondeu: utilizando 36 Boeings 747, os famosos
Jumbos.
Toneladas
de provisões, amontoadas dentro de 36 Boeings 747 cargueiros, chegaram aqui em
Caracas oriundos de vários países ao redor do mundo para trazer mantimentos
para a estropiada economia venezuelana.
Porém,
em vez de comida e de remédios, os aviões trouxeram um outro recurso que
frequentemente se torna escasso aqui: cédulas
da moeda venezuelana, o bolívar.
De
acordo com sete pessoas que participaram do acordo, os suprimentos fazem parte de uma remessa de pelo menos cinco bilhões
de cédulas que o governo do presidente Nicolás Maduro encomendou durante o
segundo semestre de 2015 como forma de aumentar a oferta da cada vez mais
desvalorizada moeda venezuelana.
E não acaba por aí.
Mais aviões estão chegando.
Ainda segundo a reportagem, o Banco Central
venezuelano começou negociações secretas para encomendar outros 10 bilhões de
cédulas, o que, na prática, irá dobrar toda a quantidade de cédulas em
circulação. Para efeito de comparação,
vale dizer que o Fed (o Banco Central americano) e o Banco Central Europeu, que
atuam em regiões de dimensão continental, imprimem anualmente 8 bilhões de
cédulas cada um — sendo que os dólares e euros, ao contrário do bolívar, são
utilizados mundialmente, especialmente em outros países.
Obviamente, o governo venezuelano tem de pagar por
esse serviço:
Toda
essa farra de encomenda de cédulas está custando ao governo venezuelano
centenas de milhões de dólares, disseram as sete pessoas envolvidas no acordo
entre o governo venezuelano e os produtores das cédulas de dinheiro.
[...]
A
maioria dos governos ao redor do mundo terceirizou a atividade de impressão de
cédulas para empresas privadas, as quais podem fornecer sofisticadas
tecnologias anti-falsificação, como marcas d'água e faixas de segurança.
[...]
A
enorme encomenda de 10 bilhões de cédulas do governo venezuelano não pôde ser
atendida por apenas uma empresa, disseram as sete pessoas familiarizadas com o
acordo. Consequentemente, a medida do
governo venezuelano despertou um enorme interesse entre as maiores empresas
mundiais do ramo de impressão de dinheiro, cada qual ansiosa por uma fatia desse
bolo, principalmente em uma época em que as baixas margens de lucro no ramo da
impressão de cédulas de dinheiro obrigaram várias dessas empresas a cortarem
seus custos.
Mas como o governo venezuelano está pagando por este
serviço? Exaurindo suas reservas
internacionais em dólar e, principalmente, queimando todo o seu estoque de
ouro.
De acordo com informações da Reuters
e da Bloomberg,
todo o ouro provavelmente estará exaurido até o final deste ano, dado que o
país tem dívidas de US$ 12 bilhões que vencerão este ano e terá de recorrer ao
metal para quitar estas dívidas. Após
isso, a menos que ocorra um surpreendente aumento nos preços do petróleo — que
sempre foi o grande garantidor de divisas para o país —, o país estará à
deriva.
Atualmente, já há enormes dificuldades para importar
bens essenciais, como medicamentos contra o câncer, papel higiênico, e
repelentes contra insetos para exterminar o
vírus da Zika.
Mas tudo se torna ainda mais ridículo: o governo
determinou que a cédula de maior denominação é a de 100 bolívares. Não pode haver nenhuma cédula maior que a de
100 bolívares. Segundo
a reportagem, o governo venezuelano se recusa a imprimir cédulas de maior
denominação — o que, por si só, geraria uma grande redução nos custos de
impressão, poupando ao governo milhões de dólares — porque "fazer isso
implicaria o reconhecimento de que o país está em hiperinflação, algo que o
governo publicamente nega."
As
mais recentes encomendas do Banco Central venezuelano contemplam exclusivamente
cédulas de 100 e de 50 bolívares, pois as de 20, 10, 5 e 2 valem menos do que
seu custo de produção.
Enquanto isso, a vida na Venezuela segue perturbadoramente
semelhante àquela vivenciada pelos alemães durante a hiperinflação da República de Weimar em
1923, com os carrinhos de mão lotados de dinheiro e tudo:
Embora
o uso de cartões de crédito e de transferências bancárias esteja em alta,
venezuelanos têm de carregar pilhas enormes de cédulas de dinheiro, uma vez que
os vendedores fazem de tudo para evitar as taxas governamentais que incidem
sobre as transações eletrônicas. Jantar
em um restaurante bom pode custar um tijolo de cédulas de dinheiro. Um pastel de queijo — localmente conhecido
como arepa — custa aproximadamente 1.000 bolívares. Como a cédula de maior denominação é a da 100
bolívares, um simples pastel de queijo exige que o comprador tenha ao menos dez
cédulas de 100 bolívares — cada qual vale menos que US$ 0,10.
Por
causa do rígido controle de preços implantado pelo governo, só é possível
encontrar bens no mercado negro. Desde
pneus de carro até fraldas de bebê — os venezuelanos têm de recorrer ao
mercado negro se quiser adquiri-los. E o
mercado negro, obviamente, só trabalha com dinheiro vivo, o que exige que os
venezuelanos portem pilhas e pilhas de cédulas de dinheiro.
E as coincidências se tornam ainda mais
desesperadoras. De acordo com as pessoas
que participaram do acordo entre o Banco Central da Venezuela e as empresas
privadas que estão fornecendo as cédulas:
As
empresas escolhidas são a britânica De La Rue, a canadense Bank Note Co., a
francesa Oberthur Fiduciaire e sua subsidiária em Munique chamada Giesecke & Devrient, que é a mesma que
imprimiu as cédulas alemãs durante a hiperinflação da República de Weimar, em
1923, quando os cidadãos tinham de utilizar carrinhos de mão lotados de
dinheiro para comprar pão.
Mais
recentemente, essa mesma empresa forneceu as cédulas de dinheiro para o
Zimbábue quando o país entrou em hiperinflação em 2008. À época, os preços dobravam diariamente.
Conclusão
Recentemente, uma foto de um venezuelano utilizando
uma cédula de 2 bolívares como guardanapo para segurar uma empanada tornou-se
viral na internet. A imagem é uma
perfeita ilustração da teoria econômica: se a moeda é fraca, ela perde toda a
sua função de meio de troca, e passa a ser utilizada em aplicações mais
cotidianas.

Uma cédula de 2 bolívares vale muito menos que US$
0,01 (na prática, vale um terço de um cent, ou US$ 0,002). Já um pacote de guardanapos custa mais de 600
bolívares.
Essa foto é pavorosamente parecida com as fotos
oriundas do episódio da hiperinflação alemã na época da República de Weimar, em
que o índice da inflação de preços mensal
saltou de 100% em julho
de 1922 para 29.500% em novembro de 1923. A cédula de 100 trilhões de
marcos foi
criada e as impressoras do Reichsbank passaram a imprimir dinheiro ao ritmo
recorde de 74 trilhões de cédulas de marcos por semana.
Como consequência dessa inflação de dinheiro, os
alemães passaram a utilizar as cédulas como lenha para fogueiras e para fogões.
Por ora, podemos apenas especular a extensão do
estrago que esse episódio trará à poupança dos venezuelanos. À medida que as notícias sobre a economia do
país vão sendo reveladas é inevitável não ter aquela sensação de horror.
Não deixa de ser fascinante constatar que, mesmo com
a história nos fornecendo inúmeros exemplos, os governos parecem nunca
aprender. Eles continuam acreditando que
podem, de alguma maneira, sobrepujar as leis econômicas por decreto. E isso se aplica não apenas ao governo da
Venezuela, mas também a todos os governos do mundo. O planejamento central da moeda é uma prática
adotada por todos os governos de todos os países. A Venezuela é apenas o exemplo mais extremo.
Em algum momento, todos os estados deixarão de ser
capazes de honrar suas promessas feitas aos seus cidadãos. E quando isso ocorrer, ou seja, quando os
governos não mais forem capazes de manter suas promessas por meio da tributação
e do confisco de riqueza, eles recorrerão à impressora de dinheiro.
Essencialmente, todos os governos do mundo controlam
suas moedas da mesma maneira que o governo Maduro. Varia apenas a intensidade com que cada
governo destrói o poder de compra de suas respectivas moedas. Ao redor de todo o mundo, o que temos no
âmbito monetário é socialismo puro, de modo que todas as moedas nacionais estão
sujeitas unicamente ao poder político.
É inevitável imaginar (e temer) quantos outros
desastres econômicos terão de ocorrer até que se torne claro que o socialismo
— de todos os tipos, tamanhos e graus de intensidade — é impraticável, intolerável e indesculpável.
_________________________________-
Carmen Dorobat,
pós-doutoranda em economia na Universidade de Angers e professora na Bucharest
Academy of Economic Studies.
Steve Hanke, professor de Economia Aplicada e co-diretor do
Institute for Applied Economics, Global Health, and the Study of Business
Enterprise da Universidade Johns Hopkins, em Baltimore, EUA. O
Professor Hanke também é membro sênior do Cato Institute em Washington, D.C.;
professor eminente da Universitas Pelita Harapan em Jacarta, Indonésia;
conselheiro sênior do Instituto Internacional de Pesquisa Monetária da
Universidade da China, em Pequim; conselheiro especial do Center for Financial
Stability, de Nova York; membro do Comitê Consultivo Internacional do Banco
Central do Kuwait; membro do Conselho Consultivo Financeiro dos Emirados Árabes
Unidos; e articulista da Revista Globe Asia.
Leandro
Roque, editor e tradutor do site do Instituto Ludwig von Mises
Brasil.