À exceção das contas do governo, nenhuma outra estatística
econômica é reportada com maior pesar e tons apocalípticos do que um déficit na
balança comercial de um país.
Sempre alerta à procura de iminentes desastres econômicos,
tanto a imprensa quanto economistas desenvolvimentistas se apressam em
pontificar, em tons graves, sobre os perigos de se ter um déficit comercial.
O problema é que ninguém nunca realmente explicou
qual perigo há em recebermos mais bens dos estrangeiros do que damos a eles.
E ninguém nunca explicou simplesmente porque não há nenhuma
explicação. Com efeito, eis uma lista de
alguns países que, nas últimas décadas, sempre ou quase sempre tiveram déficits
em sua balança comercial: EUA,
Austrália,
Nova
Zelândia, Suíça
(esta, aliás, teve o mais prolongado déficit de todos, de 1950 até meados da década
de 1990), Reino
Unido e Luxemburgo.
Por outro lado, escolha qualquer país da América do
Sul ou da África e as chances são de que você encontrará um país que exporta
muito mais do que importa.
(Já o Chile, durante sua década de desenvolvimento,
apresentou recorrentes
déficits em sua balança comercial).
O exemplo a seguir ajudará a entender por que déficits
na balança comercial não apenas não são ruins, como, ao contrário, podem
significar um aumento da prosperidade do país.
A
pequena ilha
Imagine um pequeno e pobre país isolado no meio do
Pacífico, com uma economia baseada predominantemente na pesca e na agricultura
de subsistência. Um belo dia, uma excursão de geólogos descobre vastas
reservas de petróleo nesse país. Imediatamente após essa descoberta, os
investimentos estrangeiros começam a afluir em massa para esse lugar.
Como o país até então não possuía uma infraestrutura
avançada, esse investimento estrangeiro terá de construir basicamente tudo:
poços petrolíferos, refinarias e oleodutos. Terá também de construir
estradas para escoar a produção, bem como um porto, onde embarcar o
produto. Para fazer todas essas construções, toneladas de equipamentos e
materiais de construção terão de ser levados a esse país, bem como quantidades
substanciais de bens de consumo para prover os trabalhadores dessas
construções.
Todos esses materiais, todos esses bens, constituem importações. Mais ainda: eles representam a contrapartida física de todo o dinheiro de
investimentos que está entrando na conta capital e financeira dessa ilha. O aumento do investimento estrangeiro possibilitou um aumento das importações.
A pergunta é: teria como esse país evitar um déficit
na balança comercial? Nem se ele exportasse todos os peixes, verduras,
cocos e vacas que seus habitantes possuem. E o principal: ele não teve de
exportar absolutamente nada para pagar por essas importações — o petróleo só
começará a jorrar daqui a vários anos, quando tudo isso estiver construído e
operante.
Logo, essa balança comercial deficitária
("desfavorável", segundo economistas) e todo o investimento
estrangeiro que a gerou representaram, na verdade, um desenvolvimento econômico
extremamente favorável para a economia local. Difícil
imaginar algo mais favorável do que esse arranjo.
Porém, um economista desenvolvimentista olharia para
os números e lamentaria o déficit na balança comercial. "Puxa, se ao
menos vacas, peixes e cocos estivessem sendo mandados para fora para atenuar
esse déficit comercial...".
O desenvolvimentista realmente acredita
que os habitantes desse país estariam em melhor situação caso abrissem mão de
suas vacas, peixes e cocos, mandando-os para o estrangeiro e, em troca,
alimentando-se de capim. Para ele, o que importa é a balança
comercial. Quanto menor o déficit, melhor.
Já um economista um pouco mais sensato reconheceria
que o atual arranjo econômico desse país realmente é benéfico para sua
população; ele reconheceria que investimentos estrangeiros produtivos
necessariamente geram déficits na balança comercial, pois investimentos
precisam da importação de bens de capital — se não precisassem da importação
de bens de capital, então poderiam ser realizados por nativos.
Investimentos estrangeiros e o déficit na balança
comercial que eles geram representam acumulação de capital para o
país em questão.
Todos
nós, como indivíduos, temos déficits em nossa balança comercial
Você certamente possui um déficit em sua balança comercial
com seu dentista, com os restaurantes, com os supermercados, com as lojas, com
as salas de cinema, com seu senhorio e, acima de tudo, com sua empregada
doméstica. Nenhum deles compra nada de você. Você dá seu dinheiro para eles.
Mas esses déficits comerciais são a recompensa que temos pelo nosso trabalho
assalariado. Nós conseguimos cobrir
esses "déficits" graças aos "superávits" que temos com nossos empregadores.
Isso mostra uma tautologia básica: no final, toda e
qualquer transação econômica entra em equilíbrio. Nós trabalhamos e produzimos para que
possamos consumir.
Expandamos agora esse exemplo para toda a população de
um país. Se um indivíduo de um país compra
bens e serviços de outras pessoas que moram em outros países, ele tem
necessariamente de ter produzido algo de valor para poder fazer essa importação. Se os indivíduos de um país estão comprando
mais televisores, tablets e smartphones de outro país, isso significa que alguém,
em algum lugar, está comprando algo de valor em posse desses indivíduos. Alguém está dando a eles os meios que os
permitem fazer essas importações.
Esses "meios" são os investimentos estrangeiros. No exemplo
da ilha acima, seus habitantes receberam esse dinheiro dos investidores
estrangeiros, os quais voluntariamente direcionaram para a ilha o seu dinheiro. Mas há outras formas.
Por exemplo, se eu sou o proprietário de uma fábrica
de automóveis e vendo um carro para um canadense, essa venda é computada como
sendo uma exportação. Por outro lado, se
um canadense compra ações dessa minha empresa, isso é computado como "investimento
estrangeiro", e não entrará nos cálculos de superávit/déficit comercial que
tanto preocupam os economistas.
Mas perceba que, em ambos os casos, algo foi
vendido. Na primeira situação, vendi um
carro. Na segunda situação, vendi uma ação. A primeira venda foi
computada como "exportação". A segunda
venda foi computada como "investimento estrangeiro".
E com um detalhe: os dólares usados neste investimento estrangeiro acabarão sendo utilizados para importações. Logo, a contrapartida de um investimento estrangeiro direto é a importação de um bem ou serviço.
No entanto, dado que o investimento estrangeiro não é
contabilizado como exportação/importação, é realmente de se estranhar que
países tenham déficits comerciais? Ora, são
exatamente esses investimentos estrangeiros que permitem as importações. Um país que está importando pouco é um país
pouco atraente para os investidores estrangeiros. Certamente será um país pobre.
Por isso, vale a pena repetir: toda transação comercial
deve se equilibrar. Se um país tem a
capacidade de importar bens e serviços produzidos pelo resto do mundo, isso
significa que o resto do mundo demonstrou interesse em investir nesse país.
Consequentemente, não é de se estranhar que todos
aqueles países ricos mencionados no início deste artigo tenham apresentado
contínuos déficits em suas balanças comerciais. Déficits na balança comercial gerados
por um aumento das importações são a consequência de fartos investimentos
estrangeiros. Realmente, não há nada de catastrófico
nisso.
A raiz do problema está na agregação
Não
existe isso de déficit comercial "entre países"; o que existe é uma
população produzindo e outra população comprando.
Os americanos, por exemplo,
compram dos mexicanos US$ 60 bilhões a mais do que os mexicanos compram dos
americanos. Trata-se de uma ação completamente pacífica e voluntária. Os
americanos voluntariamente compram produtos fabricados pelos mexicanos. Ninguém
os obriga a isso. Nenhum americano é coagido a isso. Nenhum americano é
agredido por isso.
Assim
como você possui um "déficit comercial" com o supermercado que você
frequenta ou com o restaurante em que você almoça — ambos os quais lhe
fornecem bens e serviços em troca do seu dinheiro —, os americanos possuem
essa mesma relação com os mexicanos, que lhes fornecem bens e serviços em troca
de dinheiro. Qual exatamente é o problema com este arranjo?
Ainda
assim, há quem diga que tal relação mútua e pacífica entre cidadãos americanos
(compradores voluntários) e cidadãos mexicanos (vendedores voluntários) é
deletéria para os EUA e deve ser revertida. Trata-se do perfeito exemplo da
mentalidade mercantilista, que acredita que, em uma transação comercial, só o
lado vendedor ganha, e o comprador só perde.
O
curioso é que, se este raciocínio realmente for levado a sério, jamais deveria
haver uma única transação comercial na história do mundo. Quem iria comprar algo,
se comprar é sinônimo de perder?
Este,
aliás, é o problema de se ver a economia como apenas uma massa agregada de
números, ignorando o indivíduo. Transações que, em nível individual, são
benéficas para ambos os lados, repentinamente tornam-se deletérias quando
analisadas agregadamente. Algo completamente sem sentido.
Superávits
na balança comercial significam privação
Entendido tudo isso, ainda resta a pergunta derradeira: qual seria o sentido de exportar mais do que
importar?
Pense em um cidadão brasileiro. Do ponto de vista dele, as exportações de
soja, laranja, milho, café, aço e automóveis do país só lhe são boas porque
trazem dólares que lhe permitem importar iPads, notebooks, smartphones,
tablets, livros, alimentos, vinhos, cervejas e várias outras coisas. Fora
isso, as exportações não lhe são nada vantajosas.
Ao contrário até: quanto mais um país exporta, menor
será a oferta desses bens exportados no mercado nacional. Quanto maior a
exportação de soja, laranja, café, milho, aço e carros, menor será a oferta
desses produtos para os brasileiros, o que significa que seus preços no mercado
interno serão maiores do que poderiam ser caso não fossem exportados.
De modo geral, sempre que a balança comercial
apresenta um superávit recorde, isso significa que o cidadão brasileiro foi
privado de uma maior oferta de bens, tanto aqueles produzidos nacionalmente e
que foram exportados, quanto aqueles produzidos no estrangeiro e que não
puderam ser importados por restrições governamentais.
Logo, a política governamental de estimular
exportações e restringir importações apenas para se ter superávits
na balança comercial só pode ser vista como um sadismo governamental, um ato de
criminosa privação da população.
Populações ricas são aquelas com amplo acesso aos
bens e serviços produzidos pelo resto do mundo. São aquelas que têm liberdade para importar. É para isso que acordamos cedo e trabalhamos muito:
para conseguirmos os meios para elevar nosso padrão de vida. E a importação de bens e serviços estrangeiros
de qualidade aumenta nosso padrão de vida.
Tudo
se resume a proteger a indústria nacional
A realidade é que a gritaria contra eventuais déficits
comerciais nada tem a ver com teorias econômicas. Hoje, os números da balança comercial não são
utilizados para informar ou iluminar. Seu
real propósito é fornecer estatísticas espúrias, bem como apoio
pseudo-científico, para grandes grupos empresariais em busca de legislações protecionistas.
Esses empresários avessos à concorrência externa
querem uma reserva de mercado, fazendo com que a população — principalmente os
mais pobres — seja forçada a comprar apenas os seus produtos. Para camuflar seus apelos diretos por
protecionismo, eles dizem apenas estar defendendo o "bem comum" em prol de uma balança
comercial favorável.
Para esses empresários protecionistas, as indústrias
nacionais não devem ser submetidas à liberdade de escolha dos consumidores
nacionais. Os consumidores não devem ter o direito de escolher produtos
estrangeiros. Eles devem ser obrigados a comprar apenas produtos
nacionais mais caros. Como defender
abertamente isso não seria muito popular, recorrer ao bicho-papão do "déficit da
balança comercial" soa mais científico.
Em todo caso, qualquer pessoa minimamente sensata
que já tenha parado para pensar sobre o assunto certamente ainda não deve ter
entendido esse básico: afinal, por que é dito que um país que dá mais bens do
que recebe em uma transação comercial apresenta uma balança comercial favorável?
Por que, afinal, dar mais do que recebeu seria "favorável"?
Se você já pensou sobre isso e não conseguiu
encontrar uma resposta, não se preocupe, pois você está em boa companhia. Adam Smith, ainda no século XVIII, também não
encontrou nenhuma resposta. Disse ele:
Nada
pode ser mais absurdo do que essa doutrina da balança comercial, sobre a qual [...]
praticamente todas as regulações sobre o comércio exterior são baseadas.
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