Eis algo cada vez mais claro: a "democracia" só
existe e só é boa quando os eleitores escolhem a opção preferida por determinada classe de
intelectuais e políticos. Quando os
eleitores escolhem candidatos ou resultados não-chancelados pela elite
progressista, bom, aí a tal democracia saiu do controle e o povo
demonstrou suprema ignorância.
Nos rastros do referendo do Brexit, da eleição de Donald Trump, do
referendo em que a população
húngara decidiu restringir a imigração, e do referendo em que o
povo colombiano rejeitou o acordo de paz do governo com os terroristas das FARC,
a esquerda global percebeu que algo tem de ser feito para restringir a ideia de
democracia irrestrita — uma ideia que ela própria vem promovendo há mais de um
século.
Percebendo que referendos populares [como o do desarmamento no Brasil]
fornecem uma maneira de os eleitores contornarem a vontade das elites
progressistas, intelectuais e jornalistas se uniram recentemente e, em uma
reviravolta impressionante, passaram a denunciar a própria ideia de democracia
direta.
Para lançar esse recém-criado ataque ideológico à
democracia, o The New York Times, no
início do mês, publicou um artigo intitulado "Why
Referendums Aren't As Democratic as they Seem" (Por que referendos não são tão democráticos quanto parecem). Nele, os jornalistas citam vários
"especialistas" que descrevem o processo democrático adotado em um referendo
como "supérfluo" e "perigoso".
O artigo, que nem sequer se preocupa em parecer
minimamente equilibrado — ele não apresenta nenhum "especialista" dando alguma
opinião pró-referendo —, cita uma variedade de políticos, economistas e outros
membros das elites com uma visão nada lisonjeira a respeito do povo que vota
'sim' para mudanças políticas, como o Brexit.
O economista Kenneth Rogoff, o mesmo que defende a abolição
de todo e qualquer dinheiro em espécie (o que seria fatal para os mais
pobres que não têm conta em banco), disse que referendos são uma "roleta russa
para as repúblicas".
Outros "experts" citados neste artigo do Times descrevem os eleitores como
imbecis que não entendem o assunto em que estão votando; néscios propensos a
mudar de ideia a qualquer momento influenciados por caprichos superficiais.
Enquanto isso, após o povo colombiano ter
votado contra um acordo de paz entre o governo e os terroristas marxistas das
FARC, tanto a revista The Economist
quanto o jornal internacional Christian
Science Monitor declararam
que era necessário "repensar" a ideia de "deixar a democracia diretamente
nas mãos do povo."
Assim como os porta-vozes da elite política citados
no artigo do The New York Times, os
especialistas anti-referendos disseram que somente políticos treinados estão
devidamente qualificados para tomar decisões políticos. Isso é especialmente válido, dizem eles, no
caso de política externa:
Escrevendo
na revista Foreign Policy, o professor de ciência política Matt Qvortrup observou que o ex-Secretário de Estado
americano Henry Kissinger e o ex-diplomata americano George Kennan diziam que
assuntos internacionais deveriam ser mantidos estritamente sob a
responsabilidade de uma "profética minoria" que sabe o que realmente é bom para
o resto dos cidadãos.
Essa instintiva reação anti-povo, demonstrada por
políticos confortavelmente estabelecidos e por seus assessores e apoiadores,
não é necessariamente errada. Muitos eleitores de fato são ignorantes e muito realmente mudam de ideia sem qualquer motivo
aparente. Mas o que esses recém-convertidos
críticos parecem não entender é que, por uma questão de lógica, toda a sua
reprovação aos referendos se aplica igualmente ao processo conhecido como democracia representativa.
Ou, o que é ainda mais provável, eles percebem a
contradição, mas simplesmente não ligam.
Na próxima ocasião em que o povo votar "corretamente", os atuais
críticos irão simplesmente fingir que jamais fizeram qualquer crítica à
sapiência do povo.
Porém, agora que a elite progressista anti-povo
deixou claro acreditar que os eleitores são muito ignorantes e incompetentes ao
ponto de votar pelo Brexit, pela eleição de Trump, pela restrição à imigração e contra o acordo entre
o governo colombiano e as FARC, é de imaginar o que simultaneamente os torna
competentes para votar para presidente, para senador e para deputado.
No entanto, a cada vez que há uma eleição e o
escolhido é aquele chancelado pela elite progressista, somos obrigados a ouvir
intelectuais e jornalistas dizendo que o povo realmente queria aquela opção e
que, por isso, o eleito realmente ganhou "um mandato" do povo.
Em suma, sempre que o povo vota em prol de algo que
o establishment gosta, então "o povo se manifestou" e sua escolha é "sagrada".
"Democracia"
é aquilo que só eles podem definir
Um grande exemplo desse padrão contraditório foi o
recente caso de
impeachment no Brasil, em que a presidente Dilma Rousseff foi afastada em
definitivo da presidência. Às vésperas
da votação do impeachment pela Câmara dos Deputados, as elites progressistas
defendiam um referendo
popular em que o povo deveria votar 'sim' ou 'não' pelo afastamento da
então presidente. Tal referendo era
considerado sacrossanto. Por outro lado,
a remoção de Dilma por deputados e senadores — eleitos democraticamente por
esse mesmo povo! — era considerado um "golpe contra a democracia".
Ou seja, a escolha dos eleitores em outubro de 2014
(por uma margem bastante apertada) era algo indiscutível e, acima de tudo,
imutável. Já qualquer tentativa de
reverter o resultado via democracia
representativa — por meio de representantes democraticamente eleitos, os
quais, em tese, representam a "voz do povo" — era considerado um 'golpe' e,
portanto, 'ilegítimo'.
E agora vem a melhor parte: no caso do Brasil, o
legislativo eleito pelo povo estava sendo "anti-democrático" ao contradizer a
eleição popular de Dilma dois anos antes.
Já no caso do Brexit, a esquerda progressista — capitaneada pelo jornal
The Guardian — diz ser um dever do
legislativo contradizer os eleitores e anular
o voto do Brexit.
Em outras palavras, se o povo vota a favor de uma
figura querida da esquerda globalista, então o povo é sábio e sabe
perfeitamente o que está fazendo. Já se
o povo vota pelo Brexit, contra um acordo de paz com os marxistas das FARC, ou em Donald Trump, então o povo é composto por bufões ignorantes demais
para entender os reais problemas.
Referendos
e iniciativas populares não têm nada de novo
Esse recente pânico em relação à democracia direta
também advém da falsa alegação de que a democracia via referendos e iniciativas
populares são algo majoritariamente novo, sem precedentes na política
ocidental.
A Suíça, vale lembrar, utiliza referendos e
iniciativas populares desde 1893. Já a
ideia da democracia plebiscitária era um componente convencional do liberalismo
na Europa do século XIX. Ludwig von
Mises, por exemplo, ele próprio muito bem enredado nos radicais movimentos pró-laissez faire na Áustria antes da
Primeira Guerra Mundial, sugeriu em seu livro Liberalismo
— Segundo a tradição clássica que os eleitores de qualquer jurisdição
política, mesmo em simples vilarejos, deveriam ser livres para se separar de
outras jurisdições políticas via voto popular:
Quando os habitantes de um determinado
território (seja uma simples vila, todo um distrito, ou uma série de distritos adjacentes)
fizerem saber, por meio de um plebiscito livremente conduzido, que não mais
desejam permanecer ligados ao estado a que pertencem, mas desejam formar um
estado independente ou tornar-se parte de algum outro estado, seus anseios
devem ser respeitados e cumpridos.
Tampouco é algum mistério
saber por que Mises considerava que esse tipo de democracia direta era algo
trivial. Menos de cinco anos antes de
Mises lançar seu livro, a região alemã de Büsingen havia votado maciçamente em
prol de se juntar à Suíça, tornando-se um dos cantões daquele país. Um ano depois, os eleitores da região
austríaca de Vorarlberg votaram
para se separar da Áustria e se juntar à Suíça.
Em ambos os casos, os
suíços rejeitaram essas tentativas de alargar seu país.
Esse tipo de democracia
direta sempre foi considerado por vários como sendo a prerrogativa dos
eleitores. E certamente, em nenhum dos
dois exemplos acima, ficou explicitado que os eleitores de Büsingen ou de Vorarlberg eram menos qualificados para determinar seu
próprio destino do que a supostamente mais sábia e mais bem informada
"profética minoria" de Berlim ou Viena.
Analisando as iniciativas
populares restritas apenas aos eleitores suíços, vemos que, entre 1893 e 2014, apenas
22 de 192 iniciativas populares foram aprovadas pelos eleitores. A reticência com que essas iniciativas são recebidas
pelos suíços indica prudência da parte dos eleitores, bem ao contrário do que
alegam os oponentes das iniciativas populares, que afirmam que a imprudência e a
afobação dos eleitores irão gerar um apocalipse.
E, enquanto toda a Europa
se degenerava no fascismo, no nazismo e no autoritarismo ao longo das décadas de
1920 e 1930, a Suíça, com toda a sua democracia direta, permaneceu notavelmente
estável.
Adicionalmente, vários
estados americanos (majoritariamente
estados do meio-oeste) utilizam referendos e iniciativas populares. E, dado que esses estados tendem a ter um
desempenho econômico e social, no mínimo, tão bom quanto o do resto do país em
termos de expectativa
de vida, criminalidade
e "saúde fiscal" (com
a exceção da Califórnia), não há nenhuma evidência de que jurisdições que
empregam a democracia direta tenham qualquer semelhança com a "roleta russa"
imaginada por Rogoff.
É impossível concluir,
obviamente, que a estabilidade política da Suíça ou a baixa criminalidade do
estado do Oregon sejam causadas pela proeminência da democracia direta
daquelas jurisdições. Porém, também não podemos
concluir que a democracia direta seja especialmente problemática naquelas áreas. Tampouco, por extensão, há qualquer motivo
para acreditar que a democracia representativa seja especialmente bela e moral
quando comparada a este estilo mais direto de democracia.
Com efeito, assim como
ocorre com a democracia representativa, a democracia direta tem gerado
resultados mistos. Eleitores frequentemente
irão votar em prol de um salário mínimo maior ou de outras regulamentações governamentais
que não seriam aprovadas sem um voto direto.
Tais iniciativas irão empobrecer e afetar as economias dessas jurisdições. Por outro lado, eleitores frequentemente
votaram contra aumentos
de impostos e outras onerosas regulamentações estatais, como a recentemente
rejeitada proposta de uma "renda
mínima básica" na Suíça.
Seria a democracia direta mais facilmente
manipulável?
Os oponentes da
democracia direta sempre alegaram que iniciativas populares e referendos podem
ser manipulados por grupos de interesses e lobbies. [No Brasil, os
intelectuais de sempre falaram que o referendo do desarmamento no Brasil foi
manipulado pela indústria de armas].
Curiosamente, essas
mesmas pessoas ignoram que políticos eleitos por meio da democracia
representativa raramente demonstram independência em relação aos lobbies e aos
grupos de interesse [a
Lava-Jato é um claro exemplo].
Como observou
o cientista político chileno David Altman, eleitores na América Latina
rejeitaram referendos e iniciativas populares com grande frequência:
Nos últimos 40 anos, 109 votos populares
foram convocados pelas autoridades da América Latina na forma de plebiscitos e
referendos compulsórios. Destes, 64
(58%) receberam o apoio da população, ao passo que 45 foram rejeitados. Mas os votos propostos pelo público — tais
como iniciativas populares ou referendos contra leis existentes — também não foram
aceitos automaticamente. Dos 18 votos
populares que ocorreram, nove foram aceitos.
Altman conclui que "o
instrumento da democracia direta é menos suscetível a manipulações do que
geralmente se imagina"
A democracia possui vários
defeitos graves, e nenhum deles pode ser ignorado com meras piadinhas do tipo "a democracia é a pior de todas as formas de
governo, excetuando-se as demais". No entanto,
tão logo começamos a analisar todos os sistemas democráticos existentes, não há
nenhum indício de que a democracia direta leve a resultados demonstravelmente
piores do que a democracia representativa.
Recentemente, é fato, o
povo de vários países tem votado de uma maneira que vem preocupando as elites
globais e progressistas, que se acostumaram a ter resultados eleitorais a seu
favor. Consequentemente, o The New
York Times, o The Guardian, a The Economist, e todos os seus
seguidores e imitadores se apressaram em nos explicar que o povo é simplesmente
ignorante demais para ter o poder de decidir questões grandes e importantes.
Se tais pessoas estão infelizes
com o arranjo, então há motivos para ficarmos felizes.
A democracia direta não é
perfeita, mas, considerando os inimigos que ela vem ganhando ultimamente,
talvez ela não seja tão ruim quanto pensávamos.