segunda-feira, 11 jan 2021
Não existe nenhuma fábrica ou montadora de
automóveis na Nova
Zelândia. E nem
no Chile.
Há muito tempo sua população deixou claro, por meio
de suas preferências de consumo, que não queria que o país consumisse recursos
escassos — mão-de-obra e matéria-prima — fabricando estes bens de consumo.
Sua população prefere que sua mão-de-obra e seus
recursos escassos sejam destinados à produção daqueles bens e serviços em que eles
realmente são bons e competentes.
Em termos técnicos, isso se chama divisão do
trabalho (cada um se especializa naquilo em que é bom) e vantagem comparativa
(faço aquilo em que sou melhor que os outros).
Mas agora vem o fato realmente curioso: mesmo sem
ter nenhum fabricante de automóveis em seu território, há 837 carros para cada
1.000 habitantes na Nova Zelândia. Isso significa que sua população é a quarta mais motorizada do mundo (à frente, inclusive, da Itália e muito à frente
da Alemanha e da Suíça).
Já no Chile, os números são mais modestos. Há 230
veículos por 1.000 habitantes, o que coloca o país na 66ª posição (dados defasados de 2015). Ainda assim,
o país está tecnicamente empatado com o Brasil, que está na 49ª posição (dados atualizados de 2020) e
possui nada
menos que 17 montadoras.
Qual o segredo?
O
milagre da transubstanciação
Basicamente, se quiserem ter carros, Nova Zelândia e
Chile têm duas opções: ou eles montam fábricas voltadas exclusivamente à
produção de automóveis ou eles simplesmente extraem do solo todos os carros que
querem, já montados e prontos para uso.
Ambos os países, inteligentemente, optaram pela
segunda alternativa.
Eis como um carro é fabricado na Nova Zelândia:
primeiro, um pecuarista cria vacas e ovelhas, que são a matéria-prima da qual os
carros são feitos. Após alguns meses, as vacas e as ovelhas crescem. Ato
contínuo, ele extrai leite das vacas, corta sua carne e tosa o pêlo das
ovelhas. O leite se transforma em vários derivados. A vaca se transforma em
carne. O pêlo da ovelha se transforma em lã. Esses três produtos são embarcados
em navios. Os navios vão para a Ásia, para as Américas e para a Europa. Após
alguns meses, os navios reaparecem com Toyotas,
Ford Rangers, Mitsubishis, Nissans e Mazdas dentro deles.
Eis como um carro é fabricado no Chile: primeiro, mineiros
escavam minas de cobre e agricultores cultivam parreiras. Cobre e uva são as
matérias-primas das quais os automóveis são feitos. Após algum tempo, as uvas
crescem e o cobre é extraído do solo. O cobre e as uvas são embarcados em
navios. Os navios vão para a Ásia, para a América do Norte e para a Europa.
Após alguns meses, os navios voltam com Chevrolets,
Mazdas, Fords, Kias, Toyotas, Nissans e Hyundais dentro deles.
Assim funciona a mágica produção de carros nestes
dois países. Eles exportam produtos e, com o dinheiro dessa exportação,
importam automóveis.
Eis a principal pauta de
exportação da Nova Zelândia: laticínios, ovos, mel, carne, lã, madeira, frutas,
nozes, bebidas e peixes.
Eis a principal pauta de
exportações do Chile: cobre, uvas, peixes, vinho, polpa de madeira e
fertilizantes.
Em troca desses bens simples, os neozelandeses e
chilenos recebem
carros, caminhões, máquinas, equipamentos, petróleo, aviões, eletroeletrônicos,
têxteis, plásticos, produtos químicos, aços e borrachas.
Eu diria que é um ótimo negócio. E extremamente
conveniente.
Tecnologia
pura
O comércio internacional nada mais é do que uma
forma de tecnologia mágica, que converte bens que você produz em bens que você
não produz. Se você se especializa na produção de um bem, e adquire uma
vantagem comparativa na produção deste bem, você conseguirá obter qualquer
outro bem que deseja.
Essa é a mágica da especialização e da divisão do
trabalho. Por poderem comprar carros (e praticamente quaisquer outros produtos)
baratos do exterior, os chilenos e neozelandeses se concentram naquilo que
sabem fazer melhor, e deixam para os outros a árdua tarefa de montar seus
veículos. Eles já perceberam que é muito mais negócio simplesmente importar
carros baratos do que direcionar recursos escassos para tentar fazê-los por
conta própria, algo em que eles não são bons. Eles sabem que isso não seria
inteligente. Eles entendem a lei das vantagens comparativas.
Em vez de sofrerem de delírios megalomaníacos, acreditando que devem tentar produzir de tudo, os chilenos e os neozelandeses simplesmente entenderam que há produtos que podem ser mais bem produzidos no exterior. Os automóveis são um destes.
O fato de que há países chamados Japão, Coreia e
Estados Unidos, com pessoas e fábricas, é totalmente irrelevante para o
bem-estar de neozelandeses e chilenos (e também de irlandeses, suíços e
islandeses, cujos países também não possuem montadoras). Em termos práticos,
tais locais podem ser vistos como gigantescas máquinas misteriosas que
convertem laticínios, lãs, uvas e cobres em uma variedade de produtos que
desejam.
Atrapalhando
tudo
Agora, imagine que os governos destes dois países
resolvessem "estimular a indústria nacional" tributando pesadamente os carros
importados com o objetivo de criar uma "grande e forte" indústria
automobilística local.
Quais seriam as consequências?
Em primeiro lugar, há o fato óbvio de que, se Chile
e Nova Zelândia passarem a tributar pesadamente as importações de automóveis do
Japão, da Coréia e dos EUA, estes países iriam retaliar e iriam também tributar
pesadamente as importações de produtos chilenos e neozelandeses.
Consequentemente, não apenas toda a população
estaria em pior situação (todos os produtos agora estariam bem mais caros),
como ainda os próprios exportadores da Nova Zelândia e do Chile seriam
prejudicados, pois agora seu mercado consumidor estaria reduzido.
Mas e se não houvesse retaliações? Ainda assim, as
vítimas seriam as mesmas.
Para começar, a população da Nova Zelândia e do
Chile agora estaria privada de obter carros baratos. Isso seria um ataque
direto à sua mais essencial liberdade, que é a liberdade de escolha. Seus
salários agora valeriam menos. As pessoas trabalhariam, mas não teriam o
direito de usufruir seu salário em sua plenitude, pois o governo agora
encareceu artificialmente a aquisição de um bem.
Mas tudo piora. E
agora vem a parte principal. Construir indústrias automotivas e fabricar carros
exigirá que vários recursos escassos sejam desviados para esses
empreendimentos. Mais minério de ferro, mais aço, mais borracha, mais alumínio,
mais plásticos, mais maquinários, mais eletricidade etc. serão demandados pelas
montadoras. Consequentemente, haverá menos desses recursos disponíveis para o
resto da economia, principalmente para os produtores exportadores. Mais aço,
alumínio, borrachas, peças e maquinários demandados pela indústria automotiva
significam menos desses itens disponíveis para os maquinários dos mineiros, as
colheitadeiras dos agricultores, os barcos dos pescadores, e os tratores e
caminhões dos madeireiros.
Os preços de todos os recursos subirão, inclusive a
eletricidade. Consequentemente, os custos de produção também subirão. Ato
contínuo, os próprios exportadores terão de subir seus preços, o que poderá
afetar suas vendas. Com menos vendas ao exterior, a própria capacidade de
importação do país diminui, o que pode afetar diretamente o padrão de vida de
toda a população.
E tudo isso será ainda mais acentuado pelo fato de
que, por não terem expertise nessa área e por operarem sob uma reserva de
mercado, as indústrias automotivas destes países não terão motivos para serem
eficientes. Isso elevará ainda mais o desperdício de recursos escassos,
intensificando a alta de custos e dificultando ainda mais a vida dos outros
produtores e exportadores.
Qual foi o ganho líquido para a população deste
país? Exato, nenhum.
Qualquer política governamental criada para
favorecer um setor é uma política que irá inevitavelmente prejudicar vários
outros setores. No mercado, nenhuma distorção criada artificialmente passa
impune.
No exemplo acima, uma tributação sobre (ou mesmo a
proibição de) carros importados representou uma tributação sobre (ou mesmo a
proibição de) vários outros produtos exportados. Se o governo decide proteger
um setor, inevitavelmente ele prejudicará outro setor.
Conclusão
Decidir se um país deve ou não produzir carros por
conta própria — ou qualquer outro produto — é algo que tem de ser determinado
exclusivamente pelo sistema de preços livres. Este é o único sistema que pode
determinar se um empreendimento é sensato ou não.
Havendo um sistema de preços livres, ele irá
selecionar uma alocação de recursos que minimize os custos totais de produção.
Em alguns países — como Nova Zelândia, Irlanda,
Suíça, Islândia e Chile —, não é racional direcionar recursos escassos para a
produção de automóveis. É mais sensato trazê-los de fora. Em outros países,
como EUA, Canadá e Alemanha, produzir dentro e também importar é o arranjo mais
sensato, pois a demanda é grande.
Já quando um governo decide dificultar as importações
para favorecer uma indústria já estabelecida — como ocorre com a indústria
automotiva no Brasil —, ele não apenas transfere renda de toda a população para
esta indústria (vide que os preços dos carros no Brasil nunca caem, mesmo em
meio a uma brutal recessão e a uma acentuada queda na demanda), como ainda
aumenta o custo do cidadão comum adquirir este produto. Toda essa perda de eficiência
ocorre sem que haja nenhum ganho.
Como consequência, todo o país está mais pobre, e
muito aquém do seu padrão de vida potencial.
Quer ter um padrão de vida alto, com acesso pleno e barato aos melhores produtos do mundo? Defenda o livre comércio.