À medida que a Venezuela vai se afundando em um
interminável pesadelo marcado pela fome, pela miséria, pela inanição e pela violência, o longo
debate sobre a viabilidade do socialismo adquire uma nova relevância.
Anos de políticas explicitamente socialistas
implantadas pelos regimes de Chávez e Maduro estão gerando seus inevitáveis
efeitos. Graças às
políticas de controle de preços, de impressão desmedida de dinheiro,
de estatização
de fábricas e de lojas (até mesmo
hotéis foram estatizados), absolutamente tudo está em falta no país.
Tais medidas do governo destruíram de maneira tão
completa o pouco que restava de capitalismo, que o desabastecimento se tornou
geral. Aquele país que já teve a quarta população mais
rica do mundo vivencia hoje uma escassez geral, com racionamento de papel
higiênico, comida, cerveja, eletricidade, água e remédios. Até mesmo
os hospitais ficaram
sem papel higiênico e sem remédios. A
taxa de mortalidade de recém-nascidos disparou.
Mesmo com toda a riqueza de suas reservas
petrolíferas, as políticas de controle de preços, estatizações, impressão de
moeda e redistribuição bagunçaram completamente a economia e acabaram por
completo com a produção — e, logo, com o consumo.
Um país que outrora exportava grãos para o resto do
mundo não consegue hoje nem sequer alimentar seu próprio povo.

De quem é a culpa?
Esse desastre humanitário gerou a questão sobre quem
deve ser responsabilizado. Tal pergunta deixa os auto-declarados
socialistas e seus simpatizantes progressistas em apuros. Afinal, é fácil
encontrar vários
exemplos (de Michael Moore a Bernie Sanders) de pessoas à esquerda
elogiando e glorificando as políticas econômicas de Chávez. Clique aqui
para ler um compilado.
Em 2013, um famoso esquerdista americano, David Sirota, escreveu um
ensaio para a revista Salon intitulado "O milagre
econômico de Hugo Chávez". Eis um trecho:
Chávez se tornou o bicho-papão da política
americana porque sua defesa aberta e inflexível do socialismo e do
redistributivismo não apenas representa uma crítica fundamental à economia
neoliberal como também vem gerando resultados inquestionavelmente positivos.
... Quando um país adota o socialismo e se esfacela, ele se torna motivo de
piada e passa a ser visto como um inofensivo e esquecível exemplo de
advertência sobre os perigos de uma economia dirigida pelo governo.
Porém, quando um país se torna socialista e sua economia apresenta o grande
desempenho exibido pela economia venezuelana, ele não mais se torna motivo de
piada — e passa a ser difícil ignorá-lo.
Logo, o que as pessoas que tomaram essa mesma
posição em relação à Venezuela podem dizer perante este desastre? E os defensores da liberdade e do livre mercado?
Muitos à esquerda farão o esperado: dirão que nada
disso é culpa do socialismo. Alguns até mesmo dirão que as políticas da dupla
Chávez-Maduro nunca foram "genuinamente" socialistas. Em outros casos, dirão
que, embora as intenções da dupla fossem nobres e humanas, a corrupção e uma má
implementação acabaram fazendo com que essas boas políticas não tenham dado
certo.
Obviamente, ambos esses argumentos não se
sustentam. Se tais políticas — estatizações, controle de preços, confiscos e
redistribuição — não representam o "genuíno" socialismo, então por que tantas
pessoas simpáticas ao socialismo expressaram tanto apoio ao governo venezuelano
no passado, dizendo que ele estava revolucionando a economia para o bem? O
próprio Chávez, reiteradas vezes, fez esta alegação.
Será que todas essas pessoas não entendem o que o
socialismo realmente é? As várias tentativas feitas por Chávez de impedir que
os mercados e os preços funcionassem, e de substituir as transações voluntárias
por alguma forma de planejamento central "em nome do povo", foram todas elas
consistentes com os pilares do socialismo.
Se isso não era socialismo, então qual o atual
significado de socialismo?
O socialismo verdadeiro
Historicamente, o socialismo sempre foi definido
como a abolição da propriedade privada dos meios de produção. Na prática, seria
a substituição da "anarquia da produção" — que foi como Marx rotulou o livre
mercado — pela propriedade pública ou comunal dos meios de produção.
Abolir a propriedade privada, as relações de troca,
os preços e os lucros iria, na visão de Marx, acabar com a exploração, a
alienação e as crises que caracterizavam o capitalismo. Adicionalmente,
racionalizar a produção por meio de um planejamento central feito por
burocratas — em vez de deixar tudo à mercê do método de tentativa e erro do
mercado — iria eliminar todos os desperdícios e gerar uma explosão de
produtividade que iria nos enriquecer a todos.
Todos, ou praticamente todos, estes ingredientes
foram seguidos à risca pelo governo venezuelano. Não era socialismo?
O que dizer então do argumento de que tais
políticas socialistas eram bem-intencionadas, mas acabaram sendo desvirtuadas
pela corrupção e por uma má implementação?
O problema com esse argumento é que tal fenômeno
parece acontecer absolutamente todas as vezes que o socialismo é implantado.
Sempre.
Os bolcheviques começaram a implantar o socialismo
marxista menos de um ano após tomarem o poder. Uma década depois, eles já
estavam no stalinismo pleno, tendo como uma das consequências o Holodomor, que provocou
14,5 milhões de mortes.
Cuba, após a revolução, rapidamente
se degenerou em uma ditadura.
A China também se transformou em uma brutal ditadura
sob a mão firma de Mao Tsé-Tung, fazendo com que famintos chineses tivessem de
comer seus próprios filhos.
O que dizer do Camboja e seu Khmer Vermelho, que
praticou o extermínio de quase 40% da população e que assassinava
crianças com baionetas?
Não nos esqueçamos também dos países africanos. Quem ainda se lembra das
imagens (fortíssimas) de crianças famintas na Etiópia, no início da
década de 1980? Crianças totalmente desnutridas, mas com as barrigas
inchadas pela Kwashiorkor,
e olhos cobertos de moscas. Eram as vítimas inocentes das políticas
econômicas do Derg —
um grupo de militantes marxistas que havia assumido o controle do país e
implantado um programa de estatização de empresas e propriedades, de controle
de preços, de proibição do comércio de cereais. Entre 1983 e 1985,
aproximadamente 400.000
pessoas literalmente morreram de fome no país.
E a Coreia do Norte, e sua
população de desnutridos?
A lista continua. Seria tudo isso uma enorme
coincidência?
Absolutamente. Todas. As. Vezes.

Marx e outros socialistas pensavam que aqueles que
estariam encarregados do processo de planejamento — e, para Marx, estes eram
toda a comunidade — poderiam racionalmente determinar o que produzir, como
produzir, e em que quantidade na ausência de mercados, transações comerciais e
preços.
No entanto, desde o famoso ensaio de
Mises, de 1920, explicando por que o socialismo não tem como funcionar,
todos nós já sabemos que toda e qualquer experiência socialista irá, no final,
acabar em tragédia.
Preços livremente
determinados pelo mercado são necessários para que consumidores e
empreendedores possam fazer cálculos e estimativas. Sem preços livremente
determinados, não há como empreendedores saberem o que os consumidores estão
demandando. E não há como os consumidores organizarem racionalmente suas
preferências de consumo. Ainda mais importante: não há como empreendedores
satisfazerem os consumidores utilizando recursos escassos da maneira mais
racional possível.
Em outras palavras, decisões racionais de produção
são impossíveis sem preços de mercado. E preços de mercado não podem existir
sem transações comerciais livres. Consequentemente, é necessário haver
propriedade privada, principalmente dos meios de produção.
Mas o que acontece quando aqueles com o poder de
tomar as decisões centralizadas percebem que não serão capazes de alcançar seus
objetivos (por mais bem intencionados que sejam)? O poder não simplesmente
desaparece. Com enorme frequência, a primeira reação destas pessoas é
exatamente aquela que ocorreu na Venezuela: atacar com ainda mais veemência os
produtores por estes não terem sido capazes de atender às impossíveis demandas;
estatizar as instalações industriais e os estabelecimentos comerciais ainda sob
controle privado; impor o racionamento de bens; e punir todos aqueles que
estiverem "estocando" mercadorias.
E quando nada disso funcionar, parte-se para um
autoritarismo ainda mais draconiano, e faz-se tudo o que for necessário para se
manter no poder.
Após algum tempo, tais exercícios de poder bruto
geram consequências: eles atraem para o alto escalão do governo aqueles indivíduos
que possuem prática e experiência em exercer tal poder (em linguajar econômico,
aqueles indivíduos que possuem uma "vantagem comparativa" no exercício da
brutalidade são atraídos para o poder).
Marxismo não é sinônimo de stalinismo, mas a
incapacidade do socialismo marxista de cumprir suas promessas cria as condições
para a ascensão do stalinismo. Em outras palavras, o stalinismo é uma consequência
não-prevista e não-intencionada do socialismo marxista.
Adicionalmente, à medida que o controle estatal vai
se tornando cada vez mais ineficaz, as pessoas começam a tentar contornar o
governo criando formas distorcidas de transações de mercado. Subornos a políticos
e burocratas, ameaças a produtores e empreendedores, conluios com o governo,
nepotismo, trocas de favores etc. se tornam a única maneira viável de fazer com
que as coisas sejam feitas.
Recursos escassos têm de ser alocados de alguma
maneira, e mercado são como ervas daninhas: surgem e crescem nas fendas
deixadas pelo fracasso do planejamento centralizado.

Dieta forçada
O salário mínimo atual é de 97.000
bolívares mensais. Pelo câmbio oficial — ou seja, aquele determinado pelo
governo —, isso equivale a US$ 37 por mês. Já pelo câmbio do mercado paralelo —
que representa o genuíno valor da moeda —, isso equivale a US$ 12.
Sim, o salário mínimo mensal de um venezuelano é de US$ 12.
Dado que o salário mensal médio em Cuba é
de US$ 20, temos que a dupla Chávez/Maduro conseguiu a façanha de deixar a
população da rica Venezuela mais pobre que a miserável população cubana.
Isso sim é concorrência socialista.
Tudo isso gerou, como era de se esperar, inevitáveis
consequências sobre a saúde dos venezuelanos. Há algumas semanas, as principais
universidades venezuelanas publicaram a Encuesta
de Condiciones de Vida (Encovi) — Pesquisa de Condições de Vida —, um
documento anual que analisa a evolução dos principais indicadores de bem-estar
da população.
E os resultados foram desoladores: nada menos que 82% das
famílias venezuelanas vivem na pobreza, a porcentagem mais elevada da história
do país, o que transforma esta região na mais miserável da América Latina. A
maior parte destas famílias se encontra em uma desesperadora situação de
extrema pobreza, o que dificulta enormemente sua capacidade ter acesso a uma
alimentação de mínima qualidade.
Ainda segundo
a pesquisa, 72,7% das mais de 6.500 pessoas sondadas afirmaram ter perdido
peso involuntariamente. A média da perda de peso em apenas um ano é assustadora:
8,7 kg.
Vale repetir e enfatizar: 82% das famílias venezuelanas
estão hoje vivendo na pobreza (em 2015, esse percentual era de 73%). Enquanto
isso, 72,7% da população perdeu uma média de 8,7 quilogramas. E 9,6 milhões de
venezuelanos (um terço da população) comem menos de duas vezes por dia.

Negligência intelectual
Para o mundo externo, corrupção e uma má implementação
são as causas dos seguidos fracassos do socialismo. Mas isso é uma completa inversão
da realidade: a corrupção e a ineficácia não são as causas do fracasso do socialismo,
mas sim as consequências do fracasso
do socialismo. Quando você abole os mercados e os torna ilegais, e quando esta
sua tentativa inevitavelmente fracassa, o que você tem é um arranjo repleto de corrupção,
suborno e mercados negros (no qual apenas os mais destemidos se aventuram). Mais
uma vez, tal arranjo não é aquele que os marxistas queriam, mas é a inevitável consequência
de suas políticas.
Portanto, o que tudo isso pode dizer sobre aqueles
que apoiaram as políticas de Chávez e Maduro? É fácil dizer que tais pessoas são
inerentemente más por terem desejado a inanição e a miséria do povo
venezuelano, mas isso seria uma postura fácil e simplista. Eu realmente
acredito que muitos daqueles que apoiaram as políticas da dupla venezuelana
genuinamente acreditavam que tais políticas trariam bons resultados. Neste
sentido, tais pessoas não agiram de maneira imoral.
No entanto, elas são culpadas de incorrer em um
grave erro intelectual, o qual tem consequências morais. Embora elas talvez não
tenham desejado o desastre humanitário que vemos hoje, elas de fato têm de
arcar com a responsabilidade de terem ignorado todas as críticas — já de longa
data — ao socialismo, as quais já explicavam por que tal desastre era
esperado.
Aqueles da esquerda que defenderam as políticas de
Chávez não necessariamente incorreram naquele mal intencional ao qual chamamos
de "vício". Mas eles podem ser culpados, isso sim, de algo que pode ser
rotulado de "negligência" intelectual. Eles podem até não ter desejado a atual situação
do povo venezuelano, mas não há dúvidas de que eles, no mínimo, deveriam saber
melhor sobre aquilo que defendiam.
A simples condenação moral dessas pessoas acabaria
com qualquer chance de diálogo produtivo. Já oferecer uma narrativa alternativa
pode ser o começo. Por isso, é função daqueles que entendem como o mercado
melhora a vida e o bem-estar de todos ensinar a essas pessoas sobre todos os malefícios
do socialismo.
Os custos humanos do socialismo são grandes demais
para que tal tarefa seja negligenciada.
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Leia também:
Um breve histórico da Venezuela: da quarta população mais rica do mundo à atual mendicância
O socialismo
latino-americano: um grande negócio para os ricos e um pesadelo para os mais
pobres
Com as pessoas forçadas a
revirarem lixo, o socialismo venezuelano provoca emagrecimento compulsório
Só é socialismo enquanto
funciona; quando deixa de funcionar, nunca foi socialismo
O socialismo
necessariamente requer métodos brutais para ser implantado
O socialismo venezuelano:
pessoas comendo cachorros, saqueando supermercados e morrendo de inanição
A defesa do socialismo é,
inescapavelmente, uma apologia da violência
O que a "justiça social" fez com a Venezuela