segunda-feira, 21 ago 2017
Então a esquerda finalmente voltou
a falar sobre a Venezuela. Que bom.
Por aproximadamente uma década, praticamente toda a
esquerda havia sido capturada pelo charme de Hugo Chávez e demonstrava uma paixão fervorosa pelo
modelo econômico daquele país. Eram elogios copiosos e sem fim
(e de toda a esquerda ao
redor do mundo). A versão venezuelana do socialismo era o exemplo
mais brilhante possível do modelo; e era o modelo definitivo que o resto do
mundo deveria copiar.
O encômio mais famoso ainda continua sendo o do
famoso esquerdista americano, David Sirota, que escreveu
um ensaio para a revista Salon intitulado "O milagre
econômico de Hugo Chávez". Eis um trecho:
Chávez se tornou o bicho-papão da
política americana porque sua defesa aberta e inflexível do socialismo e do
redistributivismo não apenas representa uma crítica fundamental à economia
neoliberal como também vem gerando resultados inquestionavelmente positivos.
... Quando um país adota o socialismo e se esfacela, ele se torna motivo de
piada e passa a ser visto como um inofensivo e esquecível exemplo de
advertência sobre os perigos de uma economia dirigida pelo governo. Porém,
quando um país se torna socialista e sua economia apresenta o grande desempenho
exibido pela economia venezuelana, ele não mais se torna motivo de piada — e
passa a ser difícil ignorá-lo.
E aí, quando a economia venezuelana entrou em
profundo colapso, começando ainda em 2013 (na verdade,
ainda em 2010 já começou
a faltar comida) e se agravando continuamente desde então,
a esquerda repentinamente parou de falar no assunto. Largaram a Venezuela como
se o assunto fosse uma batata quente. E então um longo período de silêncio se
seguiu. No entanto, os eventos mais recentes forçaram o assunto de volta à
agenda.
A
vida dupla do preço do petróleo
As respostas variam.
Os articulistas da esquerda
stalinista são os mais caricatos, e se parecem com uma cópia do Pravda da
década de 1930. Para eles, todo o colapso se deve a uma ação muito bem
coordenada por sabotadores e contra-revolucionários, os quais estariam solapando
toda a economia.
Já as facções mais sagazes da esquerda já perceberam
que não há muitas chances de conquistar os corações e as mentes das pessoas
caso continuem emulando o discurso do
vilão de um filme dos tempos da guerra fria. Consequentemente, elas
adotaram um discurso mais sonoramente inócuo, dizendo que a real causa da
miséria venezuelana é a queda
no preço do barril de petróleo.
"Sim, é verdade que a Venezuela está mal", dizem
eles. "Mas qualquer economia que seja tão dependente dos preços das commodities
também teria um mau desempenho sob essas circunstâncias. Não
tem nada a ver com socialismo!"
Superficialmente, parece até plausível. Porém, você
se lembra de qual foi o famoso chavista que disse a seguinte frase durante o
período de forte alta nos preços do petróleo:
Sim,
é verdade que a Venezuela está indo bem. Mas qualquer economia que seja tão
dependente dos preços das commodities também teria um bom desempenho sob essas
circunstâncias. Não tem nada a ver com socialismo.
Exato, você adivinhou: nenhum deles. Na mente dos
chavistas, o preço do petróleo leva uma vida dupla: quando ele sobe, o subsequente
boom econômico é a prova de que o socialismo funciona. Já quando ele volta a
cair, o subsequente colapso econômico nada tem a ver com o socialismo.
É verdade que o preço baixo do petróleo não ajuda em
nada a economia venezuelana. Mas eis um fato: o
atual preço do petróleo não está baixo. O que houve é que tivemos preços
anormalmente altos para o petróleo até 2014. O preço do petróleo não entrou em
"colapso". Ele simplesmente voltou ao nível que sempre foi a média de longo
prazo. Mais precisamente, o preço do barril de petróleo voltou (em termos
reais) ao valor que estava em 2004, aproximadamente quando
começou o fanatismo da esquerda com a Venezuela.
Quando
o preço do petróleo só fazia subir
O que talvez seja ainda mais importante, no entanto,
é o fato de que aqueles problemas mais prementes na Venezuela, especialmente a
escassez de itens essenciais como alimentos e remédios, já ocorriam antes da
queda nos preços do petróleo. Veja, por exemplo, este trecho de um artigo
publicado pelo britânico The Guardian
(um jornal abertamente de esquerda) ainda em 2007:
Não
havia qualquer sinal de leite, ovos, açúcar e óleo de cozinhar. Onde eles
estavam? [...] Bem-vindo à Venezuela, uma economia pujante, mas curiosa. Uma
escassez de alimentos está atormentando o país ao mesmo tempo em que as
receitas de petróleo estão estimulando um grande aumento nos gastos. [...] O
leite desapareceu completamente das gôndolas. […] Ovos e açúcar tambem são
apenas uma memória do passado.
Vale lembrar que, em 2007, o preço do petróleo
estava alcançando o maior valor de toda a sua história.
Ou, que tal este
outro, publicando um ano antes de o preço do petróleo começar a cair:
A
escassez de comida na Venezuela não apenas chegou ao seu ápice, como também
nenhuma outra na história do país durou tanto tempo. [...] O Banco Central da
Venezuela publica um índice de escassez [...] Os números para este ano estão em
um nível similar ao de países que vivem uma guerra civil ou que passam por
racionamentos típicos de períodos de guerra.
Sobre isso, vale uma anedota: há vários livros de
espionagem, como os de Tom Clancy e Frederick Forsythe, cuja trama principal
gira em torno de um país socialista (URSS, Alemanha Oriental etc.) cujo governo
autoritário se apropria de uma reserva de petróleo (normalmente na costa do mar
báltico). Repentinamente a economia socialista passa a ser inundada por
petrodólares, o país se torna extremamente poderoso e se transforma em uma
espécie de Arábia Saudita socialista em plena Europa.
A lógica sempre é a mesma: a única maneira de fazer
uma economia socialista funcionar e ser poderosa é colocando reservas
petrolíferas sob seu domínio. Certamente as receitas do petróleo serão capazes
de fazer qualquer economia funcionar, mesmo uma socialista.
O experimento venezuelano mostra que até mesmo esses
brilhantes autores erraram em suas teses econômicas.
O
petróleo não é o bastante
É claro que a esquerda não tem muito o que
justificar sobre a Venezuela simplesmente porque o regime venezuelano implantou exatamente todas
as políticas defendidas por toda a esquerda que se opõe a uma economia
de mercado.
Trata-se de um programa marcado por
controle de preços, estatizações e expropriação da propriedade privada,
generosos programas assistencialistas, planejamento centralizado, e uma
infindável retórica sobre igualdade, redução da pobreza e, acima de tudo,
combate aos "neoliberais".
Graças às políticas de
controle de preços, de impressão desmedida de dinheiro, de estatização
de fábricas e de lojas (até mesmo
hotéis foram estatizados), absolutamente tudo está em falta no país.
Tais medidas do governo destruíram de maneira tão
completa o pouco que restava de capitalismo, que o desabastecimento se tornou
geral. Aquele país que já teve a quarta população mais
rica do mundo vivencia hoje uma escassez geral, com racionamento
de papel
higiênico, comida, cerveja, eletricidade, água e remédios. Até mesmo
os hospitais ficaram
sem papel higiênico e sem remédios. A
taxa de mortalidade de recém-nascidos disparou.
O próprio presidente venezuelano Nicolás
Maduro fez
a gentileza de explicar tudo ao mundo: "Há dois modelos: o neoliberal,
que destrói tudo; e o chavista, que é centralizado no povo".
E não há petróleo que possa resistir a isso.
Mas o mais curioso é que os socialistas sempre
argumentaram que o socialismo, algum dia, ainda irá funcionar. Até hoje ele ainda
não funcionou simplesmente porque não foi corretamente implantado. Para
funcionar a contento, ainda falta que alguém o adote sob todas as
circunstâncias estritamente corretas.
Na prática, os socialistas de hoje estão dizendo:
É
claro que o socialismo funciona. Mas há condições. Todo o necessário para o
socialismo funcionar é o país possuir as mais amplas e comprovadas reservas de
petróleo e o mundo vivenciar o mais longo e ininterrupto período de alta nos
preços do petróleo, do modo que o preço da commodity suba para sempre e jamais
volte a cair. E, mesmo que tudo isso ocorra, ainda iremos vivenciar uma
constante escassez de comida, remédios e outros itens básicos e essenciais.
Porém,
veja pelo lado positivo: você terá um exército de intelectuais ocidentais que estarão
o tempo todo dizendo o quão sortudo você é por viver neste sistema.
E aí? Foi seduzido?
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