quarta-feira, 23 ago 2017
Antes do Plano Real, o governo gastava o que não
tinha, e então recorria à simples inflação monetária — no popular, mandava o
Banco Central imprimir dinheiro — para fechar suas contas. À época, o Tesouro
podia se financiar diretamente pelo Banco Central.
Tamanha expansão monetária, obviamente, gerou décadas
de hiperinflação. (Veja tudo sobre o assunto aqui e aqui).
Até então, o governo não sabia sequer quanto gastava
— pois recorria livremente à impressora de dinheiro —, e esse descalabro que
era agravado por diversas políticas que geravam despesas e nem sequer constavam
no orçamento.
O Plano Real fez a transição deste mundo ilusório para
a realidade.
Além de uma profunda reforma monetária e
cambial, o plano também teve como pilar o fechamento de diversas torneiras
que geravam despesas não-contabilizadas. Além da privatização de empresas
estatais ineficientes, houve também a extremamente importante privatização de
bancos estaduais, que eram genuínas usinas de expansão monetária, pois eram
utilizados por seus respectivos governos como fonte fácil e farta de
financiamento. Estes bancos operavam praticamente sem lei e sob ordens de
seus governos estaduais, criando meios de pagamento a rodo apenas para
financiar seus descalabros. Os desvalidos de todo o resto do país arcavam
com as consequências desta expansão monetária: a destruição do poder de compra
da moeda.
Hoje, com os bancos estatais estaduais já praticamente
domados, ainda falta lacrar uma das últimas torneiras que restaram no
orçamento: o BNDES.
Como
funciona o BNDES
O BNDES, quando despido de toda a propaganda
ideológica, não passa de uma perniciosa máquina de redistribuição de renda às
avessas.
Originalmente, os recursos do BNDES eram oriundos apenas
do FAT (Fundo de Amparo ao Trabalhador — fundo destinado a custear o
seguro-desemprego e o abono salarial). Por lei, 40% do FAT é destinado ao
BNDES.
E, dado que os recursos do FAT advêm das
arrecadações do PIS e do PASEP, na prática os recursos do BNDES eram originados
dos encargos sociais que incidem sobre a folha de pagamento das empresas.
Esse dinheiro era então direcionado para as grandes
empresas a juros subsidiados.
Este arranjo, por si só, já denotava um grande
privilégio. Por que, afinal, as pequenas empresas devem financiar os
juros subsidiados das grandes empresas?
O problema é que essa matriz, já ruim, foi alterada
para pior a partir de 2009. As leis nº 11.948/09,
nº 12.397/11,
nº 12.453/11,
nº 12.872/13,
nº 12.979/14 e
nº 13.000/14
autorizaram a União a conceder empréstimos ao BNDES.
Ou seja, se antes o BNDES se financiava
exclusivamente via impostos, a partir de 2009 ele passou a se financiar também
via repasses diretos do Tesouro, na forma de empréstimos.
Só que, dado que o Tesouro não tem dinheiro sobrando
para emprestar ao BNDES, só lhe resta uma saída: o Tesouro tem de se
endividar. E ele faz isso emitindo títulos da dívida com o intuito de
arrecadar esse dinheiro.
Ou seja: além dos recursos do FAT, o BNDES passou também
a contar com repasses diretos do Tesouro, o qual começou a emitir títulos da
dívida com o intuito de arrecadar esse dinheiro e repassá-lo para o
BNDES.
Consequentemente, o BNDES foi anabolizado. Sua
capacidade de fazer empréstimos subsidiados aumentou quase que
exponencialmente. Até o início de 2016 — ano em que ele começou a ser domado
— sua carteira de empréstimos estava em incríveis R$ 675 bilhões.
Os
juros do BNDES
O BNDES, portanto, recebe dinheiro do FAT e do Tesouro.
Ato contínuo, realiza empréstimos com este dinheiro. E esse empréstimo é pago
de volta — dali a vários anos — corrigido por uma taxa chamada TJLP (Taxa de
Juros de Longo Prazo).
Mas aí surge uma distorção explícita: o Tesouro se
endivida pagando taxa SELIC, repassa esse dinheiro ao BNDES, que então o
empresta pela TJLP, que é muito menor que a SELIC.
Para se ter uma ideia, quando a SELIC estava em 14,25%, a TJLP estava
em 7,50%.
Em termos práticos e simplistas, o Tesouro pegava
emprestado R$ 1.000 a 14,25% ao ano, repassava ao BNDES, que então emprestava (majoritariamente para
grandes empresas) a 7,50% ao ano. Dali a um ano, quando (e se) o BNDES
recebesse o empréstimo quitado, ele devolveria ao Tesouro R$ 1.075. Mas o
Tesouro está devendo R$ 1.142,50.
No saldo final, o Tesouro — ou seja, nós — paga
para emprestar dinheiro para o BNDES.
A TJLP é definida pelo Conselho Monetário Nacional,
formado pelas três principais autoridades federais na área econômica: ministro
do Planejamento, ministro da Fazenda e presidente do Banco Central.
Historicamente, essa taxa sempre foi menor que a SELIC, que é a taxa de juros
que o Tesouro paga em seus empréstimos.

A diferença entre a Taxa SELIC (em vermelho, taxa
que o governo paga na sua dívida) e TJLP (em preto, taxa que o BNDES) se
transforma em um custo chamado de "subsídio implícito". Recebe esse nome por
estar escondido do orçamento. Ele não entra como despesa corrente.
Essa diferença acaba aumentando a dívida pública da
mesma maneira que gastos "normais", mas
não é declarada. No saldo final, o Tesouro incorreu em um gasto líquido,
mas este não consta no orçamento.
O que é a TLP e por que esse é um
projeto importante
É para reduzir esta discrepância que está em votação
a Medida
Provisória 777, que irá substituir gradualmente, ao longo de 5 anos, a atual
TJLP pela TLP (Taxa de Longo Prazo).
Na prática, a mudança é muito maior do que apenas
retirar o "J" da sigla. A TLP, em vez de determinada por burocratas, será igual
à taxa praticada nos títulos do Tesouro IPCA (antigamente chamados de NTN-B). Esta
taxa — e quem opera no Tesouro
Direto sabe — é definida pelo mercado, e não por funcionários públicos.
Consequentemente, o subsídio implícito deixa de
assistir, pois o governo estará recebendo a mesma taxa que paga na sua dívida.
A medida também reduz um pouco as injustiças "em
prol dos grandes", como ilustra o gráfico abaixo. Ele mostra como os
empresários com acesso ao crédito do BNDES acabam recebendo um belo presente
(primeira e terceira linhas), pagando juros muito abaixo da SELIC, ao passo que
o "resto" precisa pagar juros muito maiores para bancar a 'meia-entrada' dos
privilegiados (segunda e quarta linha).

Fonte:
Ministério da Fazenda
Nunca houve almoço grátis. E nem juros baratos
artificialmente. Se um grupo tem acesso a juros artificialmente baratos, então a
conta só fecha se o outro grupo pagar juros muito maiores para contrabalançar os
privilégios do primeiro grupo.
[Nota do Editor: Este é o fenômeno da seleção adversa: os baixíssimos
juros cobrados pelo BNDES têm o efeito de fazer uma segmentação do mercado de
crédito. Exatamente por cobrar juros tão baixos, o BNDES irá emprestar somente
para as empresas que têm o melhor perfil de risco e a maior capacidade de
honrar suas dívidas. Consequentemente, os melhores tomadores serão todos
capturados pelo BNDES, deixando as outras empresas — principalmente as
pequenas e as médias, que têm risco maior — para o restante do sistema
bancário.
E como o sistema bancário ficará agora apenas
"com as sobras", os juros cobrados para estes — que têm risco maior
e histórico de crédito mais duvidoso — inevitavelmente serão maiores.
Portanto, as pequenas e médias empresas, além de
arcarem com a dívida do Tesouro para financiar o BNDES, ainda são expulsas do
mercado de crédito pelo próprio BNDES, só conseguindo empréstimos se pagarem
juros estratosféricos. (Este fenômeno foi explicado em detalhes neste artigo).]
Com a TLP, os juros do BNDES continuarão menores que
os juros bancários, mas a distorção acima tende a diminuir. Longe de ser
perfeito, mas já é uma melhoria.
É importante notar que, mesmo após a reforma, os
bancos estatais continuarão praticando juros mais baixos do que os privados,
pois eles também recebem
repasses do Tesouro. Isso, infelizmente, não está sendo atacado. Mas, ao
menos, a diferença agora será menor.
De resto, no caso do Tesouro Nacional, um estudo
de Marco Bonomo, Luis Bento e Paulo Ribeiro estimou que a nova TLP pode
diminuir a dívida pública em 100 bilhões de reais, o que equivale a cerca de 4
anos do Bolsa Família ou 2/3 do rombo nas contas em 2017. Já segundo o
Ministério da Fazenda, com a nova
taxa, o déficit no Fundo de Amparo ao Trabalhador cairá de R$ 18 para 3 bilhões.
Entra
José Serra
Quais são os principais opositores deste projeto? O
senador José Serra (PSDB-SP) e as principais lideranças petistas, lideradas por
Lindberg Farias (PT-RJ).
A aliança de Serra com petistas não é incoerência
nenhuma. Ao contrário: é mera continuidade história.
Serra, ainda na década de 1990, não se entusiasmava
com as ideias do Real. Na campanha de 2002 o ex-presidente Itamar Franco declarou:
Serra nunca
apoiou o Plano Real. Primeiro, ele nunca compreendeu o Plano Real na sua
concepção. O presidente (FHC) pode não querer dizer isso, mas digo com a minha
responsabilidade de ex-presidente. Ele faltou com a verdade!
Assim como o Plano Real, a TLP é um importante
instrumento para que o Brasil tenha taxas de juros e inflação mais baixas. Ela
coloca no orçamento aquilo que deveria estar lá, mas hoje não está.
Em artigo
para o jornal O Estado de S. Paulo, Serra
declarou:
A "terapia" da TLP é do tipo "curar a
doença matando o doente", começando por derrubar maciçamente os já escassos
planos de investimentos.
Para começar, o senador parece não ter compreendido que
a nova taxa não impede o governo de dar subsídios a empresários. É o que ele
parece sugerir quando trata da "derrubada dos planos de investimento". A TLP apenas
torna os subsídios mais transparentes e os obriga a aparecerem no orçamento,
como ocorreu nas medidas anteriores ao Real.
Com esta nova regra, caso o BNDES queira conceder um
empréstimo a uma taxa menor que TLP (ou seja, menor que as taxas da dívida pública),
ele deverá buscar aprovação no Congresso Nacional. É o que acontece com todo o
resto do orçamento.
O fato é que boa parte das despesas
não-contabilizadas antes do Plano Real vinham justamente de operações de
crédito fora do orçamento. Elas foram bastante reduzidas, mas ainda continuaram
existindo. E são elas que a TLP pretende atacar.
Para entender a magnitude da falta de transparência,
no ano passado, R$ 28 bilhões foram gastos em subsídios explícitos, enquanto R$
78 bilhões foram subsídios implícitos. Para efeito de comparação, o governo brasileiro gastou R$ 27 bilhões no Bolsa
Família, equivalente a cerca de um terço dos subsídios
implícitos — o que é natural, dado que estes não disputam espaço no orçamento.

É razoável pensar que, se a nova regra já estivesse
em vigor, investimentos de baixo retorno não seriam realizados nos últimos
anos. Estádios e obras
no exterior são exemplos fáceis.
É essencial notar que, ao contrário do que Serra
sugere, o BNDES poderia até receber mais recursos do estado para emprestar. A
diferença é que, politicamente, não seria tão fácil quanto hoje.
A TLP, na prática, retira essa decisão do estamento
burocrático (e de empresários corruptos que o financiam e influenciam). E as despesas
públicas voltam a ser discutidas abertamente no congresso. De novo, nada
perfeito, mas melhor do que já é hoje.
A alternativa é voltar ao BNDES do segundo mandato
de Lula e de todo o período Dilma, cujas políticas foram diretamente responsáveis
por gerar inflação, deterioração das contas do governo, aumento dos juros, e ineficácia
da política monetária. (Veja tudo isso neste artigo).
Para isso,
Serra e os petistas trabalham firme.
* Uma versão deste artigo foi originalmente publicada no site do Mercado Popular
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Leia
também:
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abolido
As empresas que mais
recebem verba do BNDES, e seus maiores escândalos
20 obras que o BNDES
financiou em outros países