Ao escrever seu tratado Socialism,
em 1922, Ludwig von Mises expressou apoio à democracia, mas recorrendo a uma
visão muito limitada. Especificamente, ele sugeriu que o único propósito da
democracia é "conseguir a paz e evitar revoluções violentas".
Ou seja, a democracia seria meramente um meio para
se alcançar um fim, e seu valor está em fornecer uma maneira de retirar
determinadas pessoas do aparato estatal sem a necessidade de recorrer a
instrumentos militares: "A essência da democracia é ... que legisladores e
governantes ... possam ser pacificamente substituídos caso ocorra algum
conflito".
Mises era ele próprio um democrata resignado, no
sentido de que, como muitos outros liberais de seu tempo, ele via algum valor
no uso de instituições democráticas, as quais poderiam fornecer um meio para se
abordar conflitos políticos que poderiam afetar a vida econômica de uma
sociedade.
Para Mises, a prevenção de situações como guerras,
distúrbios, revoluções e outras insurgências violentas eram essenciais para
fazer com que o mercado — isto é, a livre interação entre pessoas que
empreendem, investem, produzem e consomem, praticando trocas voluntárias —
continuasse funcionando normalmente:
O liberalismo, ao reconhecer que a
realização dos objetivos econômicos do homem pressupõe a paz, e buscando,
portanto, eliminar todas as causas de conflitos na política doméstica ou
externa, deseja a democracia.
Mises, no entanto, não era um crente ingênuo na
democracia. Em nenhum trecho de toda a sua obra ele assume que a democracia é
uma condição suficiente para a paz, ou que a democracia pode
superar os problemas criados em um sistema político por uma ideologia danosa.
Com efeito, Mises sempre se mostrou ciente do papel
central da ideologia em determinar quão laissez-faire (ou não)
um estado pode ser. Mises entendia perfeitamente que, se uma parcela
considerável da população quiser um estado totalitário, então nenhuma
quantidade de democracia — ou ausência dela — irá impedir isso.
Afinal, escreveu Mises, "a democracia tenta ...
garantir [que haja] um acordo entre a vontade do estado — expressa por meio
dos órgãos do estado — e a vontade da maioria".
Mas o que ocorrerá se a vontade da maioria estiver
mais propensa ao czarismo, por exemplo? "Bem", responderia Mises,
"então czarismo é provavelmente o que as pessoas teriam":
O conservador russo está
indubitavelmente certo quando observa que o czarismo russo e a polícia do czar
eram aprovados pela grande massa do povo russo, de modo que até mesmo uma forma
de estado democrático não poderia ter dado à Rússia um sistema de governo
diferente.
Mises entendia que, para manter um sistema político
de laissez-faire econômico — seja democrático ou autocrático —,
uma parcela considerável da população deveria realmente querer um
sistema laissez-faire, ou pelo menos algo semelhante a ele. Sem
isso, nada feito.
Uma maneira fácil de convencer os
eleitores a abandonar o laissez-faire
Porém, mesmo se uma população possui inclinações
pró-laissez faire, há maneiras de os
estados enfraquecerem essas crenças e se aproveitarem de vícios humanos, como a
ganância, a preguiça e o medo, para aumentar o tamanho e poder do estado.
Em seu livro Burocracia, de 1944, Mises
descreveu o problema que surge quando uma fatia considerável da população
recebe seu sustento do estado:
O funcionário público não é apenas um
empregado do governo. Ele é, em um arranjo democrático, um eleitor e, ao mesmo
tempo — por fazer parte da estrutura governamental —, o seu próprio
empregador.
Ele se encontra em uma posição peculiar:
ele é, concomitantemente, empregador e empregado. E o seu interesse pecuniário
como empregado tenderá a suplantar sua função como empregador, já que ele
recebe dos fundos públicos muito mais do que contribui.
Essa relação ambígua se torna ainda mais
crítica à medida que o número de pessoas na folha de pagamento do governo
aumenta. O funcionário público, na condição de eleitor, tenderá a apoiar
políticos que prometam aumentos ao funcionalismo em detrimento daqueles que
defendem um orçamento equilibrado. Na condição de eleitor, o burocrata
está mais ansioso com seus próprios aumentos salariais do que com um orçamento
equilibrado e austero. A principal preocupação do burocrata será a de
inflar o valor da folha de pagamento.
E esse problema não se restringe aos funcionários públicos.
Mises escreveu
(as observações entre colchetes são minhas):
Nos anos que imediatamente antecederam a
queda de seus regimes democráticos, a estrutura política da Alemanha e da
França foi majoritariamente influenciada pelo fato de que, para uma fatia
considerável do eleitorado, o estado era a sua fonte de renda.
Não apenas havia toda uma horda de
funcionários públicos e de pessoas empregadas nos setores da economia que
haviam sido estatizados (ferrovias, correios, telégrafos e telefônicas), como
também havia os desempregados que recebiam seguro-desemprego e outras pessoas
que recebiam benefícios sociais. Para completar, havia agricultores e
grupos empresariais que, direta ou indiretamente, recebiam subsídios do
governo.
Nenhum arranjo democrático pode existir
se uma grande parcela dos eleitores está na folha de pagamento do governo
[funcionários públicos e pessoas que recebem políticas assistenciais] ou recebe
privilégios do governo [empresários beneficiados por subsídios ou
protegidos por tarifas de importação e reservas de mercado garantidas pelo
governo].
Se os políticos passam a agir não como
empregados dos pagadores de impostos, mas sim como porta-vozes daqueles que
recebem salários, subsídios e assistencialismos pagos com o dinheiro de
impostos, então o arranjo democrático acabou.
Este é um dos paradoxos inerentes ao
arranjo democrático. À medida que as pessoas que trabalham, produzem e
pagam impostos forem se convencendo de que a atual tendência de mais
interferência estatal, mais cargos públicos, mais ministérios, mais
secretarias, mais repartições, mais funcionários públicos, mais subsídios e
mais assistencialismo é inevitável, toda a noção de que o governo é feito por
todos e para todos irá se esfacelar.
A ideia que irá prevalecer é a de que o
governo existe para o benefício de alguns e para a espoliação de outros.
Obviamente, em tal situação, nenhum político eleito
que deseja ser reeleito irá se opor a uma expansão nos programas
assistencialistas, a aumentos ao funcionalismo público, a mais gastos com
programas de saúde, com subsídios e com outros tipos de gastos.
Dentro de um sistema político assim, qualquer apoio
latente que possa haver ao laissez-faire será gradualmente
preterido pela percepção de que votar em troca de mais benefícios
governamentais é — aparentemente — muito mais lucrativo do que votar
pelo laissez-faire.
O sufrágio limitado proposto por John
Stuart Mill
Mises não foi o primeiro democrata a reconhecer o
problema de se expandir o voto para aqueles que recebem mais do estado do que
pagam a ele.
John Stuart Mill, que sempre foi considerado um
democrata radical devido ao seu apoio ao sufrágio quase universal (incluindo
mulheres), ainda assim se opunha ao sufrágio para aqueles que recebiam
privilégios do governo. Em seu livro de 1861, Considerations
on Representative Government (Considerações Sobre o Governo
Representativo), Mill escreveu:
Considero fundamental que o recebimento
de assistência [Mill se referia ao sistema de auxílio aos pobres implantado
pelo governo da Inglaterra. As Poor Lawsforam precursoras
do estado de bem-estar social] deve implicar uma desqualificação peremptória
para o direito ao voto.
Aquele que não pode se sustentar por seu
próprio trabalho não deve ter o privilégio de ajudar a si mesmo com o dinheiro
dos outros.
Ao tornar-se dependente dos demais
membros da comunidade para sua subsistência, ele abdica da sua pretensão de ter
direitos iguais aos deles em outros aspectos, como o direito ao voto. Aqueles a
quem ele deve a continuidade de sua própria existência podem legitimamente
reivindicar serem os detentores exclusivos dessas preocupações comuns, para as
quais ele nada contribui — ou contribui com menos do que leva..
Como condição para o direito ao voto, um
prazo deve ser fixado — digamos, cinco anos anteriores ao registro —, durante
o qual o nome do requerente não tenha constado nas listas de beneficiários de
assistência.
Mill tentou resolver esse problema defendendo que
todos os eleitores fossem formados exclusivamente por pagadores
líquidos de impostos — ou seja, só pode ser eleitor quem paga mais
impostos do que recebe em subsídios:
É também importante que o legislativo
que vota os tributos, nacionais ou locais, seja eleito exclusivamente por
aqueles que pagam ou pagarão o tributo criado. Aqueles que não pagam impostos,
e que por meio de seus votos têm acesso ao dinheiro das outras pessoas, têm
todos os motivos para ser generosos consigo mesmos, esbanjadores e
economicamente irracionais.
Qualquer poder de voto possuído por
aqueles que não pagam impostos é uma violação do princípio fundamental de um
governo livre; uma abolição de toda e qualquer capacidade de controle sobre o
tamanho do governo.
Equivale a permitir que essas pessoas
coloquem suas mãos nos bolsos das outras pessoas para qualquer fim que elas
julgarem adequado rotular de "interesse público"...
A representação deveria se dar de acordo
com a tributação. Isso é o que está de acordo com a teoria das
instituições britânicas.
À exceção disso, Mill não queria nenhuma restrição
permanente ao direito de votar, e desejava que qualquer um excluído do sufrágio
em decorrência de eventuais dificuldades econômicas vigentes pudesse votar
futuramente. Ou seja, quaisquer limitações ao sufrágio deveriam ser abolidas,
de modo a "deixar o sufrágio acessível a todos os que estão na condição
normal de um ser humano".
A democracia gera crenças perigosas
O fator-chave por trás disso é a ideologia.
Uma população que vê como ilegítimo o crescimento
generalizado dos empregos públicos, dos salários e benefícios dos funcionários
públicos, dos subsídios a empresários amigos do regime e de programas
assistenciais não irá tolerar tal situação.
A esse respeito, se o propósito da democracia é —
como Mises afirmou — criar harmonia entre a vontade do estado e a vontade da
população, então as sociais-democracias ocidentais estão funcionando exatamente
como projetado e como esperado.
Ao contrário do que alguns libertários parecem
acreditar, os indivíduos das democracias ocidentais, em sua maioria, não são
libertários "que
ainda não se deram conta disso". Com efeito, a grande maioria das
populações das democracias ocidentais está ideologicamente muito
tranquila e conformada em ter estados intervencionistas agigantados, os
quais empregam um grande número de pessoas e gastam imensas quantidades de
dinheiro de impostos com benefícios sociais, programas e empreendimentos
estatais, subsídios a empresas privadas, criação de mais cargos públicos e aumentos
para o funcionalismo.
Seus padrões de voto e suas preferências declaradas
e demonstradas por meio de seus votos deixam isso claro. Como esperado, os
estados democráticos refletem as ideologias de seus cidadãos.
Sem uma mudança nessa realidade ideológica, nenhuma
mudança significativa deve ser esperada.
Entretanto, estender o direito ao voto para aqueles
que recebem mais subsídios do estado do que pagam em impostos irá acelerar o
processo de empobrecimento e de instabilidade econômica.
A primeira medida para reverter esse problema
ideológico está em adotar o laissez-faire como ideologia
política dominante. Isso demanda um intenso debate de idéias e mudanças
profundas na mentalidade da população, um processo longo e trabalhoso. O segundo passo é retornar à visão de
Mises de que a democracia é meramente um mecanismo empregado para se alcançar
determinados fins.
A democracia não é, de acordo com Mises, uma
extensão dos direitos naturais, ou a representação da soberania pessoal, ou a
manifestação de uma mística 'vontade pública'. Além disso, argumentou Mises,
essas idéias levam a crenças perigosas, como a de que a democracia concede ao
estado poderes ilimitados, ou a de que não há diferença entre a vontade do
estado e a vontade do povo.
Tão logo essas noções preocupantes de democracia
passam a ser aceitas, a encrenca se torna praticamente irreversível. Mises
conclui:
Graves estragos foram infligidos ao
conceito de democracia por aqueles que, exagerando a noção de soberania,
concebeu a democracia como uma expressão ilimitada da vontade geral. Não há
realmente nenhuma diferença essencial entre o poder ilimitado do estado
democrático e o poder ilimitado da autocrata.
A ideia, defendida por demagogos e seus
apoiadores, de que o estado pode fazer tudo o que desejar e nada deve se opor à
vontade do povo soberano, tem gerado consequências mais nefastas até mesmo,
talvez, do que a sede de poder de principezinhos degenerados.
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