quarta-feira, 28 fev 2018
Foi o professor Bruce Yandle, da George Mason
University, quem criou o termo "batistas e
contrabandistas" para descrever um modelo de regulamentação em que
grupos de interesse que normalmente se opõem uns aos outros se unem em prol de
um objetivo comum.
Durante a Lei Seca, pastores batistas, contrabandistas e produtores de bebidas alcoólicas queriam que o
álcool permanecesse ilegal (eis o
artigo original). Os batistas defendiam a proibição por motivos religiosos. Já os contrabandistas, porque
isso lhes garantiria o monopólio do mercado negro, altamente lucrativo.
A Lei Seca foi um caso clássico em que uma mesma
regulação foi defendida tanto por aqueles que defendiam seu propósito ostensivo
(batistas queriam a efetiva proibição da bebida) quanto por aqueles que se
beneficiavam dessa proibição (os contrabandistas).
Assim como a Lei Seca, você certamente já notou
vários exemplos práticos em que uma regulamentação estatal que aparentava ser moralmente bela e ruim para um determinado grupo empresarial acabou,
na prática, favorecendo esses mesmos grandes grupos empresariais em detrimento
do consumidor e do bem comum. (Veja aqui uma lista de
exemplos práticos brasileiros).
Na ciência política, há dois conceitos que explicam
por que isso acontece e por que é normal: a teoria da captura e o fenômeno
"batistas e contrabandistas".
Virando
o jogo
Quando uma agência reguladora, o Congresso ou mesmo
uma prefeitura criam — supostamente visando ao "bem comum" — uma nova
regulamentação para um produto ou para todo um setor econômico, é de se esperar
que as empresas e os grupos afetados por essa regulamentação não ficarão de
braços cruzados.
Ao contrário: farão de tudo para ou impedi-la ou
influenciá-la.
Mas o êxito desta empreitada não será igual. Alguns
grupos serão mais bem-sucedidos que outros. A tendência é que as grandes
empresas e os grupos econômicos mais poderosos, mais ricos e com melhores conexões
políticas consigam se sair melhor que as pequenas empresas.
Consequentemente, o regulador acabará sendo
capturado pelo regulado — por meio de lobby, subornos, trocas de favores,
doações de campanha para os políticos criadores da legislação e, no extremo,
até mesmo ameaças.
E, uma vez capturado, é normal que o regulador passe
a operar a favor do regulado, inclusive prejudicando sua concorrência direta (alguns
exemplos práticos mais abaixo).
Essa captura acontece por dois motivos: assimetria
de informação e a teoria das
"portas giratórias".
Assimetria
de informação: o regulado, obviamente, conhece o
próprio setor melhor do que o político e o burocrata da agência reguladora.
Portas
giratórias: muitas vezes, os técnicos e os burocratas são
oriundos exatamente da área que está sendo regulada. Consequentemente, eles
têm amigos, interesses próprios, e até mesmo receberão propostas para
trabalhar na área regulada após saírem do setor estatal.
Observe, por exemplo, como quase sempre o Ministro
da Fazenda ou o presidente do Banco Central são exatamente pessoas do mercado
financeiro, e o Ministro da Agricultura vem do agronegócio.
Fenômenos semelhantes tendem a ocorrer também nas
áreas da saúde e da educação, no CADE, na Anvisa, na Anatel, na ANTT, na ANS
etc. — os reguladores tendem a ser pessoas com um passado nestas áreas.
Exemplos
de consequências não-premeditadas
Além dos interesses próprios, há também quem defenda
a regulamentação estatal por puras questões ideais.
Considere, por exemplo, a regulamentação das drogas
e das armas.
Estas medidas podem ser defendidas por grupos muito
bem intencionados de religiosos, pacifistas, pais de vítimas etc. No entanto,
ao mesmo tempo e involuntariamente, acabam favorecendo os contrabandistas do
mercado informal — os quais, graças à proibição, passam a deter o monopólio
do mercado inteiro.
O mesmo ocorre em várias outras áreas.
Eis um exemplo prático: inspeções sanitárias para o
credenciamento de empresas alimentícias.
Os fiscais fiscalizam tanto as grandes quanto as
pequenas empresas para ver se estão cumprindo todas as normas impostas pela
agência reguladora.
Tais normas, por definição, acarretam vários custos
para todas as empresas.
As empresas maiores e mais ricas conseguem arcar facilmente
com esses custos. Já as empresas pequenas, não — e isso as expulsará do mercado.
Assim, de imediato, essa regulação afetará a
capacidade das pequenas de surgir e concorrer com as grandes.
Mas piora.
As grandes empresas, exatamente por terem mais
dinheiro, terão mais facilidade para capturar os fiscais (fazendo conchavos por
meio de subornos diretos e outros agrados), e com isso ganhar um passe-livre da
fiscalização e ainda assim serem credenciadas. Já as pequenas não terão essa
mesma capacidade e poderão até mesmo ser descredenciadas.
Assim, as grandes empresas conseguem uma segunda
vantagem: elas não apenas se livraram da fiscalização, como ainda conseguiram
manter as pequenas estritamente fiscalizadas (e até mesmo descredenciadas).
As consequências finais: as grandes pagaram para se
livrar da fiscalização, as pequenas foram sufocadas pela fiscalização, criou-se
um oligopólio das grandes empresas, a população pagou impostos para bancar todo
esse programa de fiscalização, e os preços acabaram sendo mais altos do que
poderiam ser, pois tanto as grandes quanto as pequenas incorrerem em custos
para lidar com essa fiscalização.
Quem realmente ganhou? As grandes empresas e os
fiscais. Quem perdeu? As pequenas empresas, os consumidores e os pagadores de
impostos (que pagam o custo da fiscalização).
Outro exemplo: imagine que o governo aprove uma lei
impondo que as máquinas de lavar tenham uma maior eficiência energética. Quem poderia
ser contra, certo?
Mas há um problema: criar novos modelos, alterar a
linha de produção das fábricas para produzir esses novos modelos, e cumprir
todas as especificações impostas por essa legislação podem custar milhões de
reais. Uma gigante do setor, com grandes receitas e significativas margens de
lucro, consegue absorver este custo. Já uma fabricante pequena, com apenas um
ou dois anos de mercado, com pouca receita e margem de lucro ainda
insignificante, não conseguirá. Ela terá de fechar as portas. Isso significa menos
concorrência para a gigante já estabelecida, que agora poderá abocanhar mais
fatia de mercado e se tornar ainda maior. E cobrar preços mais altos.
Fenômenos idênticos a esses dois exemplos ocorrem também
com as normas de segurança do trabalho, com as imposições mínimas de qualidade,
com as restrições a medicamentos e com as legislações de proteção ambiental (indústrias
com boas conexões políticas são blindadas e liberadas para poluir ao mesmo
tempo em que utilizam essas mesmas legislações ambientalistas para impor custos
proibitivos a concorrentes menores, impedindo que entrem no mercado).
Todos estes dispositivos legais encontram vários
grupos bem intencionados que os apóiam sinceramente por questões éticas e
morais, mas que, ao mesmo tempo, acabam favorecendo aqueles que já estão
estabelecidos no mercado, pois, ao encarecerem a oferta do bem ou do serviço,
acabam expulsando do mercado os concorrentes novos, menores e mais pobres.

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Conclusão
Cada regulamentação tem dois tipos de grupo que a
apoiam: os batistas, que cumprem o papel da retórica, da fachada, do marketing;
e os contrabandistas, que têm interesse material e são favorecidos.
Os primeiros acabam facilitando a aprovação da
medida, mesmo quando não são diretamente ligados aos últimos, que são os reais
interessados — com efeito, ambos podem ser até mesmo rivais ideológicos.
Todas as vezes que uma nova regulação for aprovada,
por mais positiva que aparente ser, faça a si mesmo esta pergunta: quem são os
batistas e quem são os contrabandistas?
E aí você descobrirá facilmente por que a
regulamentação foi aprovada.