quinta-feira, 15 set 2022
Imagine uma sociedade na qual todos os indivíduos
são trabalhadores autônomos (ou seja, não existe trabalho assalariado), e todos
eles possuem meios de produção avaliados em $ 100.000.
Ou seja, possuem terras, instalações industriais,
maquinários e matérias-primas valorados em $100.000 e adaptados à atividade
profissional que realizam.
Nesta sociedade, a distribuição da riqueza é
perfeitamente igualitária, de modo que não existem nem "grandes capitalistas
exploradores" e nem "pobres despossuídos" que se veem obrigados a vender sua
força de trabalho.
Há simplesmente uma divisão do trabalho, a qual faz
com que cada indivíduo produtor se especialize em produzir determinados bens
que serão trocados por outros bens produzidos por outros indivíduos produtores.
Será que sob estas condições seria alcançado um
equilíbrio econômico estável no qual o trabalho assalariado desapareceria? Impossível.
Mesmo que todos os indivíduos possuam idêntico poder
de barganha, que todos tenham começado exatamente do mesmo ponto de partida (ou
seja, nenhum começou já com alguma vantagem), e que ninguém tenha recorrida à
violência, necessariamente alguns indivíduos mais competentes veriam seu
patrimônio crescer e outros menos competentes veriam seu patrimônio estagnar ou
mesmo encolher.
Consumir
mais versus poupar mais
Comecemos constatando o fato de que, para manter seu
patrimônio, cada indivíduo tem necessariamente de reinvestir continuamente uma fatia de suas receitas. Afinal, as
instalações industriais se depreciam, as máquinas se danificam e têm de ser
substituídas (ou, no mínimo, têm de passar por manutenções recorrentes), as
terras devem ser aradas e irrigadas etc. Logo, tudo isso tem de ser
reposto.
Ou seja, nem todos os bens adquiridos pelos
autônomos são bens de consumo; é necessário também adquirir bens de
capital.
E, ao se adquirir bens de capital, a compra de bens
de consumo tem necessariamente de ser reduzida — afinal, os autônomos deverão
poupar uma fatia de suas receitas e dedicá-la à renovação de seus próprios bens
de capital.
Nesse cenário, veremos três grandes grupos de
indivíduos: aqueles que poupam estritamente
o necessário para repor seu capital; aqueles que poupam mais do que o estritamente necessário; e
aqueles que poupam menos que o necessário.
O primeiro grupo de indivíduos conseguirá apenas conservar
seu capital. O segundo grupo tenderá a aumentar seu capital (ele disporá de um
maior número de bens de capital com os quais será capaz de fabricar uma maior
quantidade de bens de consumo no futuro). E o terceiro grupo verá seu
patrimônio encolher (as máquinas irão se danificar e não haverá reposição, as
terras perderão sua fertilidade, as instalações industriais deixarão de ser
funcionais etc.).
Mais ainda: é perfeitamente possível que haja
indivíduos que tenham um desejo tão premente de consumir agora e nenhuma
vontade de poupar para o futuro, que optem por vender seu patrimônio para
outros indivíduos. E esses outros indivíduos serão capazes de comprar esse
patrimônio em decorrência de terem previamente poupado a maior parte de suas
receitas.
Ou seja, alguns indivíduos consumiriam muito no
presente à custa de ter de se desfazer do seu capital, e outros aumentariam seu
capital à custa de consumir muito pouco no presente.
Parece claro que, só por esta razão comportamental, ocorrerão
profundas alterações patrimoniais que levarão alguns indivíduos a se desfazerem
de todo o seu capital e, consequentemente, terão de, no futuro, trabalhar para
outros indivíduos que ou mantiveram seu capital ou aumentaram seu capital.
Dessa simples decisão comportamental entre poupar e
consumir surgirão o trabalho assalariado e a diferença de patrimônio.
Mas isso ainda é o de menos.
A
segunda e principal causa: o acerto empreendedorial
A verdadeira explicação para os grandes movimentos
patrimoniais não está nas distintas propensões a poupar ou a consumir, mas
sim no grau de acerto ou de erro com que o capital será reinvestido.
Como já indicado, cada indivíduo com um determinado
patrimônio deverá continuar reinvestindo nele conforme seus ativos vão se deteriorando
com o passar do tempo. No entanto — e isso é importante —, essas
decisões de reinvestimento não são automáticas: quando um indivíduo reinveste,
ele tem de decidir em que irá reinvestir; e, ao fazê-lo, ele tanto pode acertar
(inclusive acertar extraordinariamente) como pode se equivocar (inclusive se
equivocar estrepitosamente).
Assim, em uma economia caracterizada pela divisão do
trabalho e pelas trocas comerciais voluntárias, uma das tarefas mais
complicadas que existe é exatamente a de selecionar os projetos de investimento
mais exitosos: não se sabe de antemão o que produzir e nem qual é a melhor
forma de fazê-lo — com efeito, a resposta para essas duas perguntas está
continuamente mudando à medida que se alteram as preferências dos consumidores
e o conhecimento das técnicas de produção disponíveis.
Consequentemente, é necessário dedicar vultosos
recursos intelectuais apenas para se descobrir isso.
Se, nos anos 1990, um indivíduo houvesse investido
maciçamente em sua empresa de máquinas de escrever — ou, atualmente, em
celulares que não sejam smartphones, ou em câmeras analógicas, ou em
navegadores de internet que não se adaptam às crescentes exigências dos
usuários — e continuasse reinvestindo suas receitas para tentar manter esse
tipo de negócio, hoje ele estaria arruinado: seus ativos utilizáveis na
fabricação de máquinas de escrever não valeriam nada hoje.
Por outro lado, se um indivíduo reinveste seu
capital de maneira cada vez mais acertada, de modo que seus produtos vão
abocanhando uma demanda crescente do público consumidor, sem que outros
produtores sejam capazes de imitá-lo na produção de bens tão valorados pelos
consumidores, seu capital irá se multiplicar continuamente, ainda que ele tenha
partido de uma estrita posição de igualdade com o resto dos empreendedores.
(Com efeito, os produtores menos competitivos que
fabricam bens tidos como total ou parcialmente substituíveis vivenciarão uma
queda na demanda, e seu capital perderá valor).
Portanto, o acerto empreendedorial é a segunda causa
que explica por que alguns indivíduos podem aumentar seu capital ao passo que
outros podem se descapitalizar, tendo consequentemente de trabalhar para os
primeiros (pelo menos até que consigam poupar de seu salário um capital
suficiente para voltarem a ser produtores autônomos).
E há ainda uma terceira causa.
Propensão
ao risco
Em parte derivada da anterior, a propensão a assumir
riscos é a terceira causa que explica como o patrimônio das pessoas poderia se
tornar desigual.
Já vimos que, ao escolher onde ou em que ele deve se
especializar, um indivíduo está correndo um considerável risco de perda patrimonial.
No entanto, nem todos os planos de negócios são igualmente arriscados: existem
setores cujos padrões de demanda ou cujas técnicas produtivas são muito mais
estáveis e previsíveis do que outros. Um restaurante de bairro, com uma
clientela muito fiel, não é a mesma coisa que uma start-up biotecnológica.
Consequentemente, aqueles setores menos arriscados
tendem a ser os preferidos dos investidores avessos ao risco: quase todos
desejam investir neles, de modo que a concorrência se torna muito mais intensa
e inevitavelmente os preços tendem a se igualar aos custos.
Por outro lado, existem outros setores muito mais
arriscados em que, exatamente por isso, a concorrência é quase inexistente e,
por conseguinte, os produtores bem-sucedidos que ali atuam podem cobrar preços
maiores do que seus custos — ou seja, setores em que é possível obter lucros
(e no qual os produtores malsucedidos acumulam prejuízos e perdem seu capital).
Com tudo isso em mente, é bastante provável que, da
mesma maneira que a propensão para poupar não é a mesma para cada indivíduo,
tampouco as predisposições para assumir riscos são idênticas, de modo que
aqueles que obtiverem êxito nos setores mais arriscados verão seu capital
crescer muito mais rápido do que aqueles que preferem o conforto dos setores
menos arriscados.
Mais ainda: é possível haver indivíduos tão avessos
ao risco, que eles preferem vender todo o seu patrimônio não para consumi-lo,
mas sim para investir diversificadamente em uma variedade de empresas muito
pouco arriscadas. "Diversificação + pouco risco" implica que as
probabilidades de perdas patrimoniais serão quase nulas.
Só que, em troca dessa segurança, a renda que eles
obterão desses investimentos também serão quase nulas.
Ou seja, pode haver indivíduos que, em troca de não
quererem ver seu patrimônio exposto ao risco de projetos ruins, optem por
renunciar à gestão de seu próprio patrimônio, ainda que não obtenham nenhuma
renda em troca desta renúncia.
Tais indivíduos também se converteriam
inevitavelmente em trabalhadores assalariados: dado que colocaram seu
patrimônio em algo que não gera renda (o equivalente a terem guardado o
dinheiro embaixo do colchão), se quiserem obter receitas terão de trabalhar dentro dos planos empresariais de outros
capitalistas.
As três funções essenciais do
capitalista
Tendo em mente esse exemplo, é fácil inferir quais
são as três funções econômicas valiosas desempenhadas por todo capitalista:
adiamento do seu consumo próprio para financiar investimentos, seleção de
projetos de investimentos bem-sucedidos, e concentração patrimonial de riscos.
Dito de outro modo, o empregado assalariado, à
diferença do capitalista, pode consumir 100% de suas receitas, não tem de
dedicar nada do seu tempo para avaliar os acertos ou os erros de seus
empreendimentos, e, em caso de falência do empreendimento em que trabalha,
perde seu emprego mas não perde seu patrimônio.
Apenas imagine o que aconteceria se, a cada vez que
uma empresa quebrasse, seus empregados também perdessem o dinheiro em sua conta
bancária e até mesmo tivessem penhorados seu imóveis totalmente quitados? É
exatamente isso o que pode acontecer a um capitalista.
Evidentemente, a função econômica desempenhada pelo
capitalista é custosa e valorosa: é custoso e valoroso que seja ele quem
restringe seu consumo para financiar uma atividade, que seja ele quem dedica
seu tempo e esforço para avaliar projetos empreendedoriais, que seja ele quem
concentra os riscos dos investimentos.
Por tudo isso, a relação trabalhista
entre patrões e empregados é simplesmente uma relação de troca entre bens
presentes (o capital e a poupança do capitalista) por bens futuros (bens que
serão produzidos pelos trabalhadores e pelo maquinário utilizado, mas que só
estarão disponíveis no futuro). Os capitalistas adiantam bens presentes
(salários) aos trabalhadores em troca de receber bens futuros (retorno do
investimento).
É dessa diferença entre bens presentes e bens
futuros que virá a remuneração do capitalista.
Explicando melhor: para que o assalariado possa
fabricar as mercadorias, o capitalista investiu dinheiro na fábrica. Ele investiu,
digamos, $ 100 milhões para construir a fábrica, comprar maquinários e pagar os
salários, e pretende recuperar, na forma de fluxo de caixa anual,
aproximadamente $ 10 milhões. Assim, serão necessários 10 anos apenas para
recuperar todo o capital adiantado. (Fora a inflação do período)
Ou seja, o capitalista abriu mão de $ 100 milhões em
consumo presente para receber, anualmente, uma receita de $ 10 milhões. Tudo
dando certo, daqui a uma década o principal será recuperado.
Se essas atividades — postergação do consumo,
seleção criativa de projetos de investimento e uso arriscado do patrimônio —
não tivessem valor e o capitalista não pudesse "cobrar" por elas (pagando
salários menores que sua receita), simplesmente não haveria atividade
econômica, não haveria produção e não haveria enriquecimento da sociedade.
O fato de o trabalhador não receber o "valor
total" da produção — como exigem os marxistas — nada tem a ver com
exploração; simplesmente reflete o fato de que é impossível o homem trocar bens
futuros por bens presentes sem que haja um desconto. Os salários representam
bens presentes, ao passo que os serviços da mão-de-obra representam apenas bens
futuros.
E daí surgem as diferenças patrimoniais.
Conclusão
Se eliminarmos os capitalistas da equação, alguém
terá de concentrar todas as funções que hoje os capitalistas desempenham, e
esse alguém ficaria com a remuneração que atualmente é dos capitalistas. E
aí toda a desigualdade patrimonial estaria de volta.
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A ideia de que, no capitalismo, os trabalhadores são "explorados" atenta contra a lógica