segunda-feira, 30 jul 2018
No dia 25 de julho de 2018, uma xícara de café estava
custando 2 milhões de bolívares em Caracas. No início do mesmo mês, estava
custando "apenas" 1 milhão de bolívares.
No dia 25 de abril — ou seja, 3 meses atrás —, a
mesma xícara de café custava 190 mil bolívares. Você pode acompanhar toda a
evolução do preço da xícara de café aqui.
Em três meses, portanto, uma xícara de café
encareceu 953%. Uma inflação trimestral de 953% significa uma inflação
anualizada de 1.228.000%. Sim, você leu corretamente: mais de um milhão por
cento.
Atualmente, utilizando os preços do mercado
paralelo, um salário mínimo de um venezuelano equivale a apenas
US$ 1,50. Sim, você leu corretamente: após um mês de
trabalho, um venezuelano que trabalha pelo salário mínimo recebe o equivalente
a um dólar e cinquenta cents.
O que ele consegue comprar com esse valor na
Venezuela? Um
quilograma de frango. Se quiser se dar ao luxo de comprar
uma garrafa de uísque, por exemplo, será necessário trabalhar
16 anos.
A mão-de-obra mais qualificada do país precisa recorrer
a três empregos apenas para conseguir comer ao longo do
mês.
Apenas para colocar em perspectiva, em julho de
2007, a cédula do bolívar de maior valor nominal era a cédula de 100 bolívares.
À época, ela
comprava 28 dólares, 288 ovos ou 56 quilogramas de arroz.
Dez anos depois, em julho de 2017, eram necessárias cem cédulas de 100
bolívares (10.000 bolívares) para comprar somente um ovo. Hoje, obviamente, a
cédula já foi retirada
de circulação.
E uma pilha de dinheiro que, há 15 anos, compraria
um apartamento, hoje mal dá para pagar um café.
Mas há um efeito "curioso" nisso tudo, ainda que de
certa forma seja uma curiosidade mórbida.
O
dinheiro é abundante — e ao mesmo tempo inexistente
Com a queda das receitas do petróleo, o governo
venezuelano recorreu àquela solução simples, fácil e totalmente equivocada para
aumentar seus gastos e manter seus programas assistencialistas: saiu
literalmente imprimindo dinheiro.
Os gráficos abaixo mostram a evolução desta
quantidade de cédulas de papel e de depósitos em conta-corrente na economia
venezuelana (agregado M1) de acordo com as estatísticas do próprio Banco
Central venezuelano. Dado que o aumento da oferta monetária é exponencial,
é necessário subdividir em dois gráficos.

Gráfico 1: evolução da quantidade de
cédulas de papel e de depósitos em conta-corrente na Venezuela, de janeiro de
2007 a dezembro de 2016

Gráfico 2: evolução da quantidade de
cédulas de papel e de depósitos em conta-corrente na Venezuela, de janeiro de
2017 a maio de 2018
No primeiro gráfico, a oferta monetária em dezembro
de 2016 é de dez trilhões de bolívares. Já em maio de 2018,
esse montante já estava em 1,2 quatrilhão de bolívares.
Isso significa que, em dois anos e meio, a
quantidade de dinheiro na economia foi multiplicada por 120.
Ou seja, ao final de maio, havia nada menos que 1,25
quatrilhão de bolívares em circulação
na economia, na forma de cédulas e depósitos em bancos.
Logo, dinheiro na economia Venezuela é o que não
falta, correto? Errado. As notícias são abundantes e recorrentes: o dinheiro
praticamente sumiu da economia venezuelana.
Os caixas eletrônicos dos bancos quase
nunca têm dinheiro, o que leva à formação de filas
volumosas, que demoram horas. Um cidadão que queira fazer uma simples compra em
uma quitanda tem antes de ir, em média, a nada menos que seis
caixas eletrônicos para retirar dinheiro.
O país está na curiosa situação de estar "nadando em
dinheiro", mas não ter dinheiro.
Tal fenômeno, no entanto, já havia sido previsto e
explicado por Ludwig von Mises em sua pioneira obra "A
Teoria da Moeda e do Crédito", publicada em 1912.
Em um ambiente de hiperinflação, chega-se a um ponto
em que a população — exatamente por já estar vivenciando uma subida rápida e
diária dos preços — passa a esperar que os preços futuros irão subir a taxas
ainda mais aceleradas. Se a inflação do mês passado foi de 100%, ela espera que
a deste mês será de 150%. E a do mês seguinte, de 200%. E assim por diante.
Neste ponto, a demanda por dinheiro — ou seja, o
desejo das pessoas de portar dinheiro — desaba. Ninguém quer manter consigo
algo que amanhã já não terá nenhum poder de compra. Ato contínuo, as pessoas
freneticamente tentam trocar todo e qualquer dinheiro por bens o mais
rapidamente possível. Todos querem prontamente se livrar do dinheiro que
recebem, trocando-o por produtos que ao menos tenham algum valor.
Por outro lado, praticamente ninguém aceita abrir
mão de bens — principalmente alimentos e outros produtos essenciais — em
troca de uma moeda sem poder de compra nenhum.
Ou seja, de um lado, as pessoas querem se livrar
rapidamente do dinheiro em troca de bens. De outro, quem tem bens não quer
receber esse dinheiro que não vale nada — a menos que cobre um enorme ágio por isso. Daí os preços sobem ainda mais.
Tão logo essas expectativas inflacionárias se
estabelecem entre as pessoas, o nível dos preços se torna completamente
descolado da quantidade de dinheiro em circulação, de modo que os preços passam
a disparar a taxas cada vez maiores, as quais excedem a taxa de expansão da
oferta monetária.
O resultado, ironicamente, é que ao mesmo tempo em
que o Banco Central está inundando a economia com quantidades cada vez maiores
de dinheiro, surge uma escassez de
dinheiro em circulação, o que dificulta enormemente o pagamento de bens e
serviços. A impressora do Banco Central não mais consegue manter o mesmo ritmo
da espiral inflacionária dos preços.
A Venezuela entrou neste estágio (alteração das
expectativas inflacionárias) há alguns anos, sendo que a taxa de inflação
monetária — como mostra o gráfico 2 — se acelerou intensamente no início de
2018. De
acordo com o economista Steve Hanke, o grande especialista
mundial no assunto, a taxa anualizada da inflação de preços foi de 27.000% em
maio, pulou para 46.000% em junho e espera-se que, até o final do ano, já
esteja chegando ao valor
mágico de 1.000.000%.
Taxas anuais de inflação desta magnitude significam
que os preços mais do que dobram a cada mês. Se os preços sobem mais de 100% ao
mês, isso significa que, para tentar mitigar a escassez de dinheiro — ou seja,
para que os preços não subam muito mais que a oferta monetária —, o Banco
Central teria de imprimir e distribuir por todo o país, a cada mês, uma
quantidade de dinheiro igual à quantidade absoluta de dinheiro que já está em
circulação. Isso, obviamente, é tecnicamente impossível.
Adicionalmente, dado que os venezuelanos estão
trocando suas cédulas de bolívares por bens tão logo conseguem, a velocidade de
circulação do dinheiro (a troca de dinheiro de uma pessoa para outra) é alta, o
que faz com que as cédulas se desgastem muito rapidamente. Por causa desse
desgaste, na Venezuela, as cédulas precisam ser trocadas a cada 7 ou 9 meses. (Nos
EUA, a título de comparação, a expectativa de vida média de uma cédula de dólar
é de seis anos). Isso exacerbou a escassez de moeda no país, pois fez com que o
custo de produção de cédulas de baixo valor nominal passasse a ser maior que
seu valor de face, o que levou o governo a abandonar a
emissão destas cédulas e, em seu lugar, emitir cédulas com três zeros a mais.
Assim, a cédula de 100 bolívares foi extinta e, em seu lugar, entrou a cédula
de 100.000 bolívares.
Recentemente, o governo venezuelano anunciou que começaria
a importar cédulas
fabricadas pela Casa da Moeda do Brasil.
Dado que os bancos venezuelanos ficam sem dinheiro
diariamente, e seus caixas eletrônicos precisam ser reabastecidos a cada
pequeno intervalo de horas, os correntistas precisam esperar longas horas nas
filas para sacar montanhas de dinheiro que, no final, equivalem a apenas US$
0,10. (No mercado paralelo, um dólar custa 3,3
milhões de bolívares). Várias bodegas locais perceberam aí
uma oportunidade de lucro e já estão vendendo cédulas a um ágio que varia de
40% a 120% do valor de face, pagável apenas via transferência bancária.
A hiperinflação também impõe o custo de se
transportar e de se contar montanhosas quantias de cédulas até mesmo para fazer
pequenas compras. Na Venezuela, os consumidores não mais usam carteiras, mas
sim mochilas para carregar dinheiro, e os comerciantes não mais contam as
cédulas manualmente, mas
sim utilizam balanças para pesar o dinheiro que recebem. É mais prático.
Nas padarias, a mesma balança usada para pesar queijo é usada para pesar
dinheiro. Tudo isso estimula a reduzir ainda mais o uso do dinheiro, promovendo
a desmonetização da economia.
Mas isso gera outras situações inusitadas: com os
comerciantes preferindo pesar
o dinheiro em vez de contar, as próprias balanças começam a apresentar limitações.
Como escreveu
a jornalista Patricia Laya, da Bloomberg, em sua fascinante série A Vida em Caracas:
A
balança na mercearia local vai até seis dígitos monetários. E o presunto —
informa meu grupo de WhatsApp formado por pessoas procurando comida — está
sendo vendido por 1.480.000 bolívares (sete dígitos) por quilograma. Resultado:
não pude comprar. Pouco importou o fato de eu querer apenas alguns gramas. O
custo, neste mercado, era impossível ser calculado.
Dinâmica
similar está impedindo o uso de cartões de crédito e de débito. O preço de um conjunto
de lençóis (33.541.963 bolívares), um par de tênis Adidas (10.500.000 bolívares)
ou mesmo um pedaço de lasanha (401.450 bolívares) não cabe nos visores das
máquinas mais antigas de cartões. A solução, então, é dividir uma compra em
várias transações. Mesmo as impressoras que as empresas utilizam para imprimir as
faturas para relatar seus ganhos para a Receita Federal estão ficando sem espaço
para os dígitos.
Indo
para o escambo
Em conjunto com esta hiperinflação da moeda, o
governo decretou controle
de preços e recorreu à estatização
de fábricas e de lojas. Como consequência, a escassez e o desabastecimento
se tornaram generalizados. Vai de papel
higiênico a comida, passando
por remédios, eletricidade e
até mesmo água.
Sem uma moeda funcional e operando sob rígidos
controles estatais, toda a economia se desarranjou. Sendo a moeda a metade de
toda e qualquer transação econômica, se ela deixa de funcionar, a economia
retorna a um estado de escambo. E é o que está acontecendo.
Na Venezuela, assim como já ocorreu nos outros episódios de hiperinflação na história do mundo, a
escassez de moeda afeta mais severamente os consumidores de baixa renda, os
pequenos comerciantes e os trabalhadores do setor de serviços, os quais não têm
acesso a bancos ou à tecnologia eletrônica para fazer ou receber pagamentos.
Estes grupos estão recorrendo cada vez mais ao
escambo, não obstante seus já bem conhecidos custos e ineficiências. Trocas diretas
envolvendo comida e itens de higiene pessoal estão cada vez mais tomando o
lugar das transações monetárias nas cidades pequenas e até mesmo nas grandes.
A seguir, alguns relatos (ver aqui,
aqui,
aqui
e aqui) divulgados pela imprensa.
Na cidade litorânea de Rio Chico, pescadores tentam
trocar seus peixes diretamente por arroz, farinha e óleo de soja. Um homem
dirige seu carro até a lagoa estocado de caixas de óleo de soja, massa e
farinha de milho — os ingredientes da arepa venezuelana (um pastel de queijo
tradicional) — para trocar por peixes. A transação é rapidamente efetuada com
vários pescadores locais. Mas essa é uma exceção.
O principal problema com o escambo, e o motivo por
que o dinheiro surgiu espontaneamente no mercado, é aquele que os economistas
rotulam de "a dupla coincidência de desejos". É extremamente custoso em termos
de tempo e de esforço encontrar alguém que possua o item específico que você quer
e que também queira o bem que você está
oferecendo em troca. Assim, uma mulher com um caixote de isopor repleto de
peixes frescos caminha pela borda da lagoa à procura de pessoas que aceitam
peixes e que estejam dispostas a dar em troca remédios para a epilepsia de seu
filho. Nada.
Há dias em que um pescador perde horas tentando trocar
seu pescado por algum outro item. Nada. Ele volta pra casa apenas com seu
peixe.
Nas áreas pobres de Caracas e em suas favelas, as
pessoas no setor de serviços também recorrem ao escambo. Um barbeiro cobra 1
milhão de bolívares (aproximadamente US$ 0,30 à taxa do mercado paralelo), mas também
aceita comida como pagamento. Em algumas ocasiões, ele sai da barbearia e vai
com seus clientes até o açougue local, onde eles compram para o barbeiro algo
com igual valor de mercado, presumivelmente com cartão de débito.
O dono de uma empresa de contabilidade permite que
seus clientes paguem suas contas com carne, frango, manteiga e desodorante.
Um cabeleireiro combina com seus clientes que eles irão
pagar suas contas mensalmente. Como? Seus clientes são donos de mercearias, e darão
ao cabeleireiro itens selecionados.
Um encanador conserta uma máquina de lavar em troca
de alguns gramas de massa, um pedaço de bife e 200.000 bolívares (que valiam
aproximadamente US$ 1,20 no início de 2018, data da reportagem).
Pessoas talentosas começaram a desenvolver seu próprio
tipo de meio de troca. Uma professora com diabetes e um parente esperam na fila,
durante horas, para comprar produtos altamente comercializáveis, como pacotes
de macarrão, para então trocar pela insulina de que ela precisa. Ele consegue
trocar 1,5 kg de macarrão pela necessária dose do medicamento.
Com fontes de proteína sob grande demanda, uma
professora de arquitetura da Universidade de Caracas descobriu que o ovo é um "perfeito"
meio de troca para pagar pelo estacionamento. Ela pagou dinheiro mais dois ovos
pelo estacionamento. Já seu departamento universitário pagou um programador com
uma caixa de ovos.
Assim, em todo o setor de serviços, antes de
aceitarem um trabalho, é normal perguntarem ao cliente o que há na despensa
deles. Farinha, macarrão, arroz, óleo vegetal, açúcar, maionese, refrigerantes
e itens de cuidado pessoal também são "moedas fortes".
Empregadas domésticas, motoristas de táxi e de
ônibus, carpinteiros, sapateiros, enfermeiras, empregados de lava-jatos,
comerciantes e até mesmo profissionais estão cada vez mais dispostos a
participar do arranjo "trabalho por comida" para não morrer de fome.
Já a mão-de-obra mais qualificada que ainda ficou na
Venezuela é hoje, como mostrado, remunerada
com ovos (uma caixa de 36 ovos vale US$ 2 no mercado paralelo).
Conclusão
A escassez de moeda gerada pela hiperinflação —
sim, esse fenômeno aparentemente paradoxal já havia sido previsto por Mises em
1920 — acrescentou ainda mais sofrimento às já espantosas ineficiências causada pela maciça intervenção
do governo na economia e à pandêmica corrupção política.
A situação é de catástrofe humanitária.
Não é nada surpreendente que a economia venezuelana
esteja em acelerado processo de contração, tendo encolhido
16,50% em 2016 e 13,20% em 2017.
Sendo altamente improvável que o governo vá
interromper a impressão de dinheiro, o colapso de todo o sistema monetário é
iminente. Assim como o humanitário.