quinta-feira, 27 ago 2009
Nota do IMB: o artigo a seguir faz parte do concurso de artigos promovidos pelo Instituto Mises Brasil (leia mais aqui).
As opiniões contidas nele não necessariamente representam as visões do
Instituto e são de inteira responsabilidade de seu autor.
Introdução
O libertarianismo é uma corrente relativamente recente do
pensamento político. Entretanto, é verdade que alguns de seus fundamentos
encontram-se nos escritos de alguns pensadores americanos do século XIX, tais
como Lysander Spooner (1808-1887) e Benjamin Tucker (1854-1939) e do economista
belga Gustave de Molinari (1819-1912). Todavia, seu corpo teórico mais
detalhado e abrangente surgiu em princípios da década de 1970 nos EUA,
especialmente nos trabalhos do economista e filósofo Murray N. Rothbard
(1926-1995), um dos mais ilustres pensadores da escola austríaca de economia.
O impacto de suas obras nos círculos libertários americanos
lhe projetou como o maior expoente do libertarianismo contemporâneo. A grande
realização de Rothbard, contudo, não se limitou na esfera política. Publicou
importantes trabalhos na área da teoria econômica, na história do pensamento
econômico, na história econômica americana e na filosofia política liberal.
Todos os seus trabalhos têm como núcleo a defesa da liberdade individual. Uma
das grandes realizações do autor foi ter unificado a teoria econômica com a
filosofia política, esta por ele chamada simplesmente de ética, resultado que culminou na justificação econômica e ética de
uma posição libertária extremada, também conhecida como anarcocapitalismo[1], isto é, uma sociedade sem
estado, mas baseada no princípio da propriedade privada.
O presente artigo tem por objetivo apresentar um exame
crítico do Estado a partir do pensamento de Rothbard. Para o nosso autor, o
Estado cai em duas graves deficiências injustificáveis: uma de ordem econômica
e outra de ordem moral. Sendo que a de ordem moral é a principal para Rothbard
rejeitar qualquer chance de legitimidade para o Estado. Por fim, considera-se
que sua análise fornece importantes componentes para se pensar
uma sociedade livre, justa e próspera.
1. Fundamentos
Teóricos
1.1 O Teorema da não-agressão
e o direito à propriedade
De acordo com nosso autor (Rothbard, 2002), o credo
libertário se fundamenta num axioma central: nenhum homem ou grupo de homens
pode cometer uma agressão contra a pessoa ou a propriedade do outro. Rothbard
definiu este axioma como "teorema da não agressão". Daí que agressão se define
como o início do uso ou ameaça do uso da violência física contra a pessoa ou a
propriedade do outro. Portanto, agressão é sinônimo de invasão.
A defesa libertária ao direito de propriedade privada é
baseado no direito natural conforme demonstrado por John Locke:
Cada homem tem uma propriedade particular em sua própria
pessoa; a esta ninguém tem qualquer direito senão ele mesmo. O trabalho de seus
braços e a obra das suas mãos, pode-se afirmar, são propriamente dele. (Locke,
2005: 38,
§ 27)
Sendo o indivíduo detentor exclusivo de seu próprio corpo e
de sua propriedade legitimamente
adquirida[2], ele possui por implicação lógica o direito
de usufruir e gozar livremente de sua propriedade desde que o seu uso não implique numa agressão à pessoa ou à
propriedade do outro, bem como, possui o direito à sua preservação e a
autodefesa contra a agressão alheia. Portanto, a teoria libertária mostra que
violar o direito de propriedade do homem significa também violar a sua
liberdade. Na equação rothbardiana, tem-se que liberdade é uma extensão
necessária do direito à propriedade.
De acordo com o pensador libertário, o princípio do direito à
propriedade exclusiva que cada indivíduo possui de seu próprio corpo e dos
lugares e bens por ele possuídos antes de qualquer outro está de pleno acordo
com a nossa intuição moral. Rothbard (2002) nota que se A não for proprietário de seu corpo físico e da propriedade por ele
originalmente apropriada, produzida ou adquirida voluntariamente resta apenas
duas alternativas. A primeira, que um
indivíduo B submeta o indivíduo A a seu jugo, expropriando o direito do
outro a posse de seu próprio corpo e dos lugares e bens por ele possuídos,
produzidos ou adquiridos. A questão que se impõe é: mas porque B teria esse direito sobre a propriedade
e a pessoa de A? Ou, qual critério
moral justificaria que B seja senhor
e A seja servo? Para o libertário
esta posição não se justifica, pois ela relativiza um código moral para os
mesmos homens. Para Rothbard, é intuitivo e auto-evidente que uma moral humana,
que se quer universal, deva rejeitar um princípio que assegure que um homem ou
grupo de homens tem o direito de expropriar e subjugar o outro a força.
A segunda alternativa
seria que cada homem possuísse parte da propriedade de todos os outros.
Rothbard chamou essa alternativa de comunismo
universal. Mas ele igualmente rejeita esta hipótese, pois ela culmina numa insolúvel
contradição lógica. Ora, se cada um é co-proprietário do corpo e das
propriedades do outro, ninguém pode tomar qualquer iniciativa sem antes pedir
autorização para as outras partes co-proprietárias. Fica evidente que a
propriedade comunal levaria a humanidade à inação e ao auto-extermínio[3], até porque no plano mundial seria impossível ter o aval
de cada homem antes de tomar alguma iniciativa. Mas pior ainda, de fato ninguém
poderia dar a sua própria opinião se antes não lhe fosse atribuído a
propriedade exclusiva de si mesmo. Assim sendo, a única possibilidade moral que
resta, segundo Rothbard, é a noção do direito exclusivo à propriedade que cada
indivíduo tem sobre seu próprio corpo e por implicação lógica isto se estende
ao direito de propriedade aos frutos do seu trabalho, ou seja, a original concepção
lockeana do direito à propriedade dos objetos externos.
2. Trocas Voluntárias
e Agressão
Sendo o princípio da não-agressão o elemento fundador do
credo libertário, decorre que os homens possuem o direito para produzir e
realizar trocas voluntárias com suas propriedades. Para fortalecer o argumento,
oportuna se faz a distinção feita pelo sociólogo alemão Franz Oppenheimer em
seu livro The State, frequentemente citado por Rothbard, onde ele distingue
duas maneiras de se adquirir riquezas: o meio econômico e o meio
político. O primeiro (meio econômico) consiste no resultado de trocas livres
e voluntárias realizadas entre duas pessoas ou dois grupos. O resultado das
livres trocas, ou livre comércio, não é um resultado de soma zero, porque as
partes que realizam as trocas esperam obter benefícios mútuos, caso contrário
não haveria a relação. Este arranjo voluntário de trocas se dá via mercado. É o
meio econômico. O segundo meio de se
adquirir riqueza, dizia Oppenheimer, é o meio
político, onde uma pessoa ou grupo de pessoas expropria os recursos alheios
via força e exploração. Oppenheimer nos diz que este meio de obter riquezas é
genuinamente praticado pelos assaltantes e pelo Estado, uma vez que este obtém
sua renda através da força coercitiva (taxação) sobre os súditos. Ou seja, o
livre mercado constitui-se também num elemento legítimo das relações humanas
conforme a teoria libertária.
Com base nisso, Rothbard pretende mostrar que a ação humana
virtuosa somente pode se realizar sob condições de liberdade. As relações
livres e contratuais, isto é, aquelas que se expressam no mercado, são os meios
legítimos e morais para as relações humanas. No tocante à caridade, Rothbard
(2004, cap. 6, PM) rejeita a idéia de que o Estado possa ser um ente caridoso,
pois na prática o Estado tira de uns via força (impostos) para dar à outros.
Para o pensador libertário não pode haver virtuosidade e caridade num contexto
de violação de direitos, no caso, a violação da própria liberdade. E a ação só
pode ser virtuosa onde haja a liberdade para agir e escolher agir virtuosamente.
3. O Estado
Como vimos acima, o libertarianismo se opõe a toda e qualquer
forma de agressão e enxerga que ao longo da história e na atualidade sempre
houve um agressor central, dominante e avassalador dos direitos do homem: o
Estado. Rothbard acentua que
The libertarian, in short, insists
on applying the general moral law to everyone, and makes no special exemptions
for any person or group. But if we look at the State naked, as it were, we see
that it is universally allowed, and even encouraged, to commit all the acts
which even non-libertarians concede are reprehensible crimes. The State
habitually commits mass murder, which it calls "war," or sometimes
"suppression of subversion"; the State engages in enslavement into
its military forces, which it calls "conscription"; and it lives and
has its being in the practice of forcible theft, which it calls
"taxation." The libertarian insists that whether or not such
practices are supported by the majority of the population is not germane to
their nature: that, regardless of popular sanction, War is Mass Murder,
Conscription is Slavery, and Taxation is Robbery. The libertarian, in short, is
almost completely the child in the fable, pointing out insistently that the emperor
has no clothes. (Rothbard. 2002: 23)
Os libertários alertam para a existência de um paradoxo moral
na própria existência do Estado. Ele é a única instituição social que obtém sua
renda via ação não-voluntária e não-contratual, ou seja, ele subsiste através
da coerção violenta sobre a propriedade e a renda de quem obtém seus ganhos por
meio das trocas livres e voluntárias. Se qualquer pessoa ou instituição social
tentar obter sua renda através da violência coercitiva sobre a propriedade ou
renda alheia imediatamente se enquadrará em ação criminosa, segundo as leis da
mesma instituição que vive precisamente por meio deste expediente. Como diz
Rothbard "o libertário aplica a lei moral geral para todos e não faz exceção
especial a qualquer pessoa ou grupo".
O filósofo libertário Barnett (1976), mostra que o Estado
pela sua própria natureza não pode obedecer as suas próprias leis e códigos
legais. Decorre que se o Estado é incapaz de obedecer as suas próprias leis,
então ele é necessariamente ineficiente e auto-contraditório como legislador.
Para Rothbard, portanto, há uma impossibilidade moral em conceder legitimidade
à existência do Estado.
Nosso autor mostrou também a inerente ineficácia do Estado
como fornecedor de bens públicos[4]. O Estado sendo um
monopolista territorial sobre a oferta de alguns produtos ou serviços, como por
exemplo, proteção e segurança, tende sistematicamente a reduzir a qualidade do
serviço ao mesmo tempo em que aumenta o seu preço. Livre da competição ou da
possibilidade da entrada de novos concorrentes no mercado e obtendo sua renda
via cobrança de impostos e não através do pagamento voluntário, o Estado
mantém-se num ambiente sem os incentivos constantes para aprimorar seus
serviços, buscar a eficiência e a qualidade. Segundo Rothbard, a grande questão é
how is the government to decide how much
protection to provide and how much taxes to levy? For, contrary to the limited
government theory, "protection" is no more a collective, one-lump "thing" than
any other good or service in society. (Rothbard, 2002b: 180).
Rothbard desafia a concepção de que o Estado pode ser capaz
de fornecer com eficiência qualquer serviço que se proponha. De fato, ele expõe
três dúvidas teóricas de difícil solução. Quanto
de proteção o Estado deve fornecer? A que
custo? E quem decidirá a qualidade da
proteção que cada pessoa deverá receber? De fato, "proteção" pode implicar
qualquer coisa, desde um guarda costa armado por pessoa até um exército
altamente equipado. De forma
contundente, conclui Rothbard
Mas quem
decidirá sobre quanto de proteção a ser produzida, uma vez que é inegável que
toda pessoa estaria melhor protegida
do roubo e da agressão se estivesse contando com um guarda-costa armado do que
se não tivesse? No livre mercado, decisões sobre quanto e em que qualidade de
qualquer bem ou serviço a ser ofertada a cada pessoa é feita pelos meios das
compras voluntárias de cada indivíduo; mas qual critério pode ser aplicado
quando as decisões são tomadas pelo governo?
A resposta é nenhum critério, pois tais decisões governamentais só podem ser
puramente arbitrárias. (Rothbard, 2002b: 181).
Um pensador alinhado à escola austríaca de economia e um dos
mais destacados seguidores de Rothbard em atividade, o economista e filósofo
Hans-Hermann Hoppe, também revela as incontornáveis implicações de o Estado
possuir o monopólio da última decisão em caso de conflitos (ultimate decision-making). Isto é, o
Estado também se outorga a condição monopolista de último árbitro em todo caso
de conflito, inclusive conflitos envolvendo ele mesmo, não havendo
possibilidade de apelo acima ou para além de sua própria estrutura.
As noted, the government is the
ultimate judge in every case of conflict, including conflicts involving itself.
Consequently, instead of merely preventing and resolving conflict, a monopolist
of ultimate decision-making will also provoke conflict in order to
settle it to his own advantage. That is, if one can only appeal to government
for justice, justice will be perverted in the favor of government,
constitutions and supreme courts notwithstanding. Indeed, these are government
constitutions and courts, and whatever limitations on government action they
may find is invariably decided by agents of the very same institution under
consideration. (Hoppe, 2006).
Inserido neste irremediável contexto de arbitrariedade
econômica-alocativa conforme mostrado por Rothbard; motivado, como todo mundo
é, pelo auto-interesse e a desutilidade do trabalho e ainda equipado com o
monopólio de última decisão em caso de conflito e o poder exclusivo de taxação,
o objetivo dos agentes governamentais serão invariavelmente o de maximizar os gastos em proteção e ao
mesmo tempo minimizar a produção de
proteção. A consequência inevitável do Estado, ainda que uma vez considerado
mínimo, será a sua sistemática expansão sobre a liberdade individual.
Lamentavelmente, a história do Estado moderno registra este fenômeno, conforme
demonstrou à exaustão Hoppe (2001).
Considerações Finais
De acordo com Rothbard, verifica-se que do ponto de vista
econômico-utilitário o Estado é uma entidade que sofre de uma irresistível
inclinação à ineficiência, isto é, ao ostensivo desperdício dos escassos
recursos econômicos. Porém, para o autor americano, a crítica ao Estado, é
antes de tudo de ordem moral, ainda que moral e utilidade, embora separadas,
acabem sinalizando o mesmo caminho, isto é, o de adotar uma postura categórica
de rejeição à entidade estatal.
Sem embargo, alguns poderiam criticar esta posição alegando
que os libertários ignoram um dado elementar da natureza humana: uma certa
tendência à agressão e à violência, pois que desprezam a necessidade do Estado
para ordenar e regular o convívio social. No entanto, esta crítica seria precipitada,
visto que os libertários não ignoram a natureza humana em geral nem a sua
inclinação à violência e à agressão em particular. Os
libertários simplesmente alertam que desta tendência natural do homem ao
conflito não se segue, nem tampouco se justifica, a necessidade do monopólio estatal.
Os teóricos libertários inferem que é precisamente do fato de "o homem ser o
lobo do próprio homem" (na famosa frase de Hobbes) que haverá de surgir no
mercado indivíduos, grupos e cooperativas, que fornecerão serviços de proteção
à vida e à propriedade[5].
Se
isto parece razoável, a questão que resta explicar diz respeito ao modo em que
se darão os serviços de polícia e tribunais de arbitragem de conflito, enfim,
como garantir o convívio social pacífico e a justiça num ambiente regulado
apenas por agências privadas de proteção. Rothbard procurou responder esta
questão mostrando em seu monumental tratado de economia Man, Economy, and State (1962) como funcionaria uma sociedade livre.
Em Power and Market (1970) e em For a New Liberty (1973) mostrou como agências
de proteção e segurança funcionariam numa sociedade livre. De acordo com nosso
autor, diante da alternativa estatal, as relações voluntárias e contratuais são
econômica e moralmente superiores em fornecer quaisquer produtos ou serviços à
sociedade. O espaço não nos permitirá entrar nos detalhes desta perspectiva, contudo,
uma lição que pode-se extrair a partir do exposto é que algo precisa ser pensado
em relação a ordenação social, política e econômica das sociedades
contemporâneas, especialmente quando vemos que o Estado moderno tem sistematicamente
assumido poderes cada vez mais discricionários sobre a vida e a liberdade
individual. E, finalmente, acredita-se que a análise rothbardiana pode nos
auxiliar a compreender melhor as razões e implicações da expansão estatal. Levar
isso em conta é indispensável para sabermos com mais rigor a quem e aonde
combater as excrescências econômicas, políticas e sociais que observamos em
nossa sociedade.
__________________________________________________________________
[1] Usarei de modo
intercambiável os termos "anarcocapitalismo", "sociedade libertária" e
"sociedade livre", apenas para aliviar o texto de excessivas repetições.
[2] A justificação do direito
de propriedade para Rothbard é somente para a propriedade legitimamente
adquirida, isto é, somente as propriedades obtidas através da apropriação
original de recursos não possuídos por ninguém (homesteading), e pelos métodos de produção e das trocas
voluntárias, isto é, pelo método do livre mercado. Evidentemente que caridade e
doações se enquadram aqui.
[3] Este argumento é também
apresentado por Locke no Segundo Tratado
sobre o Governo, § 28.
[4] Para uma demonstração da
falácia no próprio conceito de bem
público, ver Rothbard (2004: 1029-1036) e Hoppe (1989).
[5] Conforme ilustra a lei de
associação de Ricardo, a tendência natural do homem é a cooperação e não o
conflito, embora este também se faça presente, porém não com a preponderância
suposta por Hobbes que efetivamente enxergava um conflito civil em torno do
poder estatal monárquico e inversamente associava-o ao "estado de natureza" do
homem, em seu livro O Leviatã (1651).
Referências Bibliográficas
BARNETT, Randy E. "Fuller, Law, and Anarchism." The Libertarian Forum, February 1976, pp. 5-7.
HOPPE, Hans-Hermann. Democracy:
The God That Failed. Transaction Publisher, 2001.
HOPPE, Hans-Hermann. "Fallacies of the Public Goods Theory and the
Production of Security." Journal of
Libertarian Studies, Vol. 9 Num. 1, Winter 1989, pp. 27-46
HOPPE, Hans-Hermann. "The Idea of a Private Law Society." Disponível
em: https://www.mises.org/story/2265.
Acesso em 25/11/2006.
LOCKE, John. Segundo Tratado sobre o Governo. Martin Claret, 2005
ROTHBARD, Murray N. For a New Liberty: The Libertarian Manifesto. Macmillan
Publishing Co., Inc. Online Edition Ludwig von Mises Institute, 2002.
ROTHBARD, Murray
N. Man, Economy and State with Power and
Market. Mises Institute. Scholar Edition, 2004. Na citação "2004: PM" para Power and Market.
ROTHBARD, Murray N. The Ethics of Liberty. New York University Press, 2002b.