quarta-feira, 10 mar 2010
ARTIGO VENCEDOR DO CONCURSO IMB (publicado originalmente no dia 02/12/2009)
É a festa da vaga. Agora o paulistano poderá estacionar
de graça nos shopping centers, contanto que gaste, nas compras, dez vezes o
valor da tarifa. Oba, vaga de graça! Curioso que o nosso legislativo sancione
uma lei dessas: um governo tão preocupado em facilitar o acesso ao
estacionamento privado ao mesmo tempo em que parar na rua fica cada vez mais
difícil e caro (reparem na proliferação das placas de proibido estacionar e das
zonas azuis). Para os shoppings, filhos da ganância capitalista, impõe-se a
gratuidade; nas vias públicas, geridas pelo altruísmo santo da política,
cobrança, multa e proibição.
Falando sério: a nova lei é mais um exemplo da ignorância
econômica da nossa classe política. Eu gostaria de estacionamento grátis? Mas é
claro! Quem frequenta regularmente algum shopping sabe que as tarifas subiram
sensivelmente nos últimos anos. Só que isso não torna a lei nem justa nem
eficiente, e defendê-la pela mera comodidade pessoal seria colocar minha
conveniência acima da justiça e do bem comum.
Como se sabe, o espaço é um bem escasso em centros
urbanos. Shoppings afastados, em lugares onde o valor do terreno é baixo, como
o Raposo Shopping ou o Shopping União Osasco, oferecem estacionamento gratuito,
pois seus espaços são grandes e raramente lotam (se começarem a lotar sempre, a
cobrança não tardará). Mas um Iguatemi ou um Villa-Lobos têm que cobrar, caso
contrário não haveria vagas para todos (imaginem a multidão que as disputaria
se fossem gratuitas). O valor da terra lá é alto, e se uma área tem vagas de
carro ao invés de lojas e escritórios, ela tem que gerar um lucro maior do que
as outras opções.
Quer dizer então que, se o estacionamento fosse
gratuito (digamos, por lei) os shoppings não fariam estacionamento nenhum? Não
necessariamente, mas uma coisa é certa: sem a receita adicional conseguida no
estacionamento, a oferta de vagas seria menor, o que as tornaria ainda mais
escassas. O estacionamento é um serviço prestado pelo shopping. A vaga de carro
não caiu do céu e não é um "direito inato" de ninguém. Numa região urbanizada,
um lugar para parar o carro é um bem precioso. Se o shopping cobra por prover
esse importante serviço, o que há de errado nisso?
Bom, questões de justiça obviamente não importam muito
para o governo. Vamos para o terreno mais pragmático dos efeitos econômicos. O resultado
mais óbvio: vai ter mais gente feliz indo de carro fazer as compras de Natal nos
shoppings. Gente que não o faria se tivesse que pagar agora vai se animar,
porque o custo caiu. A demanda pelos estacionamentos de shopping deve aumentar,
especialmente em épocas de compras. Isso significa filas maiores e
estacionamentos mais lotados, o que, é claro, traz consigo custos
não-monetários: perda de tempo e estresse. A demanda pelos estacionamentos deve
subir até o ponto em que, na média, o aumento de estresse e de perda de tempo
se equiparem à economia da tarifa. Ou seja, para quem valoriza relativamente
mais o próprio tempo em relação ao dinheiro, a coisa vai piorar ("Droga, mais
filas!"); para quem valoriza relativamente mais o dinheiro, a situação melhora
("Oba, estacionamento grátis!"). Em suma, aumentará o número de vezes em que,
ao invés de entrar no shopping, seremos barrados na porta pela placa "lotado".
Isso para os consumidores. E para o shopping? Se nada
mais mudar, ele ficará menos lucrativo, pois a receita do estacionamento cairá.
Assim, podemos esperar uma diminuição do investimento nesse setor; menos
expansões, menos novos shoppings, até eventuais diminuições. Claro, eles
procurarão diferentes soluções para compensar essa perda de lucro. Nenhuma
delas, contudo, será capaz de eliminá-la totalmente, como explicarei no final.
Solução I: aumento da tarifa
A solução mais imediata é aumentar a tarifa do
estacionamento, o que diminuirá tanto a quantidade de vagas demandadas (menos
congestionamento) quanto o número de clientes que usará vaga de graça (pois a
gratuidade só vale para quem gasta, em compras, dez vezes o valor da tarifa).
Nesse caso, os clientes que, em média, gastam mais nas lojas pagarão menos
estacionamento, e os que gastam menos pagarão mais. Haverá uma transferência do
custo do estacionamento entre os clientes. Eu, que fui só para um almoço barato
e rápido, pagarei R$ 20,00 por 50 minutos de vaga, enquanto a madame que passou
o dia inteiro fazendo compras, ocupando uma vaga por 4 horas, sairá de graça;
isso sem falar em todos aqueles que, ao novo preço, deixarão de ir. Foi-se o
suposto benefício para "os consumidores": na medida em que uns ganham, outros
perdem.
Uma conseqüência dessa situação é que as pessoas
tentariam reduzir o número de idas ao shopping, fazendo várias compras numa
tacada só. As lojas onde, em média, se passa menos tempo e se gasta mais
dinheiro, ganham; aquelas onde se passa relativamente mais tempo e se gasta
menos dinheiro (afastando o cliente do estacionamento gratuito), perdem -
cinemas e lanchonetes estão, sem dúvida, nesse grupo. Um jantar tranqüilo na
lanchonete, que valia a pena quando o estacionamento custava R$ 6,00, será um
mau negócio com o estacionamento a R$ 20,00. Lojas de grandes compras
(eletrônicos, por exemplo) levarão a melhor. O comportamento dos consumidores
mudou para pior (na estimação deles, revelada por suas ações): irão menos vezes
ao shopping do que gostariam e evitarão passeios casuais, nos quais o consumo é
mais baixo; alguns desses simplesmente deixam de ir; a distribuição das lojas
será distorcida. Quem ganha? Os mais gastadores, que faturam em cima do preço
mais alto para os demais, embora os outros malefícios também recaiam sobre
eles.
Solução II: Diminuição da oferta de vagas
Outra resposta possível é a diminuição do número de
vagas. Obras de expansão do estacionamento (ou reforma na fiscalização, na
sinalização, na disposição das vagas), que sem a lei seriam lucrativas,
deixarão de sê-lo, e portanto não serão feitas. E já que o estacionamento gera
menos receita, por que não tirar alguns pedaços dele para construir novas
galerias de lojas? É um caso extremo, mas possível (resta ao shopping comparar
o aumento na receita advindo de um maior número de lojas com a diminuição na
receita de menos clientes circulando). Shoppings novos tenderão a fazer
estacionamentos menores, e locais com baixo valor de terreno (nos quais o estacionamento
já é bem barato ou até gratuito, e que portanto não sofrem muita interferência
da nova lei) se tornarão relativamente mais atrativos do que regiões centrais,
de valor alto. Encontrar vaga ficará mais difícil do que já é, e os novos
shoppings serão mais distantes. Novamente, clientes e shoppings saem perdendo.
Solução III: aumento dos aluguéis
Outra solução é aumentar o aluguel das lojas. Como os
clientes gastarão menos, em média, com o estacionamento, terão mais dinheiro
disponível para as compras, e como virão em maiores números, haverá mais gente
circulando pelas lojas, cujo lucro, portanto, deve aumentar (e os preços subir).
O aumento do lucro permite o aumento do aluguel (que por sua vez espreme
novamente o lucro, no eterno processo pelo qual todo lucro tende a se anular),
o que compensará parte da perda do shopping. Como já dissemos, nem todas as
lojas serão igualmente beneficiadas, mas principalmente aquelas em que, na
média, fica-se menos tempo e gasta-se mais dinheiro. Com o tempo, a distribuição
das lojas no shopping refletirá essa tendência. O resultado final, para o
consumidor, é negativo: sua mudança de comportamento em resposta à nova lei
tira a configuração de lojas do shopping do ponto que melhor atendia suas
necessidades. O custo das vagas é internalizado: os consumidores ainda o pagam,
só que agora por meio dos preços mais altos dos produtos que a economia do
estacionamento permite comprar.
É importante frisar que o aumento do aluguel só faz
sentido devido ao aumento do lucro das lojas (mais gente entrando no shopping e
com mais dinheiro no bolso). Não fosse por isso, não faria sentido aumentar o
aluguel, supondo que ele já estivesse no patamar ótimo. Claro, é possível que o
shopping, mesmo antes da lei, estivesse cobrando aluguéis muito baixos e
pudesse aumentá-los com impacto positivo em seu lucro. O mercado não é
perfeito, ninguém tem toda a informação; preços altos ou baixos demais ocorrem
a toda hora, e é isso que permite que alguns empreendedores lucrem. Mas esse
fato nada tem a ver com os efeitos da nova lei, que é o que estou analisando. Um
aumento de aluguéis que decorra especificamente da nova lei dever-se-á exclusivamente
ao aumento do lucro das lojas.
O Resultado Final
Em todos os casos, o lucro do shopping cai. A prova: se
fosse possível aumentar o lucro adotando essa política de estacionamento que a
lei cria, então por que os shoppings não a adotariam voluntariamente? Basta que
se mostre, na ponta do lápis, que é vantajoso dar vaga de graça para quem gasta
bastante que os shoppings adotarão a medida. Não é preciso lei. Ou por acaso
eles não querem lucrar?
Claro, dificilmente a mesma política de estacionamento
será a mais lucrativa para todos os shoppings; é por isso que a liberdade é tão
importante. Para alguns, o melhor negócio é dar estacionamento de graça; para
outros, é cobrar. O Villa-Lobos, por exemplo, dá estacionamento gratuito para
quem faz as compras em seu supermercado, e quem compra na Livraria Cultura
ganha desconto. Não é preciso lei nenhuma para transações mutuamente benéficas.
Os políticos por trás da nova lei combinam demagogia (o
desejo de aparecer bem ao povo sem ter que fazer nada, gastando do bolso dos
outros) com profunda ignorância econômica. Para eles, o funcionamento do
mercado é um produto da vontade dos governantes, que moldam a sociedade como
uma escultura de argila. Nem suspeitam que o processo de mercado obedece a
regras objetivas completamente alheias à vontade humana, e que as leis da
economia, tão reais quanto a gravidade, não se curvam aos seus desígnios. É
possível revoltar-se contra a gravidade, pular do prédio na esperança de voar,
mas conseqüências indesejadas virão. O mesmo vale para a economia.
O preço de cada serviço, inclusive do estacionamento de
um shopping, não é um número arbitrário; obedece à demanda dos consumidores,
refletindo a escassez relativa desse serviço comparado aos demais. O preço é
tanto um dado informativo acerca da escassez quanto um incentivo a supri-la.
Qualquer alteração vinda de fora apenas distorce e piora o funcionamento desse
processo (que, é claro, não é perfeito, mas é o único meio possível de se
coordenar a produção num mundo imperfeito). Recursos são desviados de fins mais
urgentes para fins menos urgentes, até desnecessários, em prejuízo tanto de
consumidores como de produtores. Aumentam a oferta de televisores quando o que
mais se precisa são vagas para estacionar.
Inicialmente, é bem possível que não sintamos o efeito dessa
lei, que apesar de maléfica é modesta em seu escopo; talvez um maior congestionamento
já neste fim de ano e tarifas aumentando aos poucos. No curto prazo, os fatores
relevantes (construir novos shoppings, expandir, reduzir, reformar, corrigir
aluguéis, aumentar preços) são fixos - não pega nada bem dobrar o preço do
estacionamento de um dia para outro. É no longo prazo, conforme o mercado se
ajusta às novas medidas, que o peso real dessa e outras intervenções vai sendo
sentido com mais intensidade, ainda que com menos clareza. A ida ao shopping se
tornará mais estressante e mais cara, e ninguém saberá bem porquê; algo similar
ao que ocorreu com os cinemas em conseqüência da lei de meia-entrada para
estudantes. Ambas impõem uma discriminação arbitrária de preços, prejudicando
os produtores e a maioria dos consumidores. O ganho de uns vem às custas da
perda dos demais; e as perdas sempre superam os ganhos. É esse o fruto amargo
das "boas" intenções de nossos governantes.
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Os três primeiros colocados do Concurso IMB foram:
1) A Ciência Econômica vai ao shopping mas não encontra vaga
2) O paradigma ético da liberdade em educação
3) Sobre o parasitismo estatal e outras derrotas