quinta-feira, 17 dez 2009
O
que você prefere: ter uma televisão LCD agora ou só daqui a cinco anos? Um laptop hoje ou só daqui a sete anos? Uma barra de ouro agora ou daqui a uma década? Caso você saiba dirigir e goste da liberdade
de viajar segundo seu próprio horário, você preferiria ter um carro hoje ou só
daqui a dez anos, e ficar andando de ônibus até lá?
Embora
as respostas para as perguntas acima pareçam muito óbvias, sua implicação para
toda a teoria econômica é incomparável.
Trata-se da manifestação de um princípio básico da ação humana: o homem
prefere o usufruto de um bem no presente ao usufruto desse mesmo bem no
futuro. Esse é conceito da preferência temporal.
É
esse fenômeno natural que explica por que os bens presentes possuem um valor
maior, um prêmio, em relação aos bens futuros - e é esse fenômeno que fornece a
origem e a justificativa para o pagamento de juros.
O
fenômeno da preferência temporal, que é observável em inúmeros aspectos da vida
humana, é na verdade uma simples questão de bom senso: o homem prefere uma dada
quantia de um bem no presente à mesma quantia desse bem no futuro. Mais ainda: somente uma maior quantia desse
bem no futuro pode persuadir o homem a abrir mão desse bem no presente.
Afinal,
as pessoas não tratam uma dada quantia de um bem no presente e a mesma quantia
desse mesmo bem daqui a alguns anos como sendo o mesmo bem. Por exemplo, mesmo que não houvesse inflação,
as pessoas não consideram 100 reais hoje e 100 reais daqui a dez anos como
sendo o mesmo bem. Do ponto de vista
econômico, são dois bens diferentes.
Qualquer
um que se recuse a reconhecer o fenômeno da preferência temporal está
absolutamente incapacitado para entender fenômenos econômicos básicos. Por exemplo, uma indústria pode aumentar sua
produtividade e a qualidade de seus produtos caso ela adote um processo de
produção mais longo, mais metódico e, consequentemente, mais demorado. Se a preferência temporal não existisse,
todas as indústrias poderiam optar por esse procedimento, preferindo o processo
de produção que gerasse a maior quantidade de produtos sem se preocupar com
quanto tempo isso iria levar. O fato de
as indústrias nem sempre procederem assim é um exemplo da preferência temporal
em ação. Como explicou Mises, é a
preferência temporal que
"explica por que métodos de
produção menos demorados são escolhidos, não obstante o fato de que métodos
mais demorados gerariam um maior produto por unidade de insumo".
Outro
exemplo prático da preferência temporal em ação, e do qual poucas pessoas se
dão conta, é o preço de um pedaço de terra.
Se a preferência temporal não existisse, o preço de qualquer pedaço de
terra produtivo seria infinito. Por
quê? Porque se não levássemos em conta a
existência da preferência temporal, esse pedaço de terra teria de ter hoje o
mesmo valor que teria no futuro, após ter produzido várias colheitas. Assim, o preço da terra hoje teria de ser
igual à soma de toda a sua produção durante todo o período futuro até o fim dos
tempos. Assim, se fosse estimado que um
determinado pedaço de terra pode gerar uma produção de 100.000 reais por ano,
alguém que fosse comprar essa terra teria de pagar um valor equivalente a 100.000
multiplicado pelo tanto de anos que ele estimasse que faltaria para o mundo
acabar a partir do momento da sua compra.
O fato de ninguém precificar as coisas dessa forma indica a existência
de preferência temporal.
Aplicações
Tendo
entendido a inevitabilidade da preferência temporal, o fenômeno dos juros fica
mais claro. Como um bem futuro tem menos
valor pra você do que esse mesmo bem no presente, você só irá aceitar abrir mão
desse bem no presente caso lhe seja prometida uma quantia maior desse mesmo bem
no futuro.
Por
exemplo, suponha que você é o único habitante de uma pequena cidade a ter um
laptop, o qual você usa diariamente. Eis
que surge um empreendedor local e lhe pede emprestado esse laptop por, digamos,
três anos, para que ele possa utilizá-lo como capital para fazer algum
investimento. Você só vai aceitar abrir
mão do seu laptop por três anos caso esse empreendedor lhe prometa pagar, após
esse período de três anos, um valor que seja maior do que o valor presente do
seu laptop. O mais natural é que você
exija, além da devolução do laptop, o pagamento de um valor adicional (se ele
vai pagar em dinheiro ou qualquer outro bem que você queira é o de menos). O fato é que você quer ser recompensado por
ter de abrir mão do seu laptop no presente.
Agora,
suponha que você tenha dois laptops e esse empreendedor lhe peça emprestado
apenas um. Nesse cenário, é provável que
a recompensa que você cobre por esse empréstimo seja menor que no primeiro caso
- afinal, você tem um laptop sobressalente, e não vai ficar de todo desprovido
de seu capital. Ou seja, como havia uma
maior abundância de capital (laptop) a ser emprestado, o preço cobrado pelo
empréstimo de uma unidade foi menor. O
custo de se abrir mão dessa segunda unidade é menor do que no primeiro caso. Consequentemente, quanto maior for seu
capital disponível para ser emprestado, menor o valor que você exigirá por
abrir mão de cada unidade.
Expandindo
esse exemplo para a economia de toda a cidade, fica mais fácil perceber como a
preferência temporal coordena os juros e como isso se reflete no processo de
crescimento econômico. Por exemplo,
imagine que os habitantes da cidade são indivíduos poupadores - isto é, são
indivíduos que consomem muito pouco. O
fato de eles consumirem pouco significa que eles estão mais voltados para o
futuro. Logo, a preferência temporal
deles é menor. Eles não são tão ávidos
para desfrutar bens no presente. Estão
dispostos a algum sacrifício (poupança sempre é sacrifício) para adiar o
usufruto desses bens.
Justamente
por consumirem pouco, por terem uma preferência temporal baixa, eles permitem
que haja mais bens disponíveis para ser emprestados e aplicados em processos de
investimento. Uma preferência temporal
baixa gera uma maior abundância de bens livres para ser emprestados.
Assim,
suponhamos que uma grande empresa dessa cidade queira iniciar um grande
empreendimento - por exemplo, a construção de um shopping. Para fazer esse investimento, a empresa vai
precisar de uma grande disponibilidade de capital: desde cimento, argamassa e
tijolo até tratores, escavadeiras, caminhões, maquinário pesado etc. Quanto maior for a poupança das pessoas desta
cidade, isto é, quanto menos elas tiverem consumido, maior será a
disponibilidade desses elementos (afinal, aquilo que não é consumido é poupado). E quanto maior essa disponibilidade, menor o
preço cobrado pelo uso de cada unidade deles.
Logo, a baixa preferência temporal das pessoas dessa cidade gerou uma
maior poupança - isto é, mais capital disponível para empréstimo -, o que fez
com que fossem menores os juros exigidos por cada unidade de capital.
Nesse
cenário - observe que ainda não estamos lidando com dinheiro - a poupança
disponível é genuína. A empresa que vai
fazer o empreendimento sabe com antecedência qual a real quantidade de capital
disponível para ela utilizar em sua obra, bem como quanto terá de pagar pelo
uso desse capital. O cenário observado é
o cenário real; não houve manipulações.
A quantidade de capital disponível (poupado) é aquela realmente
observada. Assim, a empresa estará apta
a calcular corretamente quanto capital está disponível para ser usado e quanto
irá gastar para adquiri-lo. Caso esteja
dentro do orçamento, a obra será empreendida sem sustos e, ao ser finalizada,
haverá consumidores aptos para consumir os bens gerados por ela, pois pouparam
para isso.
Agora
imagine que essa cidade, contrariamente ao exemplo anterior, seja povoada por
pessoas com alta preferência temporal - ou seja, voltadas para o presente. São pessoas consumistas, avessas à poupança. Querem o máximo possível para hoje. Nesse caso, o capital disponível foi quase
todo exaurido (quase todos os tijolos e cimentos já foram usados, os tratores e
as escavadeiras estão gastos, os caminhões estão dilapidados, há poucos laptops
disponíveis para rodar os programas de cálculo estrutural etc.). É óbvio que, nesse cenário, não há capital
disponível para sustentar um investimento vultoso como a construção de um
shopping. A empresa que fosse fazer tal
empreendimento rapidamente seria demovida da ideia ao ver a escassez de capital
disponível. Essa escassez de capital -
consequência natural da alta preferência temporal das pessoas - se traduziria
em um alto preço (juros) cobrado pelo uso do pouco capital que ainda resta,
pois a empresa estaria disputando o uso desse escasso capital com os moradores
consumistas, que cobram um preço muito alto para deixar de usá-los.
Em
ambos os casos, a introdução do dinheiro em nada muda o raciocínio. O fato de as pessoas terem baixa preferência
temporal, como no primeiro caso, se traduz em mais dinheiro disponível para
empréstimo. O fato de haver mais
dinheiro disponível para empréstimo é consequência de ter havido pouco
consumo. Logo, há uma relação direta
entre a quantidade de dinheiro poupada (disponível para empréstimos) e
quantidade de bens disponíveis no mercado.
Portanto, nesse caso, a empresa que quer construir o shopping não
precisa ir a campo para pesquisar qual a real disponibilidade de bens capital
(ferramentas) para sua obra - tudo o que ela precisa fazer é ver qual a taxa de
juros monetários cobrada para empréstimos.
Essa taxa de juros será um retrato fiel da real disponibilidade de
poupança (bens de capital).
O
mesmo é válido para o segundo caso. A
alta preferência temporal das pessoas resulta em mais consumo e menos dinheiro
disponível na poupança, o que consequentemente significa menos bens de capital
disponíveis para serem utilizados em investimentos. Por haver menos dinheiro na poupança, os
juros cobrados para empréstimos serão altos, sinalizando a inviabilidade do
investimento.
Ambos
os cenários relatados acima mostram como os juros funcionariam num ambiente de
genuíno livre mercado, onde não há manipulações monetárias, não há criação de
dinheiro e não há manipulação de juros por parte de alguma autoridade
governamental. Os juros monetários vigentes
na economia representariam fielmente a real disponibilidade de bens de capital
que podem ser utilizados em investimentos.
Da mesma forma, os juros também sinalizariam o poder de consumo da população:
uma baixa taxa de juros estaria indicando que as pessoas têm dinheiro poupado
e, consequentemente, poderão consumir mais no futuro (o que tornam viáveis
investimentos de longo prazo). Uma alta
taxa de juros estaria indicando que as pessoas não têm dinheiro poupado e,
consequentemente, não poderão consumir muito no futuro (o que inviabilizaria os
investimentos de longo prazo. Afinal,
quem iria consumi-los?).
Assim,
em um livre mercado, a taxa de juros - que é formada pela preferência temporal
das pessoas - coordena automaticamente a alocação de recursos na economia. Não haveria como haver investimentos errôneos
simplesmente porque estes seriam caros demais para ser iniciados. Um investimento de longo prazo só seria
empreendido se os juros vigentes indicassem haver uma possibilidade de lucros
futuros.
Como
explicou Rothbard,
"Em um mercado livre e
desimpedido, a taxa de juros é determinada puramente pelas preferências
temporais de todos os indivíduos que compõem a economia de mercado.
A essência de um contrato de empréstimo é que um "bem presente"
(dinheiro que pode ser usado no momento) está sendo trocado por um "bem
futuro" (um título de dívida que só poderá ser utilizado em um dado momento
futuro). Como as pessoas sempre preferem ter o dinheiro agora ao invés da
perspectiva de receber a mesma quantia em algum momento futuro, o bem presente
sempre exige um prêmio no mercado em relação ao bem futuro. Este prêmio é
a taxa de juros, e seu valor irá variar de acordo com o grau em que as pessoas
preferem o presente em relação ao futuro, ou seja, o grau de suas preferências
temporais."
Como atrapalhar tudo
Insatisfeitos
com a baixa taxa de poupança da população do segundo exemplo, os políticos
locais criam uma entidade poderosa o suficiente para fazer parecer com que haja
mais capital disponível para o empreendimento do que realmente há.
Essa
entidade, que vamos chamar aqui de banco central, é dotada do monopólio da
criação de moeda, sendo que ela pode alterar toda quantidade de dinheiro da
economia a bel-prazer.
Assim,
para evitar que a empresa que quer construir o shopping desista da ideia por
causa da escassez de poupança (e dos juros altos, que é a consequência natural),
o banco central imprime dinheiro e o injeta no sistema bancário. Essa maior oferta de dinheiro irá fazer com
que o preço dele (os juros) caia.
Consequentemente,
animada com essa queda nos juros, a empresa agora passa a achar que vale a pena
fazer a construção do shopping - afinal, o investimento ficou barato e
certamente trará lucros futuros. As
obras começam.
Mas
há aí um severo desequilíbrio econômico: a preferência temporal dos habitantes
continua alta e eles continuam consumindo muito no presente - logo, há menos
bens de capital do que os juros fazem supor e, de quebra, a empresa terá de
disputar com a população consumista esses bens de capital.
No
início do processo, a sensação é de prosperidade. A empresa está contratando, empregando gente,
pagando salários e consumido bens de capital.
Os fornecedores ficam animados, pois veem um aumento das encomendas e de
sua renda. O crescimento econômico
parece sustentável.
Com
o passar do tempo, os desequilíbrios vão ficando evidentes. A escassez de bens de capital começa a ficar
aparente. Os preços deles sobem. Essa subida de preços faz com que a empresa
tenha de obter mais empréstimos para continuar adquirindo esses bens de capital. Com isso, os juros sobre os empréstimos sobem. O empreendimento vai ficando cada vez mais
inesperadamente caro. Os bens de capital
estão cada vez mais escassos. A espiral
escassez de bens/aumento dos juros vai se tornando mais intensa. Até que a empresa desiste e interrompe o
investimento. Os trabalhadores são
demitidos e os fornecedores são dispensados.
A aparente prosperidade econômica revelou-se insustentável. Capital e mão-de-obra foram desviados para um
investimento que não deveria estar ocorrendo.
O aumento do desemprego é inevitável.
Instala-se a recessão, que é o período de se corrigir esse
desequilíbrio.
A
fonte do problema é que a empresa iniciou um investimento voltado para o longo
prazo na crença de que havia capital suficiente para finalizá-lo. Os juros artificialmente baixos levaram-na a
crer que havia poupança disponível tanto para financiar as obras quanto para permitir
que os consumidores futuramente pudessem consumir o produto final. Mas não havia nem uma coisa nem outra.
Tudo
que havia era mais papel-moeda na economia.
Mas aumentar o dinheiro na economia não faz com que surjam mais bens de
capital para se fazer os investimentos.
O aumento do volume de dinheiro apenas faz com que os juros monetários
caiam sem que tenha havido um simultâneo aumento na poupança. O desequilíbrio econômico passa a ser inevitável.
Não
tivesse havido essa manipulação monetária, não teria por que se iniciar tal
investimento.
Finalizando
Como
vimos, os juros são fenômenos naturalmente oriundos da preferência temporal dos
indivíduos. Em um genuíno livre mercado,
os juros sinalizam a quantidade de poupança genuinamente disponível. Por 'poupança' entenda a quantidade de bens
que não foram consumidos e que, portanto, estão disponíveis para serem
utilizados em investimentos. Mesmo em
uma economia monetária os juros continuam sendo oriundos da preferência
temporal das pessoas. Quanto maior a
poupança, maior a disponibilidade de bens e menor os juros monetários. A quantidade de dinheiro poupada passa a ser
um reflexo da abundância de bens. A
existência do dinheiro facilita em muito a questão da contabilidade - ao invés
de ir a campo pesquisar quantos bens existem no mercado, basta olhar a taxa de
juros vigente.
Quando
uma entidade como o banco central é criada, os juros passam a ser
manipulados. Não há mais um livre
mercado na oferta de poupança e os juros monetários não mais são determinados
pela preferência temporal das pessoas. A
manipulação dos juros por um banco central nada mais é do que um controle de
preços, gerando escassez de capital da mesma forma que o controle do preço do
arroz faz com que esse produto suma das prateleiras. Os ciclos econômicos tornam-se recorrentes.
Por
fim, apenas uma consideração técnica adicional: no nosso atual arranjo
econômico, no qual transacionamos com dinheiro e há incertezas futuras, embora a
preferência temporal sozinha não determine os juros de mercado (juros de
mercado são os juros bancários e não a taxa SELIC), ela é um
ponto de partida. Segundo Hayek, a
preferência temporal determina o quanto as pessoas irão poupar, mas não
determina a taxa de juros de mercado.
Além da preferência temporal, coisas como produtividade marginal, risco,
oferta monetária, demanda por dinheiro, demanda por empréstimos etc., todas
elas têm um papel determinante na formação dos juros de mercado.
Mas
se a taxa básica da economia, que é a taxa SELIC, é manipulada pelo banco
central, as chances de as taxas de juros de mercado refletirem adequadamente a
disponibilidade de capital é praticamente nula.
Daí a recorrência dos ciclos econômicos.
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Para
ver uma ilustração animada de todo esse processo, assista a essa insubstituível
apresentação de PowerPoint
(em português).