segunda-feira, 24 0aio 2010
Um espectro assombra o mundo, e especialmente a Europa: o espectro de uma
insolvência soberana. A grave crise da
dívida soberana é, em grande medida, resultado de intervenções governamentais
feitas em resposta à crise financeira.
Como a teoria austríaca dos ciclos econômicos explica, a expansão do crédito
por meio do sistema bancário de reservas fracionárias provocou um crescimento econômico
insustentável. A taxas de juros
artificialmente baixas, novos projetos de investimentos foram empreendidos sem
que tivesse havido um correspondente aumento na poupança. Esses investimentos foram pagos simplesmente
pela criação artificial de crédito.
Muitos desses empreendimentos constituíam investimentos errôneos que
teriam de ser liquidados, cedo ou tarde.
No atual ciclo, esses investimentos errôneos ocorreram principalmente
nos ultradimensionados setores automotivo, imobiliário e financeiro.
A liquidação desses maus investimentos é benéfica no sentido de que ela
promove uma limpa nos projetos ineficientes e realinha a estrutura da produção
de modo que esta agora passe a atender às reais preferências dos
consumidores. Os fatores de produção que
foram inadequadamente utilizados nesses maus investimentos são liberados e
transferidos para aqueles projetos que os consumidores querem que sejam mais
urgentemente realizados.
Soluções
para a crise: caminhos divergentes
Na atual recessão, a liquidação dos investimentos errôneos — preços
imobiliários em queda e empréstimos ruins — gerou problemas no sistema
bancário. Calotes e prejuízos nos
investimentos passaram a ameaçar a solvência dos bancos. Esses problemas de solvência desencadearam uma
crise de liquidez na qual os bancos com problemas de maturação de suas dívidas
passaram a ter dificuldades para rolar suas dívidas de curto prazo.
Na época, havia alternativas disponíveis para lidar com o problema da
solvência e recapitalizar o sistema bancário.
Investidores privados poderiam ter injetado capital nos bancos que eles considerassem
viáveis no longo prazo. Ademais,
credores poderiam ter se transformado em acionistas, desta forma reduzindo o
endividamento dos bancos, reforçando seu capital. Instituições financeiras inviáveis — para as
quais não houvesse um número suficiente de capital privado ou de credores
transformados em acionistas — teriam sido liquidadas.
Entretanto, essas soluções de livre mercado para os problemas das solvências
bancárias foram deixadas de lado e, em seu lugar, outra opção foi escolhida. Governos de todo o mundo saíram injetando
dinheiro nos bancos ao mesmo tempo em que garantiam os passivos do sistema
bancário. Já que impostos são bastante
impopulares, essas injeções governamentais foram financiadas pelo aumento da
dívida pública, algo menos impopular e cujas consequências aparecem apenas mais
tarde. Em outras palavras, os
investimentos errôneos induzidos pelo inflacionário sistema bancário
encontraram nos governos um patrocinador supremo, cujo método de financiamento
consistia em inchar as dívidas públicas.
Há outras razões para que as dívidas públicas tenham aumentado
dramaticamente. Os governos incorreram
em medidas adicionais para lutar contra o saudável processo de depuração que o
livre mercado faria contra os investimentos errôneos — medidas essas que
serviram apenas para postergar a recuperação.
Além do setor financeiro, outros setores ultradimensionados receberam
injeções diretas de capital ou se beneficiaram com subsídios do governo.
Dois principais exemplos de recebedores de subsídios são o setor automotivo
dos EUA (por exemplo, o infame programa "Dinheiro por Sucata") e o
setor da construção civil na
Espanha. Tais subsídios postergaram
ainda mais a reestruturação dessas economias.
A livre mobilidade dos fatores de produção foi obstruída por programas
de obras públicas que serviram apenas para absorver recursos escassos que eram
necessitados mias urgentemente em outras indústrias. Subsídios mais generosos para os
desempregados aumentaram o déficit ao mesmo tempo em que reduziram os incentivos
de essas pessoas procurarem emprego fora dessas indústrias
sobredimensionadas. Outro fator que
ajudou a aumentar os déficits foi a queda nas receitas tributárias causada pelo
aumento do desemprego e pela queda dos lucros.
Portanto, as intervenções governamentais não apenas postergaram a
recuperação econômica, como também fizeram isso à custa do aumento dos déficits
públicos — aumentos esses que estão avolumando os já enormes níveis da dívida
pública. Essa grande dívida pública pré-existente
é o produto dos gastos governamentais voltados para o esforço de guerra
(Afeganistão e Iraque) e para o insustentável assistencialismo estatal. Como esses sistemas de pensão criam passivos
para os quais simplesmente não há fundos — obstáculos insuperáveis para os
modernos estados de bem-estar social —, de certa forma a atual crise, com seu
dramático aumento nas dívidas governamentais, representa um passo adiante rumo
ao inevitável colapso do estado de bem-estar social.
A situação na Europa
Na Europa há uma peculiaridade adicional para o problema da dívida. Na criação do euro, as nações membros fizeram
um acordo implícito de que nenhuma delas deixaria o euro após se juntar a
ele. Se as coisas ficassem ruins, uma
nação poderia ser socorrida pelo resto da União Monetária Europeia (UME). Com essa garantia de socorro implícita, um
severo problema de dívida soberana acabou sendo pré-programado.
Esse suposto apoio dado por nações fiscalmente mais robustas reduziu
artificialmente as taxas de juros sobre os títulos das dívidas das nações
fiscalmente irresponsáveis. Acesso ao
crédito barato permitiu que países como a Grécia mantivessem um setor público
agigantado e ignorassem os problemas estruturais gerados por salários
artificialmente altos (pouco competitivos).
Em última instância, quaisquer déficits poderiam ser financiados pela
criação de dinheiro pelo Banco Central Europeu (BCE), externalizando os custos
sobre os outros membros da UME.
Do ponto de vista de um político, os incentivos em tal sistema são
explosivos: se eu, como um político em campanha, prometesse bondades para meus
eleitores a fim de ganhar a eleição, poderia externalizar os custos dessas
promessas, jogando-os todos sobre os outros países membros da UME por meio da
inflação monetária — e os pagadores de impostos futuros é que terão de arcar
com a dívida. Mesmo que o governo venha
a precisar de um socorro (o pior cenário possível), isso acontecerá somente num
distante futuro pós-eleitoral.
Ademais, quando a crise estourar, eu poderei convencer os eleitores de que
ela não foi causada por mim; ela se abateu sobre o país como um desastre
natural — ou que (ainda melhor) ela foi causada por especuladores
malvados. Embora medidas de austeridade impostas
pela UME ou pelo FMI possam surgir no futuro, a próxima eleição está bem mais
próxima. Em tal situação, a típica miopia
dos políticos de uma democracia combina-se com a capacidade de externalizar
sobre outras nações os custos dos déficits, produzindo uma explosiva inflação
causada pelo endividamento.[1]
Devido a esses incentivos, alguns países europeus já estavam bastante
adiantados em seu processo de insolvência quando estourou a crise financeira e
os déficits explodiram. Os mercados
tornaram-se descrentes de várias promessas governamentais. O recente episódio grego é um exemplo óbvio
dessa desconfiança do mercado. Como os
políticos querem salvar o euro a qualquer custo, as garantias de socorro
tornaram-se explícitas. A Grécia
receberá empréstimos da UME e do FMI, totalizando um valor estimado de 110 bilhões de euros ao longo dos próximos três anos. Além
disso, mesmo com os títulos do governo grego sendo classificados como lixo, o
BCE continua
aceitando-os em sua política monetária, passando inclusive a comprá-los
diretamente do governo grego.
Existe também o perigo de contágio da Grécia para aqueles outros países —
como Portugal, Espanha, Itália e Irlanda — que também possuem déficits e
dívidas altos. Alguns destes sofrem com
alto desemprego e mercado de trabalho inflexível. Um contágio desses países poderia desencadear
sua insolvência — e o fim do euro. A
UME reagiu a essa possibilidade e entrou "com tudo", prometendo, em conjunto
com o FMI, um pacote adicional de 750 bilhões de euros para os países membros em
apuros, a fim de estancar a ameaça de contágio.
Por que os governos não podem conter
a crise
Esse socorro de 110 bilhões à Grécia, em conjunto com os 750 bilhões de euros adicionais que foram prometidos, podem impedir essa crise da dívida
soberana? Ou o ponto sem retorno já foi
cruzado? Há vários motivos que explicam
por que as soluções políticas podem ser incapazes de impedir a difusão dessa
crise de dívida soberana.
1. Os 110 bilhões dados à Grécia
podem, por si sós, não ser suficientes. O
que vai acontecer se daqui a três anos a Grécia não tiver conseguido reduzir
seus déficits suficientemente? A Grécia
não parece estar no rumo de se tornar autossuficiente em apenas três anos: ela
está, paradoxalmente, fazendo pouco e muito para atingir esse intento. Ela está fazendo muito no que tange aos
impostos, aumentando a carga tributária e, com isso, prejudicando o setor
privado. Ao mesmo tempo, a Grécia está
fazendo pouco no que tange aos gastos, não reduzindo suficientemente as
despesas do governo. Ademais, as greves
estão paralisando a economia e as demonstrações violentas estão colocando em
risco as medidas de austeridade.
2. Ao se gastar dinheiro para
socorrer o governo grego, menos fundos ficam disponíveis para socorrer
outros países. Aumenta-se o risco de não
haver dinheiro suficiente para socorrer o governo de outros países (tais como
Portugal) caso uma ajuda se faça necessária.
Consequentemente, as taxas de juros cobradas sobre os títulos desses
países — que agora se revelaram ainda mais arriscados — subiram. Embora o pacote adicional de 750 bilhões
tenha sido criado em resposta a esse risco, a iminente ameaça de contágio foi
interrompida a um custo: um maior endividamento dos membros mais fortes da UME,
o que significa que o problema da dívida soberana foi agravado ainda mais.
3. No final, sempre haverá alguém
que terá de pagar por esse empréstimo de 5% feito pela UME à Grécia. (Com efeito, os EUA [e o Brasil] estão pagando uma parte dessa soma indiretamente, por
meio de sua participação no FMI). À
medida que as dívidas dos outros membros da UME aumentam, eles terão de pagar
juros maiores sobre seus títulos.
Portugal já está pagando mais por sua dívida, e teria prejuízo caso
emprestasse dinheiro a 5% para a Grécia.[2] Dado que tanto a dívida total quanto os juros
cobrados de Portugal estão subindo, é provável que logo, logo o país não mais
consiga refinanciar sua dívida. Por
conseguinte, se Portugal tiver então de ser socorrido pelo resto da UME, as
dívidas e os juros cobrados de outros países subirão ainda mais. Isso poderá derrubar o próximo país mais
fraco da lista, o qual por sua vez também necessitaria de um socorro, e assim
por diante, em um efeito dominó.
4. O socorro à Grécia (e a
promessa de apoio a outros países-membros problemáticos) reduziu os incentivos
para se controlar os déficits. O resto
dos países da UME pode muito bem pensar que eles, assim como a Grécia, também têm
direito ao auxílio da UME. Por exemplo,
dado que as taxas de juros podem se estabilizar após uma rodada de socorros, a
pressão sobre o governo espanhol para que este reduza seu déficit e flexibilize
suas leis trabalhistas será artificialmente removida — uma vez que estas medidas, embora necessárias, são extremamente impopulares entre os eleitores.
Os problemas da dívida soberana, portanto, podem ter atingido um ponto além
de qualquer solução — a menos que haja calote ou altas taxas de inflação. É provável que, com o socorro à Grécia, a
Europa já tenha ultrapassado esse ponto sem retorno.
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Notas
[1] Para entender o horizonte temporal de políticos em
uma democracia, ver Hans-Hermann Hoppe, Democracia: O Deus que
Falhou (Transaction Publishers, 2001).
[2] Sendo assim, ainda
não está claro
se os países que estão pagando taxas de juros maiores que 5% irão participar.