Motivos médicos têm me mantido um tempo nos EUA.
Nessa temporada, tive a oportunidade dúbia
de frequentar muitas farmácias, e posso dizer que a experiência americana nesse
quesito é muito diferente da brasileira. Querem saber em qual dos dois países as
farmácias são melhores? Aposto que não,
né? Mas mesmo assim acompanhem comigo
esta disputa que, embora menos emocionante que a Copa, guarda uma lição.
Comecei a pensar no assunto farmácia ainda em
São Paulo, quando tive que comprar lentes de contato e não as encontrei. Na segunda tentativa frustrada, perguntei à
atendente da farmácia se alguma outra próxima teria (tenho memória recente de
comprá-las). A resposta? Farmácias estão proibidas de vender lente e
óculos. Interessante. Lá fui eu para uma ótica. Imagino que ter uma visão boa seja algo
perigosíssimo ao indivíduo e à sociedade, e por isso as autoridades tenham
decidido dificultar nosso acesso a ela. Agora,
cada idoso pobre com vista cansada tem que marcar consulta com oftalmologista e
apresentar receita médica para comprar óculos. Os consumidores já podiam, antes, consultar um
médico e pegar a receita. Quem achava
que isso tomava muito tempo e dinheiro e que o benefício dos óculos um pouco
mais precisos não valia à pena podia comprá-los direto. Não mais.
A lente de contato é um pequeno passo na crescente
restrição ao que as farmácias podem vender. Lembro de uma matéria do Jornal Nacional uns
anos atrás sobre outros produtos cuja venda seria proibida (já não lembro quais)
em que perguntavam a um comprador numa farmácia se ele aprovava a nova lei. Sim, claro, aprovava. Ironicamente, na cesta desse consumidor
consciente estavam vários produtos que a lei proibiria. Para vocês verem como pesquisas de opinião e voto
nas urnas refletem fielmente as preferências reais da população... O resultado
é que hoje em dia nossas farmácias só vendem remédios, cosméticos e algumas
coisas de banheiro. Em breve alguém vai
perceber que shampoo é bem diferente de remédio, vai achar "irracional" juntar os
dois produtos numa mesma loja e vai querer que a lei separe o que o bem-estar
dos consumidores uniu.
Devem existir motivos muito bons para proibir
as farmácias de vender produtos em geral, fazendo com que os cidadãos percam
tempo à toa indo a várias lojas diferentes. Será? Vejam a
justificativa dada pelo presidente da ANVISA, Dirceu Raposo de Mello
(ADVERTÊNCIA: o pensamento de quem trabalha com o Ministério da Saúde pode ser
prejudicial à sua saúde mental): "A farmácia é um estabelecimento diferenciado,
não se pode banalizar esse ambiente com produtos que não têm relação com seu
objetivo". Precisa criticar?
Pensemos em algo mais agradável do que a ANVISA,
o que não é difícil. Vamos aos EUA! Lá, as farmácias vendem de tudo: remédios,
eletrônicos, utensílios domésticos, brinquedos, livros, comida e mais, muito
mais. Procuro um pouco e ali estão:
óculos de até 3,5 graus por 15 dólares livremente expostos (é, a saúde
americana ainda não chegou ao nível invejável da brasileira, embora avanços
importantes estejam sendo feitos nesse campo). Enquanto espero meu remédio ficar pronto (mais
sobre isso abaixo), compro guloseimas. Não
tenho a menor dúvida: farmácia banalizada é muito melhor.
O outro
lado da pílula
Talvez você esteja pensando algo nessas linhas:
"canalha liberal vendido ao capitalismo ianque!" Se for o caso, acalme-se. Na competição pela melhor farmácia ainda sobra
um quesito no qual poderemos resgatar a honra brasileira. Notem que até agora eu falei de tudo, menos de
remédio.
A farmácia americana goza de muita liberdade exceto quando o assunto é remédio; aí
ela é o sonho de qualquer burocrata. Registrem
bem: para comprar qualquer remédio de receita, é preciso dar a receita (que é
nominal, numerada e tem um papel especial com várias marcas para não ser
falsificada) ao farmacêutico, apresentar documento de identidade e dar endereço
e telefone; daí o farmacêutico registra tudo no computador, faz algumas
ligações e depois coloca a quantidade exata de remédio que a receita prescreve
num potinho.
Da primeira vez, o atendente me disse que
estaria pronto em vinte minutos. Fiquei pasmo; vinte minutos? No Brasil a venda é instantânea (fora para
remédios tarja preta — nos EUA é assim para quase todos): o atendente olha o
seu papel e te dá a caixa. Uma lei nova
que proíbe que o próprio consumidor pegue o remédio atrapalha um pouco as
coisas, mas o serviço ainda é rápido. Bom,
como dito, usei o tempo de espera para comprar sorvete, Coca-Cola e outros
remédios da alma. O que eu nem
suspeitava era que aquele fosse um dia de sorte; o normal é que o remédio
demore uma hora para "ficar pronto". Perguntei
a um farmacêutico que conheci por aqui e ele me contou que a demora deve-se à
checagem da receita e à negociação com as seguradoras. Falha de mercado? Mais para falha de governo: o mercado de
seguros americano é dos mais regulamentados do mundo, e as seguradoras são
obrigadas a dar muito remédio de graça sem aumentar o preço da mensalidade;
naturalmente, lutam com unhas e dentes para não dar um centavo além do exigido
por lei. O resultado é que os pedidos
vão se acumulando e forma-se uma fila imensa. Esse farmacêutico lamenta que ele não tenha
mais tempo de ajudar nenhum cliente, conversando e tirando dúvidas sobre
sintomas. Todo ele é consumido por
tarefas burocráticas.
Se o sistema brasileiro já é desnecessariamente
complicado, o americano é uma piada de mau gosto. Contei a um atendente aqui nos EUA como funciona
a venda de remédios no Brasil. "É, aqui era assim também. Mas tinha muita
receita falsa." Não tive a presença de espírito de retrucar um "E daí?". No Brasil também tem muita receita falsa. E daí? Se
receita não fosse obrigatória, o número de receitas falsas cairia muito, pode
apostar. E elas cumpririam sua função
legítima: informar ao paciente e ao atendente da farmácia qual o remédio e a
dosagem prescritas pelo médico; não servir de controle legal de quem pode ou
não ingerir uma substância.
Mas, você me dirá, e os perigos de se tomar um
remédio errado e morrer? Será que vale a
pena encarecer (em tempo e dinheiro) toda a nossa relação com a saúde porque
algumas pessoas são temerárias o bastante para tomar remédios perigosos sem ter
a menor idéia se ele é ou não indicado a seu caso? Ironicamente, muita gente que defende a saúde
regulamentada admite que descumpre a lei corriqueiramente, por exemplo pedindo
indicação de remédio ao farmacêutico (ou mesmo à mãe), o que é ilegal (talvez
isso mude parcialmente; notem o medo dos médicos de perderem sua reserva de
mercado).
Perto do FDA, órgão do governo americano que
decide que substâncias podem ser vendidas e quais devem ser controladas, a
ANVISA é benigna e liberal. O FDA já
quer, por exemplo, limitar legalmente a
quantidade de sal em todos os alimentos. Muitas grandes empresas já se adequaram
voluntariamente. Para elas é uma boa: via
de regra, qualquer nova regulamentação será mais facilmente colocada em prática
por uma grande empresa (para a qual o gasto extra é relativamente pequeno) do
que por uma pequena, para quem o novo gasto pode comprometer a existência do
negócio. Depois não venham reclamar de
monopólios e cartéis...
Estou me estendendo; hora de anunciar o
vencedor. Quem ganha na comparação de
farmácias; Brasil ou Estados Unidos? And the winner is... o mercado. EUA e Brasil têm prós e contras diferentes; mas
nas farmácias de ambos os prós devem-se à liberdade das pessoas de transacionar
voluntariamente para melhorar suas vidas, e os contras às ações dos governos
que decidem melhorar a situação.
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Leia também:
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saúde de El Salvador
Quatro medidas para melhorar
o sistema de saúde