segunda-feira, 4 abr 2011
A
violência — uso da força física — é um fato recorrente no nosso dia-a-dia.
Causa-nos indignação quando criminosos agridem inocentes. Contudo, sabemos
também que a violência é necessária às vezes justamente para impedir que esses
criminosos façam o que bem entender. Então,
nossa intuição nos diz que a violência tem um uso maléfico e outro benéfico. Mas qual a medida que podemos usar para
aplicar em cada caso?
A
filosofia individualista nos diz que somos donos dos nossos próprios corpos,
assim ninguém possui o direito de escravizar as pessoas. Ou seja, temos a propriedade inalienável do nosso corpo. Quando nos apropriamos de recursos sem dono,
dando algum uso a eles, estamos apenas estendendo nossa propriedade sobre o
nosso corpo para objetos físicos. Se a
pessoa A encontra uma terra sem dono e começa a usá-la de alguma forma, ela
torna-se sua. Caso uma pessoa B se
interesse pela terra da pessoa A, ela tem formas legítimas de adquiri-la. Primeiro, ela pode oferecer algo em troca,
como, por exemplo, uma quantia em dinheiro. Segundo,
ela pode simplesmente pedir a terra, e se a pessoa A resolver doá-la, não há
nada de errado. Em último lugar, a
pessoa A pode simplesmente abandonar a terra (não apenas sair dela, mas
declarar que não a quer mais) e deixar para quem quiser se apropriar.
Mas
existe outra forma de interação social: a violência. A pessoa B, bem mais forte e armada que a
pessoa A, resolve expulsar essa última da terra. O que nossa intuição moral nos diz sobre isso?
Ora, se a pessoa A tem a propriedade
legítima sobre a terra, ninguém pode tomá-la. A violência da pessoa B é do tipo agressiva, pois não respeitou o direito
da pessoa A. Esta última então resolve
contratar duas pessoas, C e D, indivíduos fortemente armados, para tomar sua
terra de volta. Eles expulsam B da terra
de A utilizando a violência, que nesse caso é legítima. Concluímos então
nossa medida ética, que é apenas usar a violência para proteger a propriedade.
Mas
agora vamos supor que a terra da pessoa A seja fértil e produza uma grande
quantidade de alimentos. A pessoa B,
preocupada em alimentar os famintos de sua cidade, resolve tomar a terra. A pessoa B agora tem uma boa intenção —
alimentar os pobres —, mas utiliza de violência agressiva. Nesse caso, podemos dizer que a ação da pessoa
B foi ética? Lógico que não. Por qualquer que seja a intenção, não é justo
que a propriedade de ninguém seja agredida. A pessoa B pode apenas persuadir a pessoa A a
fazer doações, ou comprar alimentos da sua terra, mas nunca agredir sua
propriedade.
Vamos
supor outro caso, onde a pessoa B não pensa em tomar a terra da pessoa A. A pessoa B agora exige que a pessoa A pague
uma quantia por mês sobre o seu lucro da produção de alimentos. Essa ação é legítima? Mais uma vez, não. Mesmo a pessoa B não tomando diretamente a
terra, está roubando A ao exigir que ela lhe dê uma quantia que conseguiu com
sua propriedade.
O estado
A
pessoa B nos exemplos acima pode muito bem ser substituída pelo estado. Com a justificativa de proteger os cidadãos, o
estado agride constantemente suas propriedades. Proibições, regulações,
taxações, sequestros, roubos etc; a lista de crimes do estado é imensa. Todavia, não é incomum que as constituições
dos estados nos digam que uma de suas funções é proteger a propriedade. E realmente existem alguns órgãos na estrutura
governamental que fazem isso. O governo,
em alguns casos, utiliza de violência legítima. Um exemplo são os departamentos de sequestro e
furtos da polícia. Contudo, o governo usa a violência legítima através da
violência agressiva. Para custear esses departamentos, o governo recolhe
coercitivamente impostos. Alguns
argumentam que, no caso de regimes democráticos, como o governo representa a
"vontade do povo", a coerção estatal é legítima. Mas vimos que o que define o bom e o mau uso
da violência não é a vontade popular, mas sim a propriedade. Se a vontade da maioria for que se tome a
propriedade da minoria, tal ação torna-se legítima? Obviamente não.
"Mas
a democracia tem limites, pois as pessoas têm direitos", alguém pode
contra-argumentar. Ou seja, a democracia
é limitada por alguns direitos fundamentais dos indivíduos. Mesmo que a maioria, por votação popular, escolha
escravizar a minoria, essa decisão não é válida, pois é fato que viola direitos
individuais. Mas em que são baseados os
direitos individuais? Na ética da
propriedade! E a implicação lógica dessa
ética nos diz que a violência agressiva é ilegítima — logo, mesmo um estado
democrático é ilegítimo.
Alguns
liberais argumentam, entretanto, que o estado é um mal necessário. Mesmo utilizando de violência agressiva,
precisamos do aparato estatal para nos prover segurança e justiça. De fato, há um incrível consenso entre
socialistas e liberais sobre a necessidade da intervenção do governo nessas
duas áreas. Então, a violência legítima
que o estado nos proporciona é superior à violência agressiva. Ou seja, o estado é antiético, mas necessário
para a interação social.
Sociedade de leis
privadas
Se
a ética nos revela o porquê de determinada conduta ser justa ou injusta, ela
nos revela também o que é benéfico e maléfico na interação social — logo, é
impossível determinada organização social ser antiética e ao mesmo tempo necessária para a sociedade. Resumindo: O estado, além de antiético, é
desnecessário para manter as boas relações entre os indivíduos.
Mas,
então, como resolver o problema da segurança e justiça num ambiente com leis
privadas? Primeiramente, é bom
esclarecer o que queremos dizer com "sociedade de leis privadas". Como a propriedade é o núcleo da ordem social,
as pessoas possuem liberdade para criar suas leis. Tais leis podem ser individuais ou coletivas. Elas têm ligação com nossos costumes e
hábitos. As leis individuais dizem
respeito à nossa propriedade. Dentro da
nossa propriedade criamos nossas regras, com o único limite de respeitar a
propriedade alheia. Por exemplo, a
pessoa A não pode criar a seguinte lei: "quem entrar na minha propriedade será
meu escravo". Claramente isso
desrespeita a ética da propriedade. Leis
coletivas são criadas por acordos ou contratos. Os indivíduos concordam entre si em segui-la. Como exemplo, temos os
shoppings e condomínios.
Podemos
encontrar algumas objeções à sociedade de leis privadas, como: "Mas tudo
viraria bagunça se cada um pudesse criar sua própria lei!". Como dito acima, essas leis tem limites, pois
as pessoas estão sujeitas à ética da propriedade. Caso usem violência agressiva, estão sujeitas
às punições cabíveis. Entretanto, pode
surgir essa outra objeção: "Mas e se um indivíduo não der a mínima para a ética
da propriedade? Pior, e se ele for rico
e bem armado e começar a aterrorizar as pessoas para que elas lhe
obedeçam?".
Como
consequência de nos revelar o que é justo, a ética da propriedade também nos
mostra o máximo de bem-estar que pode ser gerado pela interação social. Isso significa que essa ética não é apenas
justa, mas tem os melhores resultados sociais, inclusive econômicos. Todas as crises sociais que tivemos durante a história
foram resultados de agressões à propriedade. Então, se um indivíduo não der a mínima para a
ética da propriedade, ele é criminoso: fraudador, ladrão, assassino etc. Caso esse indivíduo comece a usar sua força
física para aterrorizar as outras pessoas, estará agindo exatamente como o estado:
ou se submete às suas ordens ou é perseguido como se fosse um criminoso. A vantagem de leis privadas para impedir um
caso de um indivíduo como esse é que ele é obrigado a internalizar os custos. Como
o estado recolhe renda à força das pessoas, ele pode gastar sem se preocupar
muito, pois os custos são externalizados
sempre. O indivíduo do nosso exemplo
terá que arcar com os custos, a não ser que ele mesmo monte um estado e comece
a recolher impostos. Tal exemplo nos
esclarece o motivo pelo qual as ações do governo são naturalmente agressivas. O indivíduo do exemplo age quase como um
governo (no pior dos casos, ele mesmo terá de montar um).
Explicado
esses pontos, voltemos à nossa pergunta anterior: como funcionaria a segurança
e a justiça na sociedade de leis privadas? A polícia do governo não existiria, e a
segurança seria fornecida por firmas privadas. Uma boa descrição do funcionamento de agências
privadas de segurança é do economista e físico David Friedman em sua obra Anarchy
and Efficient Law. O exemplo que
o autor usa é o de um roubo de uma televisão. Vamos supor que a pessoa B roube a televisão
da pessoa A, e esta possua uma gravação como prova e ligue para sua polícia
privada. Um representante da polícia de
A vai à casa de B e exige a devolução da televisão e ameaça dizendo que, caso
ele não entregue, voltará com três homens armados. A pessoa B diz que a televisão foi um presente
e que se o representante voltar com três homens, ele vai ligar para sua própria
polícia vir com cinco homens armados. Existem
três formas como as polícias privadas podem resolver essa situação de conflito:
1)
entrando em guerra; mas essa solução é a pior de todas, pois, diferente do estado,
as polícias privadas não podem externalizar custos, então uma guerra contaria
como despesa, o que diminuiria substancialmente os lucros.
2)
As polícias podem fazer uma negociação para resolver o conflito sem precisar
pegar em armas.
3)
um acordo no qual um tribunal privado irá julgar o caso. Quando a decisão for proferida, as duas
polícias concordam em
obedecê-la. Mas por
que as polícias deveriam confiar em algum tribunal privado? O tribunal privado, que busca o lucro, não
seria mais fácil de subornar? Pelo
contrário: num ambiente de leis privadas, os tribunais tendem a ser mais
honestos porque eles possuem uma reputação para preservar, diferente dos
tribunais do estado, que não necessitam de clientes, pois possuem poder de
monopólio. Se qualquer agência de
polícia desconfiar que determinado tribunal seja desonesto, ela não irá
contratá-lo. Os tribunais serão
contratados se, pelo contrário, mostrarem rigor técnico nas decisões. Um escândalo para um tribunal ou polícia privada
é prenúncio de sua falência — logo, na sociedade de leis privadas há uma
tendência para ambos serem honestos e eficientes.
Conclusão
A
ética da propriedade e a sociedade de leis privadas podem parecer um pouco
estranhas ao leitor acostumado com pensamentos socialistas e intervencionistas,
onde o governo é supostamente responsável pelo "bem público". Na verdade, o governo é uma instituição que
agride a propriedade e concede privilégios a certos grupos. O núcleo de estabilidade da ordem social é a
propriedade privada. Assim, para a
sociedade ter paz, prosperidade e justiça, ela deve se basear nessa ética. Seria bom que não existisse violência, mas
sabemos que isso é utopia. O uso da
violência só é legítimo para proteger a vida e a propriedade. Quanto mais uma sociedade se afasta desses
pressupostos, mais se torna caótica.