A produção privada de segurança
Entre as crenças mais populares e importantes de nossos
tempos está a crença na segurança coletiva.
Nada menos do que a legitimidade do estado moderno se baseia nessa
crença.
Irei demonstrar que a ideia de segurança coletiva é um
mito que não oferece qualquer justificativa para o estado moderno, e que toda
segurança é e tem de ser privada. No entanto,
antes de chegar a essa conclusão, começo com o problema. Primeiramente, apresentarei uma reconstrução
em dois passos do mito da segurança coletiva e, a cada passo, irei suscitar
algumas preocupações teóricas.
O mito da segurança coletiva também pode ser chamado de mito
hobbesiano. Thomas Hobbes, e incontáveis
filósofos políticos e economistas depois dele, sustentava que, no estado de
natureza, os homens viveriam em pé de guerra.
Homo homini lupus est. Formulado no jargão moderno, uma subprodução
permanente de segurança prevaleceria no estado de natureza. Cada indivíduo, entregue a seus próprios recursos
e suprimentos, investiria muito pouco em sua defesa, o que resultaria em
conflitos interpessoais permanentes. A
solução para essa situação presumivelmente intolerável, de acordo com Hobbes e
seus seguidores, é a instituição de um estado.
A fim de instituírem uma cooperação pacífica entre si, dois indivíduos, A e B,
exigem que uma terceira parte independente, S,
atue como juiz de última instância e mediador.
Contudo, essa terceira parte, S,
não é apenas mais um indivíduo, e o serviço oferecido por S, isto é, o de segurança, não é apenas mais um serviço
"privado." Na verdade, S é um soberano e, como tal, goza de dois poderes singulares. Por um lado, S pode insistir em que seus súditos,
A e B, não busquem proteção de ninguém que não ele; isto é, S é um monopolista territorial
compulsório de proteção. Por outro lado,
S pode determinar unilateralmente
quanto A e B têm de investir em sua própria
segurança; isto é, S tem o poder de
cobrar impostos a fim de oferecer a segurança "coletivamente."
Ao comentar esse argumento, não é de grande ajuda discutir
se o homem é tão mau e parecido com um lobo como Hobbes supõe, mas, sim, notar
que a tese de Hobbes obviamente não pode significar que o homem é movido por, e
apenas por, instintos agressivos. Se
esse fosse o caso, a humanidade teria desaparecido há muito tempo. O fato de que ela não desapareceu demonstra
que o homem também possui a razão e é capaz de refrear seus impulsos
naturais. O debate deve se fixar apenas
na solução hobbesiana. Dada a natureza
do homem como animal racional, a solução proposta ao problema da insegurança é
um avanço? A instituição do estado pode
reduzir o comportamento agressivo e promover a cooperação pacífica e, assim,
oferecer uma melhor segurança e proteção privadas? Os problemas do argumento de Hobbes são
óbvios. Primeiro, não importa quão maus
sejam os homens, S -- seja um rei, um
ditador ou um presidente eleito -- continua sendo um homem. A natureza do homem não é transformada ao
tornar-se S. De qualquer modo, como pode haver melhor
proteção para A e B se S
tem de cobrar impostos deles para oferecê-la?
Não haveria uma contradição na própria visão de S como um protetor que expropria propriedades? Na verdade, isso não seria exatamente aquilo
a que se refere -- e mais apropriadamente -- como uma máfia da proteção? S por certo promoverá a paz entre A e B,
mas apenas para que ele possa, em seguida, roubá-los mais lucrativamente. S é
sem dúvida mais bem protegido, mas quanto mais protegido ele é, menos
protegidos estão A e B dos ataques de S. Pareceria assim que a
segurança coletiva não é melhor do que a segurança privada. Na verdade, ela é a segurança privada do
estado, S, obtida por meio da
expropriação, isto é, do desarmamento econômico, dos seus súditos. Além disso, os estatistas de Thomas Hobbes a
James Buchanan sustentam que um estado protetor S surgiria como o resultado de algum tipo de contrato
"constitucional."[1] No entanto, quem em seu juízo perfeito
assinaria um contrato que permitisse a um protetor determinar unilateralmente --
e inapelavelmente -- a quantia que os protegidos têm de pagar por sua proteção;
e o fato é que ninguém jamais assinou![2]
Permitam-me interromper minha discussão aqui e retornar à
reconstrução do mito hobbesiano. Ao se supor
que, a fim de instituir uma cooperação pacífica entre A e B, é necessário haver
um estado S, segue-se uma conclusão de
duas partes. Se houver mais de um
estado, S1, S2, S3, então, assim como
presumivelmente não pode haver paz entre A
e B sem S, não poderá haver paz entre os estados S1, S2 e S3 enquanto eles permanecerem em um
estado de natureza (isto é, em um estado de anarquia) um em relação ao
outro. Consequentemente, para
alcançar-se a paz universal, a
centralização política, a unificação e, por fim, o estabelecimento de um único
governo mundial são necessários.
Ao comentar esse argumento, é útil, em primeiro lugar,
indicar o que pode ser considerado não-controverso. Para começar, o argumento, como tal, é
válido. Se a premissa está correta,
então segue-se o consequente apresentado.
Os pressupostos empíricos envolvidos no relato hobbesiano parecem à
primeira vista ser confirmados pelos fatos, também. É verdade que os estados estão constantemente
em guerra um contra o outro, e uma tendência histórica em direção à
centralização política e a um governo mundial parece de fato estar em operação. Discussões surgem apenas
quanto à explicação deste fato e desta tendência e à classificação desse estado
mundial unificado como um progresso na oferta de segurança e proteção
privadas. Em primeiro lugar, parece
haver uma anomalia empírica que o argumento hobbesiano não consegue explicar. A razão para as guerras entre os diferentes
estados S1, S2 e S3, de acordo com
Hobbes, é que eles estão em um estado de anarquia um vis-à-vis o outro. No
entanto, antes do surgimento de um único estado mundial, não apenas os estados S1, S2
e S3 estão em um estado de anarquia
um em relação ao outro, mas na verdade cada um dos súditos de um estado está em
um estado de anarquia vis-à-vis cada
um dos súditos de qualquer outro estado. Ora, deveria haver tantas guerras e agressões
entre os cidadãos dos vários estados quanto entre os diferentes estados. Empiricamente, no entanto, isso não ocorre. As relações privadas entre estrangeiros
parecem ser significativamente menos conflituosas do que as relações entre
governos diferentes. Isso tampouco
parece ser surpreendente. Afinal, o
agente estatal S, ao contrário de
cada um dos seus súditos, pode se apoiar em impostos domésticos na condução de
suas relações exteriores. Dada sua
agressividade humana natural, não importa quão pronunciada ela seja de início,
não é óbvio que S será mais ousado e
agressivo em sua conduta perante estrangeiros se puder externalizar o custo de
tal comportamento sobre terceiros?
Certamente, fico disposto a me envolver em mais provocações e agressões e
a correr riscos maiores se puder fazer terceiros pagarem por eles. E certamente há uma tendência a um estado --
uma máfia de proteção -- querer expandir seu monopólio territorial de proteção às
custas de outros estados e assim trazer à tona, como o resultado final da
competição interestatal, um governo mundial.[3] Mas como isso poderia ser um progresso na
oferta de segurança e proteção privadas?
Parece que se dá o contrário. O
estado mundial é o vencedor de todas as guerras e a última máfia de proteção
sobrevivente. Isso não o torna especialmente
perigoso? E o poderio físico de qualquer
governo mundial não será esmagador em comparação ao de qualquer um de seus
súditos individuais?
As evidências empíricas
Permitam-me interromper aqui minhas considerações teóricas
abstratas para examinar brevemente as evidências empíricas envolvidas no tema em questão. Como afirmado no início, o
mito da segurança coletiva é tão disseminado quanto importante. Não tenho conhecimento de qualquer pesquisa sobre
o assunto, mas arriscaria prever que o mito hobbesiano é aceito mais ou menos
incondicionalmente por bem mais de 90% da população adulta. No entanto, acreditar em algo não o torna
verdadeiro. Na realidade, se aquilo em
que alguém acredita é falso, suas ações levarão ao fracasso. E quanto às evidências? Elas apóiam Hobbes e seus seguidores ou confirmam
os medos e as alegações dos adversários anarquistas?
Os Estados Unidos foram fundados explicitamente como um
estado protetor à la Hobbes. Cito, nesse sentido, a Declaração de Independência
de Jefferson:
Consideramos que essas verdades são autoevidentes: que
todos os homens foram criados iguais; que foram dotados por seu criador de
direitos inalienáveis; que entre esses estão a vida, a liberdade e a busca da felicidade:
que, para assegurar esses direitos, os governos são instituídos entre os
homens, decorrendo seus poderes justos do consentimento dos governados.
Aí está: o governo americano foi instituído para cumprir uma
e apenas uma tarefa: proteger a vida e a propriedade. Assim, ele oferece o exemplo perfeito para
avaliarmos a validade da sustentação hobbesiana a respeito da condição dos
estados como protetores. Após mais de
dois séculos de estatismo protetor, em que situação se encontram nossa proteção
e cooperação humana pacífica? A
experiência americana com o estatismo protetor foi um sucesso?
Segundo as declarações de nossos governantes e de seus
guarda-costas intelectuais (que nunca foram tantos quanto hoje), estamos mais
protegidos e mais seguros do que nunca. Estamos
supostamente protegidos do aquecimento e do resfriamento global, da extinção
dos animais e das plantas, dos maus tratos de maridos e mulheres, de pais e
empregadores, da pobreza, da doença, dos desastres, da ignorância, do
preconceito, do racismo, do sexismo, da homofobia e de outros incontáveis inimigos
e perigos públicos. Na verdade, contudo,
as coisas são incrivelmente diferentes.
Para nos proporcionar toda essa proteção, os administradores estatais
expropriam, entra ano, sai ano, mais de 40% da renda dos produtores privados. A dívida e o passivo públicos aumentam sem
parar, aumentando assim a necessidade de expropriações futuras. Devido à substituição do ouro pelo
papel-moeda estatal, a insegurança financeira aumentou gravemente e somos
roubados pela depreciação da moeda continuamente. Cada detalhe da vida privada, da propriedade,
do comércio e dos contratos é regulamentado por montanhas cada vez mais altas
de leis (legislação), gerando assim insegurança jurídica e risco moral. Em especial, fomos gradualmente privados do
direito de exclusão implicado pelo próprio conceito de propriedade
privada. Como vendedores não podemos
vender e como compradores não podemos comprar de quem quer que queiramos. E como membros de associações não temos
direito de assinar qualquer contrato restritivo que acreditemos ser mutuamente
proveitoso. Como americanos, precisamos
aceitar imigrantes que não desejamos como nossos vizinhos. Como professores, não podemos nos livrar de
estudantes pífios ou de mau comportamento.
Como empregadores, ficamos presos a empregados incompetentes ou
destrutivos. Como locadores, somos
forçados a aguentar locatários ruins.
Como banqueiros e seguradores, não nos permitem evitar riscos
ruins. Como donos de restaurante ou bar,
temos de acomodar fregueses indesejados.
E como membros de associações privadas, somos obrigados a aceitar
indivíduos e atos que violam nossas próprias regras e restrições. Em suma, quanto mais o estado aumentou seus
gastos em previdência social e em segurança pública, mais nossos direitos de
propriedade privada foram corroídos, mais nossa propriedade foi expropriada,
confiscada, destruída ou depreciada, e mais fomos privados da própria base de
toda a proteção: a independência econômica, a solidez financeira e a riqueza
pessoal.[4] O trajeto de qualquer presidente e de
praticamente todos os membros do Congresso está coberto de centenas de
milhares, se não de milhões, de vítimas desconhecidas da desgraça econômica
pessoal, da falência financeira, do empobrecimento, do desespero, da penúria e
da frustração.
O retrato parece ainda mais sombrio quando consideramos as
relações exteriores. Durante toda a sua
história, a porção continental dos Estados Unidos nunca foi atacada
territorialmente por quaisquer forças armadas estrangeiras. (Pearl Harbor foi o resultado de uma
provocação americana anterior.) No entanto,
os Estados Unidos gozam da distinção de terem tido um governo que declarou
guerra contra uma grande parte de sua própria população e empreendeu o
assassinato cruel de centenas de milhares de seus próprios cidadãos. Além disso, embora as relações entre cidadãos
norte-americanos e estrangeiros não pareçam ser anormalmente conflituosas, o
governo americano, quase que desde sua origem, levou adiante um expansionismo
agressivo, incansável. Começando na
Guerra Hispano-Americana, culminando na Primeira e na Segunda Guerras mundiais
e prosseguindo até o presente, o governo americano se meteu em centenas de
conflitos externos e se elevou à posição de poder imperialista dominante no
mundo. Assim, quase todos os presidentes
desde a virada do século também foram responsáveis pelo assassinato, pela morte
e pela fome de incontáveis estrangeiros inocentes por todo o mundo. Em suma, enquanto ficávamos mais indefesos,
pobres, ameaçados e inseguros, o governo americano ficava cada vez mais ousado
e agressivo. Em nome da segurança
nacional, ele nos defende, equipado com reservas enormes de armas de agressão e
de destruição em massa, por meio da intimidação de novos "Hitlers", grandes ou
pequenos, e de todos os suspeitos de simpatizarem com os "Hitlers" em todo e
qualquer lugar fora do território americano.[5]
As evidências empíricas parecem claras, portanto. A crença em um estado protetor parece ser um
erro evidente, e a experiência americana com o estatismo protetor, um fracasso
completo. O governo americano não nos
protege. Pelo contrário, não existe
perigo maior à nossa vida, propriedade e prosperidade do que o governo
americano, e o presidente americano em especial é o perigo mais ameaçador e
armado do mundo, capaz de arruinar qualquer pessoa que se oponha a ele e de
destruir o mundo todo.
Como pensar a respeito da resposta estatista
Os estatistas reagem de maneira
muito parecida à dos socialistas quando confrontados com o desempenho econômico
lastimável da União Soviética e de seus estados-satélites. Eles não negam necessariamente os fatos
decepcionantes, mas tentam afastá-los alegando que eles são o resultado de uma
discrepância (desvio) sistemática entre o estatismo "real" e "ideal" ou "verdadeiro",
respectivamente o socialismo. Até hoje,
os socialistas afirmam que o "verdadeiro" socialismo não foi refutado pelas
evidências empíricas, e que tudo teria dado certo e uma prosperidade sem
paralelo teria se seguido, se a versão do socialismo de Trotsky, de Bucharin
ou, melhor ainda, deles mesmos, tivesse sido implementada. Do mesmo modo, os estatistas interpretam
todas as evidências aparentemente contrárias como apenas acidentais. Se outro presidente tivesse chegado ao poder
nesse ou naquele momento da história, ou se essa ou aquela mudança ou emenda
constitucional tivesse sido aprovada, tudo teria se saído maravilhosamente bem,
e paz e segurança sem paralelo teriam se seguido. Na verdade, isso ainda pode ocorrer no
futuro, se suas políticas forem empregadas.
Aprendemos com Ludwig von Mises como responder à estratégia
evasiva (de imunização) dos socialistas.[6] Enquanto a característica definidora -- a
essência -- do socialismo, ou seja, a inexistência de propriedade privada dos
fatores de produção, continuar de pé, nenhuma reforma adiantará de nada. A ideia de uma economia socialista é uma contradictio in adjecto, e a afirmação
de que o socialismo representa um modo mais elevado, mais eficiente de produção
social é absurda. Para que se possa
alcançar seus fins com eficiência e sem desperdício no âmbito de uma economia
de trocas baseada na divisão do trabalho, é necessário realizar cálculos
monetários (contabilidade dos custos).
Afora o sistema de uma economia formada por um único lar autossuficiente
primitivo, o cálculo monetário é, em qualquer situação, o único instrumento
para executar ações racionais e eficientes.
Apenas sendo capaz de comparar insumos e produtos aritmeticamente em
termos de um meio de troca comum (a moeda), uma pessoa pode avaliar se suas
ações são bem-sucedidas ou não. Em
contraste marcante, o socialismo significa não haver economia ou poupança,
porque, sob essas condições, o cálculo monetário e a contabilidade de custos são
impossíveis por definição. Se não existe
propriedade privada de fatores de produção, então não existem preços para
fatores de produção; logo, é impossível avaliar se eles estão sendo empregados
economicamente. Portanto, o socialismo
não é um modo de produção mais elevado, mas, sim, um caos econômico e um
retorno ao primitivismo.
Murray N. Rothbard explicou como responder à estratégia
evasiva dos estatistas.[7] Mas a lição de Rothbard, embora igualmente
simples e clara e com implicações ainda mais relevantes, permanece até hoje
muito menos conhecida e valorizada.
Enquanto a característica definidora -- a essência -- de um estado
continuar de pé, ele explicou, nenhuma reforma, seja no âmbito do pessoal, seja
no da constituição, terá utilidade. Dado o princípio do governo -- monopólio
judicial e o poder de cobrar impostos --, qualquer noção de limitação de seus
poderes e de proteção da vida e da propriedade individuais é ilusória. Sob auspícios monopolísticos, o preço da
justiça e da proteção tem de subir e sua qualidade, de cair. Uma agência de proteção financiada por
impostos é uma contradição em termos e levará a impostos cada vez mais altos e
a proteção cada vez menor. Ainda que um
governo limitasse suas atividades exclusivamente à proteção de direitos de
propriedade pré-existentes (como todos os estados protetores deveriam fazer),
surgiria a questão mais profunda de quanta
segurança oferecer. Motivados (como
quase todos) pelo interesse próprio e pelo custo de trabalhar, mas com o poder
singular de cobrar impostos, a resposta do governo será invariavelmente a
mesma: maximizar gastos em proteção --
e quase toda a renda de um país pode concebivelmente ser consumida pelo custo
da proteção -- e, ao mesmo tempo, minimizar
a produção de proteção. Além disso, um monopólio judicial tem de
levar à deterioração da qualidade da justiça e da proteção. Se só se pode apelar ao governo para justiça
e proteção, a justiça e a proteção serão distorcidas em favor do governo, não
obstante constituições e supremas cortes.
Afinal, constituições e supremas cortes são constituições e cortes estatais, e qualquer limitação à ação do
governo que possam representar é determinada por agentes da própria instituição
sob análise. Portanto, a definição de
propriedade e de proteção será continuamente alterada e a abrangência
jurisdicional, ampliada em benefício do governo.
Deste modo, Rothbard salienta, segue-se que, assim como o
socialismo não pode ser reformado mas tem sim de ser abolido para se alcançar a
prosperidade, a instituição do estado não pode ser reformada mas tem sim de ser
abolida para se alcançar a justiça e a proteção. "A defesa na sociedade livre (incluindo
serviços de defesa da pessoa e da propriedade tais como a proteção policial e
decisões judiciais)", Rothbard conclui, "teria assim de ser ofertada por
pessoas ou empresas que (a) obtivessem sua renda voluntariamente, e não pela
coerção, e (b) não arrogassem para si -- como o estado faz --o monopólio
compulsório da proteção policial e judicial (...) as empresas de defesa teriam
de ser tão livremente competitivas e não-coercitivas perante inocentes quanto
quaisquer outros fornecedores de bens e serviços no livre mercado. Os serviços de defesa, como todos os outros
serviços, seriam vendáveis e apenas vendáveis."[8] Isto é, todos os proprietários privados poderiam
tomar parte das vantagens da divisão do trabalho e buscar uma melhor proteção
de sua propriedade do que aquela proporcionada pela autodefesa, por meio da
cooperação com outros proprietários e suas propriedades. Todos poderiam comprar de, vender para ou
celebrar contratos com qualquer pessoa relativos a serviços judiciais e de
proteção, e se poderia, a qualquer momento, suspender unilateralmente qualquer
cooperação com outrem e retornar à defesa autossuficiente, ou mudar suas
filiações protetoras.
Em defesa da segurança privada
Tendo reconstruído o mito da segurança coletiva -- o mito do
estado -- e criticado-o com fundamentos teóricos e empíricos, dedico-me agora à
tarefa de construir uma defesa positiva da segurança e proteção privadas. Para afastar o mito da segurança coletiva, compreender
o erro implicado na ideia de um estado
protetor não é suficiente. Tão
importante quanto, se não mais importante, é obter uma compreensão clara de
como a alternativa de segurança não-estatista funcionaria na prática. Rothbard, baseando-se na análise pioneira do
economista franco-belga Gustave de Molinari[9],
ofereceu-nos um esboço do funcionamento de um sistema de proteção e defesa de
livre mercado.[10] Devemos também a Morris e Linda Tannehill
observações e análises brilhantes a esse respeito.[11] Seguindo seu caminho, irei mais fundo em minha
análise e apresentarei uma visão abrangente
do sistema alternativo não-estatista de produção de segurança e de sua
capacidade de lidar com ataques não apenas de indivíduos e gangues, mas também,
e em especial, de estados.
Existe um entendimento muito disseminado -- tanto entre
libertários e liberais, como Molinari, Rothbard e os Tannehills, quanto entre a
maioria dos outros debatedores da questão -- de que a defesa é uma forma de
seguro, e de que gastos em defesa representam uma espécie de apólice de seguro
(preço). Nesse sentido, como Rothbard e
os Tannehills em especial enfatizavam, no âmbito de uma economia moderna
complexa baseada em uma divisão de trabalho mundial, os candidatos com maior
probabilidade de oferecerem serviços de proteção e defesa são as agências
seguradoras. Quanto melhor for a
proteção da propriedade segurada, menos pedidos de indenização serão
apresentados e, portanto, menores serão os custos da seguradora. Assim, oferecer proteção com eficiência
parece ser do interesse financeiro de toda seguradora; e, de fato, mesmo hoje
em dia, embora restringidas e tolhidas pelo estado, agências seguradoras
oferecem serviços muito diversificados de proteção e de indenização
(compensação) a entidades privadas prejudicadas. As empresas seguradoras atendem a um segundo
requisito essencial. Obviamente, quem
oferece serviços de proteção tem de parecer apto a cumprir suas promessas para conquistar
clientes. Ou seja, é necessário possuir
os meios econômicos -- recursos tanto humanos quanto físicos -- imprescindíveis
para realizar a tarefa de lidar com os perigos, verdadeiros ou potenciais, do
mundo real. Segundo esse quesito, as
agências seguradoras parecem ser candidatos perfeitos, também. Elas operam em escala nacional e até
internacional e possuem bens de monta espalhados por amplos territórios e além
das fronteiras de um único estado. Desse
modo, elas têm um interesse próprio evidente na proteção efetiva e são grandes
e economicamente poderosas. Além disso,
as empresas seguradoras estão ligadas por uma rede de acertos contratuais de
assistência mútua e de arbitragem e por um sistema de resseguro internacional, representando
um poder econômico somado que deixa muito para trás aquele da maioria, se não
de todos, os governos atuais.
Gostaria de analisar mais a fundo e esclarecer
sistematicamente essa sugestão: proteção e defesa são um seguro e podem ser
oferecidas por agências seguradoras.
Para chegar a esse objetivo, duas questões têm de ser abordadas. Primeiro, não é possível fazer um seguro
contra todos os riscos da vida. Não
posso fazer um seguro contra cometer suicídio, por exemplo, ou contra queimar
minha própria casa, ou contra ficar desempregado, ou contra não sentir vontade
de sair da cama de manhã, ou contra sofrer perdas empreendedoriais, porque
nesses casos tenho controle completo ou parcial sobre a probabilidade de o
respectivo sinistro ocorrer. Riscos como
esses têm de ser suportados individualmente.
Ninguém além de mim tem qualquer possibilidade de administrá-los. Assim, a primeira pergunta a ser feita é: o que
torna a proteção e a defesa um risco segurável, ao invés de não-segurável? Afinal, como acabamos de ver, isso não é
evidente por si mesmo. Na verdade, as
pessoas não exercem um controle considerável sobre a probabilidade de um ataque
ou de uma agressão à sua pessoa ou propriedade?
Agredindo ou provocando alguém, por exemplo, eu não trago um ataque
deliberadamente à tona? E não seria
assim a proteção um risco não-segurável, como o suicídio ou o desemprego, pelo
qual cada um tem de assumir total responsabilidade?
A resposta é um sim e um não com ressalvas. Sim, na medida em que ninguém pode oferecer
proteção incondicional, isto é,
seguro contra qualquer tipo de agressão.
Ou seja, a proteção incondicional só pode ser oferecida, se é que o
pode, por um indivíduo por sua própria conta e para ele mesmo. Mas a resposta é não, na medida em que se trate de proteção condicional. Apenas ataques e agressões provocados pela
vítima não podem ser segurados. No entanto,
pode-se fazer seguro contra ataques não provocados e, portanto, acidentais.[12] Isto é, a proteção se torna um bem segurável
apenas se e na medida em que um agente segurador restringir contratualmente as
ações do segurado, de modo a excluir qualquer provocação possível de sua
parte. Várias empresas seguradoras podem
discordar a respeito da definição específica de provocação, mas não pode haver
discordâncias entre as seguradoras a respeito do princípio de que todas têm de
excluir (proibir) sistematicamente todas as ações provocativas e agressivas
entre seus próprios clientes.
Por mais elementar que essa primeira consideração sobre a
natureza essencialmente defensiva -- não-agressiva e não-provocativa -- do
seguro-proteção possa parecer, ela é de uma importância fundamental. Primeiro, ela implica que qualquer agressor
ou provocador conhecido não conseguiria encontrar uma seguradora, ficando,
assim, economicamente isolado, frágil e vulnerável. Por outro lado, ela implica que quem
desejasse mais proteção do que aquela fornecida pela autodefesa autossuficiente
só a conseguiria se e na medida em que se sujeitasse às normas específicas de
não-agressão e de conduta civilizada.
Além disso, quanto maior o número de pessoas seguradas -- e, em uma
economia de trocas moderna, a maioria das pessoas deseja mais do que autodefesa
para sua proteção --, maior seria a pressão econômica sobre os não-segurados
remanescentes para adotar padrões idênticos ou semelhantes de conduta social
não-agressiva. Ademais, como resultado
da competição entre seguradoras por clientes voluntários, adviria uma tendência
à queda de preços por valor de propriedade segurada. Ao mesmo tempo, uma tendência à padronização
e unificação do direito real e contratual seria posta em marcha. Contratos de proteção com
descrições padronizadas de propriedades e serviços surgiriam; e, da cooperação
estável entre diversas seguradoras em procedimentos de arbitragem, resultaria
uma tendência à padronização e unificação das regras de processo, de provas e
de resolução de conflitos (incluindo compensação, restituição, punição e retaliação)
e a uma segurança jurídica cada vez maior e mais firme. Todos, por adquirirem seguro de proteção,
estariam unidos a uma empresa competitiva mundial na luta pela minimização da
agressão (e, assim, pela maximização da proteção defensiva), e todos os
conflitos e pedidos de indenização, não importam onde e por quem ou contra
quem, recairiam na jurisdição de apenas uma ou de um conjunto específico de
agências seguradoras e seus procedimentos de arbitragem estabelecidos em
acordo.
Mais a respeito do seguro contra agressão
Agora, uma segunda questão tem de ser abordada. Ainda que a condição da proteção defensiva
como um bem segurável seja aceita, existem modalidades notavelmente diferentes
de seguro. Consideremos apenas dois
exemplos característicos: seguro contra desastres naturais, como terremotos,
enchentes e furacões, e seguro contra acidentes ou desastres industriais, como
mau funcionamento, explosões ou produtos defeituosos. O primeiro tipo pode servir como um exemplo
de seguro de grupo ou mútuo. Algumas
regiões são mais propensas a desastres naturais do que outras; em consequência,
a demanda por e o preço do seguro serão mais elevados em algumas áreas do que em outras.
No entanto, todos os lugares dentro de certos limites territoriais são considerados pela
seguradora como homogêneos quanto ao risco envolvido. A seguradora presumivelmente conhece a
frequência e o alcance do evento em questão para a região como um todo, mas
nada sabe a respeito do risco específico de qualquer localidade determinada
dentro da região. Nesse caso, todas as
pessoas seguradas pagarão a mesma apólice por valor segurado, e as apólices acumuladas
em um dado período são presumivelmente suficientes para cobrir todos os pedidos
de reparação feitos ao longo do mesmo período (do contrário, a indústria de
seguros terá prejuízo). Assim, os riscos
individuais específicos são reunidos e segurados mutuamente.
Em contraste, o seguro industrial pode servir como exemplo
de seguro individual. Ao contrário dos
desastres naturais, o risco segurado é o resultado da ação humana, isto é, de
esforços produtivos. Todo processo
produtivo está sob o controle de um produtor individual. Nenhum produtor deseja o fracasso ou o desastre, e, como vimos, apenas desastres
acidentais -- não-desejados -- são seguráveis.
No entanto, ainda que em grande medida controlados e em geral
bem-sucedidos, todos os produtores e as tecnologias de produção estão sujeitos
a percalços e acidentes ocasionais fora de seu controle -- uma margem de
erro. Contudo, como o resultado, ainda
que não-desejado, de esforços individuais de produção e de técnicas de
produção, o risco de acidentes industriais é essencialmente diferente de um
produtor e processo de produção para outro.
Deste modo, o risco de diferentes produtores e tecnologias de produção
não podem ser reunidos, e cada produtor tem de ser segurado
individualmente. Neste caso, a
seguradora presumivelmente terá de conhecer a frequência do evento controverso
ao longo do tempo, mas ela nada sabe a respeito da probabilidade de o evento
ocorrer em qualquer momento específico, a não ser que sempre estarão em
operação a mesma tecnologia de produção e o mesmo produtor. Não há nenhuma suposição de que as apólices acumuladas
ao longo de qualquer período dado serão suficientes para cobrir todos os
pedidos de reparação apresentados naquele período. Na verdade, a suposição que sustenta os
lucros é que as apólices acumuladas ao longo de vários períodos de tempo serão
suficientes para cobrir as reparações durante o mesmo múltiplo intervalo de
tempo. Consequentemente, nesse caso, a
seguradora tem de manter reservas de capital para cumprir suas obrigações
contratuais e, ao calcular suas apólices, tem de levar em conta o valor atual
dessas reservas.
Assim, a segunda pergunta é: que tipo de seguro pode
oferecer proteção contra ataques e agressões por terceiros? Ela pode ser fornecida como um seguro de
grupo, como aquele para desastres naturais, ou terá de ser oferecida na
modalidade de seguro individual, como no caso de acidentes industriais?
Permitam-me registrar, de início, que ambas as modalidades
de seguro representam apenas os dois extremos possíveis de um contínuo, e que a posição de qualquer
risco específico nesse contínuo não é estabelecida definitivamente. Devido aos progressos científicos e
tecnológicos na meteorologia, geologia e engenharia, por exemplo, os riscos que
eram antes considerados homogêneos (permitindo seguro mútuo) podem ficar cada
vez menos homogêneos. Essa tendência é
notável no campo do seguro médico e de saúde.
Com os avanços da genética e da engenharia genética -- impressão digital
genética --, os riscos médicos e de saúde anteriormente considerados como
homogêneos (não específicos) relativos a grandes conjuntos de pessoas se
tornaram cada vez mais específicos e heterogêneos.
Com isso em mente, algo específico poderia ser dito a
respeito do seguro de proteção em especial?
Creio que sim. Afinal, embora
todo seguro exija que o risco seja acidental sob o ponto de vista da seguradora
e do segurado, o acidente de um ataque agressivo é distintamente diferente do
acidente de um desastre natural ou industrial.
Enquanto os desastres naturais e os acidentes industriais são o
resultado de forças naturais e da operação das leis da natureza, a agressão é o
resultado de ações humanas; e enquanto a natureza é cega e não faz
discriminações entre indivíduos, seja em um momento dado ou ao longo do tempo,
um agressor pode fazer discriminações e alvejar deliberadamente vítimas
específicas e escolher o momento do seu ataque.
Fronteiras políticas e seguro
Permitam-me, em primeiro lugar, diferenciar o seguro de
proteção defensiva daquele contra desastres naturais. Com frequência, faz-se uma analogia entre os
dois, e é instrutivo investigar se ou em que medida ela procede. A analogia é que, assim como todo indivíduo
dentro de certas regiões geográficas é ameaçado pelo mesmo risco de terremotos,
enchentes ou furacões, todo habitante dos Estados Unidos ou da Alemanha, por
exemplo, enfrenta o mesmo risco de ser vitimado por um ataque estrangeiro. À parte alguma similaridade superficial --
que abordarei logo em seguida --, é fácil reconhecer duas falhas fundamentais
na analogia. Primeiro, as fronteiras de
regiões assoladas por terremotos, enchentes ou furacões são estabelecidas e
traçadas de acordo com critérios físicos objetivos e, assim, podem ser
classificadas como naturais. Em
contraste marcante, as fronteiras políticas são fronteiras artificiais. As fronteiras dos Estados Unidos mudaram
durante todo o século XIX, e a Alemanha não existia como tal até 1871, mas era
sim composta por quase 50 países distintos.
Certamente, ninguém sustentaria que essa remarcação das fronteiras
norte-americanas e alemãs é o resultado da descoberta de que o risco de
segurança dos norte-americanos e dos alemães dentro dos Estados Unidos e da
Alemanha ampliados era, contrariamente à crença oposta antes prevalecente,
homogêneo (idêntico).
Há uma segunda falha óbvia.
A natureza -- terremotos, enchentes, furações -- é cega em sua
destruição. Ela não faz discriminações
entre lugares e objetos mais ou menos valiosos, mas sim ataca
indiscriminadamente. Em contraste
marcante, um agressor pode fazer e de fato faz discriminações. Ele não ataca ou agride lugares e coisas sem
valor, como o deserto do Saara, mas atinge lugares e coisas que são
valiosas. Tudo o mais constante, quanto
mais valioso for um lugar ou um objeto, maior a probabilidade de que seja alvo
de uma agressão.
Isso suscita uma pergunta crucial: se as fronteiras
políticas são arbitrárias e os ataques de qualquer tipo nunca são
indiscriminados, mas, sim, dirigidos especificamente a lugares e coisas
valiosas, haveria fronteiras não-arbitrárias separando diferentes zonas de
risco de segurança (de ataque)? A resposta
é sim. Essas fronteiras não-arbitrárias
são aquelas da propriedade privada. A
propriedade privada é o resultado da apropriação e/ou produção de objetos ou
efeitos físicos específicos por determinados indivíduos em determinados
lugares. Todo produtor-apropriador
original (dono) demonstra por meio de suas ações que ele considera as coisas
produzidas e apropriadas valiosas (bens), ou não as teria produzido ou
apropriado. As fronteiras da propriedade
de todos são objetivas e estabelecidas intersubjetivamente. Elas são simplesmente determinadas pela
extensão e dimensão das coisas apropriadas e/ou produzidas por qualquer
indivíduo específico. E as fronteiras de
todas as coisas e lugares valiosos são coextensivas às fronteiras da
propriedade. Em qualquer momento
específico, toda coisa ou lugar de valor pertence a alguém; apenas lugares e
coisas sem valor não têm dono.
Rodeados por outros homens, todo apropriador e produtor
também pode se tornar o objeto de um ataque ou agressão. Toda propriedade -- em contraste a coisas
(matéria) -- é necessariamente valiosa; assim, todo dono de propriedade se
torna um possível alvo dos ímpetos agressivos de outros homens. Consequentemente, a escolha de todo
proprietário em relação ao lugar e à forma de sua propriedade também será
influenciada, entre outras incontáveis considerações, por preocupações de
segurança. Tudo o mais constante, todos irão
preferir formas e lugares mais seguros de propriedade a formas e lugares menos
seguros. No entanto, não importa onde um
proprietário e seus bens estejam localizados e qual seja a forma física de sua
propriedade, todo proprietário, ao não abandonar sua propriedade mesmo diante
de uma possível agressão, demonstra sua disposição pessoal de proteger e
defender essas posses.
Contudo, se as fronteiras da propriedade privada são as
únicas fronteiras não-arbitrárias em posição de relação sistemática com o risco
de agressão, então se segue que existem tantas zonas de segurança diferentes
quanto bens possuídos como propriedade, e que essas zonas não são maiores do
que a extensão desses bens. Isto é,
ainda mais do que no caso de acidentes industriais, o seguro de propriedades
contra agressões parece ser um exemplo de proteção individual, e não de grupo
(mútua).
Enquanto o risco de acidentes de um processo de produção
individual é tipicamente independente de sua localização -- de tal modo que, se
o processo fosse replicado pelo mesmo produtor em lugares diferentes, sua
margem de erro permaneceria a mesma -- o risco de agressão contra a propriedade
privada -- a planta de produção -- é diferente de um lugar para o outro. Por sua própria natureza de bens apropriados
e produzidos privadamente, a propriedade é sempre independente e distinta. Toda propriedade está situada em um local
diferente e sob o controle de um indivíduo diferente, e cada lugar se defronta
com um risco de segurança singular. Pode
fazer diferença para minha segurança, por exemplo, se eu resido no campo ou na
cidade, em uma encosta ou em um vale, perto ou longe de um rio, oceano, porto,
rodovia ou rua. Na verdade, mesmo
localidades contíguas não se defrontam com o mesmo risco. Pode fazer diferença, por exemplo, se eu
resido mais acima ou mais abaixo em uma montanha do que o meu vizinho, rio
acima ou rio abaixo, mais perto ou mais longe do oceano, ou simplesmente ao
norte, ao sul, a oeste ou a leste dele.
Além disso, toda propriedade, não importa onde esteja situada, pode ser
moldada e transformada por seu dono de modo a aumentar sua segurança e reduzir
a probabilidade de uma agressão. Posso
adquirir um revólver ou um cofre, por exemplo, ou posso ser capaz de derrubar
um avião que esteja atacando meu quintal ou possuir uma arma a laser que pode
matar um agressor a milhares de quilômetros de distância. Assim, nenhum lugar e nenhuma propriedade são
iguais a outro. Cada proprietário terá
de ser segurado individualmente, e para tanto cada seguradora contra agressões
tem de manter reservas de capital suficientes.
O estado democrático e a guerra total
A analogia tipicamente traçada entre seguro contra desastres
naturais e agressão externa é fundamentalmente falha. Assim como a agressão nunca é indiscriminada,
mas sim seletiva e direcionada, também o é a defesa. Todos têm lugares e coisas diferentes a
defender, e o risco de segurança de ninguém é igual ao de outra pessoa. E, no entanto, a analogia também possui um fundo
de verdade. Contudo, qualquer semelhança
entre desastres naturais e agressão externa se deve não à natureza da agressão e da defesa, mas à natureza um tanto
específica da agressão e da defesa estatais
(conflito interestatal). Como explicado
acima, um estado é uma agência que exerce um monopólio territorial compulsório
de proteção e do poder de cobrar impostos, e qualquer agência assim será
comparativamente mais agressiva porque pode externalizar os custos de tal
comportamento sobre seus súditos. No
entanto, a existência de um estado não aumenta apenas a frequência da agressão;
ela muda todo o seu caráter. A
existência de estados, e sobretudo de estados democráticos, implica que a
agressão e a defesa -- a guerra -- tenderão a ser transformadas em guerras
totais, indiscriminadas.[13]
Considere por um momento um mundo completamente livre de
estados. A maioria dos proprietários
seria segurada individualmente por empresas seguradoras grandes, com frequência
multinacionais, dotadas de reservas de capital enormes. A maioria se não todos os agressores, comportando
riscos ruins, ficaria sem qualquer tipo de seguro. Nessa situação, todo agressor ou grupo de
agressores desejaria restringir seus alvos, preferencialmente a propriedades
não-seguradas, e evitar todos os "danos colaterais", já que, do contrário, eles
se veriam confrontados com uma ou mais poderosas agências profissionais de
defesa. Do mesmo modo, a violência
defensiva seria altamente seletiva e direcionada. Os agressores seriam indivíduos ou grupos
específicos, situados em lugares específicos e providos de recursos
específicos. Em reação a ataques a seus
clientes, as agências seguradoras alvejariam esses lugares e recursos em retaliação,
e desejariam evitar danos colaterais, já que, do contrário, elas se envolveriam
com e seriam responsáveis perante outras seguradoras.
Tudo isso muda inteiramente em um mundo estatista com
conflitos interestatais. Primeiro, se um
estado, os Estados Unidos, atacar outro, por exemplo o Iraque, esse não é um
ataque apenas de um número limitado de pessoas, dotadas de recursos limitados e
situados em um lugar claramente identificável.
Ao contrário, é um ataque de todos os norte-americanos e com todos os
seus recursos. Todo norte-americano
supostamente paga impostos ao governo e está assim, de facto, queira ele ou não, envolvido em toda agressão do
governo. Assim, embora seja obviamente
falso sustentar que todo norte-americano se defronta com o mesmo risco de ser
atacado pelo Iraque, (por mais baixo ou inexistente que esse risco seja, ele é
certamente mais alto na cidade de Nova York do que em Wichita, Kansas, por
exemplo) todo norte-americano torna-se igual em relação à sua participação
ativa, ainda que nem sempre voluntária, em cada uma das agressões de seu
governo.
Segundo, assim como o agressor é um estado, o agredido
também o é: o Iraque. Assim como sua
contraparte, os Estados Unidos, o governo iraquiano tem o poder de cobrar
impostos de seu povo ou de alistá-lo em suas forças armadas. Como pagador de impostos ou recruta, todo
iraquiano está envolvido na defesa de seu governo do mesmo modo que todo
norte-americano é arrastado para o ataque do governo americano. Assim, a guerra se torna uma guerra de todos
os norte-americanos contra todos os iraquianos, isto é, uma guerra total. A estratégia tanto do estado agressor quanto
do defensor mudará conformemente.
Enquanto o agressor continua tendo de ser seletivo quanto aos alvos de
seu ataque, ainda que seja pela única razão de que até as agências cobradoras
de impostos (os estados) são em última análise limitadas pela escassez, o
agressor tem pouco ou nenhum incentivo para evitar ou minimizar danos
colaterais. Ao contrário, dado que toda
a população e a riqueza nacional estão envolvidas no esforço defensivo, danos
colaterais, seja de vidas ou de propriedades, são até desejáveis. Não existe nenhuma distinção clara entre
combatentes e não-combatentes. Todos são
inimigos, e qualquer propriedade oferece apoio ao governo atacado. Assim, todos e tudo estão dentro do
jogo. Do mesmo modo, o estado defensor
estará pouco preocupado com danos colaterais que resultem de sua retaliação ao
agressor. Todo cidadão do estado
agressor é um inimigo e todas as suas propriedades são propriedades inimigas,
tornando-se assim um possível alvo de retaliação. Além disso, todo estado, em conformidade com
esse caráter de guerra interestatal, desenvolverá e empregará mais armas de
destruição em massa, como bombas atômicas, em vez de armas de precisão de longo
alcance, como minha imaginária arma a laser.
Assim, a semelhança entre guerras e catástrofes naturais --
sua aparente destruição e devastação indiscriminadas -- é um traço exclusivo de
um mundo estatista.
Seguro e incentivos
Isso nos leva ao último problema. Vimos que, assim como toda propriedade é
privada, toda defesa tem de ser segurada individualmente por agências
seguradoras capitalizadas, de modo muito parecido a seguros contra acidentes
industriais. No entanto, também vimos
que ambas as modalidades de seguro diferem em um aspecto fundamental. No caso de seguros defensivos, a localização
da propriedade segurada importa. A
apólice por valor segurado será diferente em localidades diferentes. Além disso, os agressores podem se locomover,
seu arsenal de armas pode mudar, e toda a natureza da agressão pode se alterar
com a presença de estados. Assim, mesmo considerando-se
a localização inicial da propriedade, o preço por valor segurado pode se
alterar com mudanças no meio social ou nas vizinhanças do local. Como um sistema de agências seguradoras em
competição reagiria a esse desafio? Em
especial, como ele lidaria com a existência de estados e agressão estatal?
Ao respondermos essas questões, é essencial lembrar algumas
considerações econômicas elementares.
Tudo o mais constante, proprietários privados em geral, e donos de
empresa em especial, preferem localizações com custos de proteção baixos (apólices
mais baratas) e valores de propriedade em alta àquelas com custos de proteção
elevados e valores de propriedade em queda. Consequentemente, há uma
tendência à migração de pessoas e bens de áreas de alto risco e valores de
propriedade em queda para áreas de baixo risco e valores de propriedade em alta.
Além disso, custos de proteção e valores de
propriedade relacionam-se diretamente.
Tudo o mais constante, custos de proteção mais altos (riscos maiores de
agressão) implicam valores de propriedade menores ou em queda, e custos de
proteção menores implicam valores de propriedade maiores ou em alta.
Essas leis e tendências definem a operação de um
sistema competitivo de agências seguradoras de proteção.
Primeiro, ao passo que um monopolista financiado por
impostos manifestará uma tendência a aumentar o custo e o preço da proteção,
agências seguradoras privadas voltadas para o lucro se esforçam para reduzir o
custo de proteção e, assim, fazem os preços cair. Ao mesmo tempo, agências seguradoras estão,
mais do que ninguém, interessadas em valores de propriedade em constante alta,
porque isso implica não apenas que suas próprias posses se apreciam, mas também
e sobretudo que haverá mais propriedades de terceiros para serem
seguradas. Em contraste, se o risco de
agressão aumenta e os valores de propriedade caem, há menos valor para ser
segurado, enquanto o custo de proteção e o preço do seguro aumentam, implicando
um ambiente de negócios desfavorável para uma seguradora. Consequentemente, empresas seguradoras
estariam sob uma pressão econômica permanente para promover a condição
favorável e evitar a condição desfavorável.
Essa estrutura de incentivos tem um impacto fundamental na
operação das seguradoras. Primeiro, no
tocante ao caso aparentemente mais simples da proteção contra crimes e
criminosos comuns, um sistema de seguradoras em competição levaria a uma
mudança dramática na política de crimes atual.
Para reconhecer a dimensão dessa mudança, é instrutivo observar primeiro
a atual e, portanto, familiar política estatista de crimes. Embora seja do interesse dos agentes estatais
combater o crime privado comum (ainda que seja apenas para que existam mais
propriedades das quais cobrar impostos), na condição de agentes financiados por
impostos, eles têm pouco ou nenhum interesse em ser especialmente eficientes na
tarefa de impedi-lo, ou, caso ele já tenha ocorrido, de compensar suas vítimas
e prender ou punir os criminosos. Além
disso, sob condições democráticas, as coisas só pioram. Porque se todos -- tanto agressores quanto
não-agressores, tanto residentes de áreas de alta criminalidade quanto os de
áreas de baixa criminalidade -- podem votar e ser eleitos para cargos públicos,
uma redistribuição sistemática de direitos de propriedade de não-agressores
para agressores e de residentes de áreas de baixa criminalidade para os de
áreas de alta criminalidade é posta em ação e o crime será na verdade
estimulado. Por isso, o crime, e
consequentemente a demanda por serviços de segurança privada de todos os tipos,
nunca estiveram tão elevados. Ainda mais
escandalosamente, ao invés de compensar as vítimas de crimes que ele não evitou
(como deveria), o governo força as vítimas a pagar mais uma vez, como pagadoras
de impostos, pelo custo da apreensão, da prisão, da reabilitação e/ou do lazer
de seus agressores. E ao invés de cobrar
preços de proteção mais altos em áreas de alta criminalidade e mais baixos em
áreas de baixa criminalidade, como as seguradoras fariam, o governo faz
exatamente o contrário. Ele cobra
impostos mais altos em áreas de baixa criminalidade e de valores de propriedade
elevados do que em áreas de alta criminalidade e de valores de propriedade
baixos, ou chega a subsidiar os residentes destas últimas áreas -- as favelas --
à custa daqueles das primeiras áreas, minando condições sociais desfavoráveis
ao crime e promovendo aquelas que o favorecem.[14]
A operação de seguradoras concorrentes seria marcadamente
distinta. Primeiro, se uma seguradora
não impedisse um crime, ela teria de indenizar a vítima. Assim, as seguradoras, mais do que ninguém,
desejariam ser eficientes na prevenção do crime. E ainda que elas não conseguissem evitá-lo,
iriam querer ser eficientes na detecção, apreensão e punição dos criminosos,
porque, ao encontrar e prender um criminoso, a seguradora poderia forçá-lo -- e
não a vítima e sua seguradora -- a pagar pelos danos e pelo custo de
indenização.
Mais especificamente, assim como as empresas seguradoras
atualmente mantêm e continuamente atualizam um detalhado inventário local de
valores de propriedade, elas então manteriam e continuamente atualizariam um
detalhado inventário local de crimes e criminosos. Tudo o mais constante, o risco de agressão
contra qualquer área de qualquer propriedade privada aumenta com a proximidade
e a quantidade e os recursos de agressores em potencial. Assim, as seguradoras
teriam interesse em colher informações de crimes correntes e de criminosos
conhecidos e sua localização, e seria de seu mútuo interesse em minimizar danos
à propriedade, compartilhar essas informações entre si (assim como os bancos
atualmente compartilham informações sobre riscos de crédito ruins entre
si). Além disso, as seguradoras também
ficariam bastante interessadas em colher informações sobre crimes e agressores
em potencial (ainda não cometidos ou conhecidos), e isso levaria a uma revisão
e a uma melhora nas atuais estatísticas -- estatais -- de criminalidade. Para prever a incidência futura de crimes e
assim calcular seu preço atual (apólice), as seguradoras relacionariam a
frequência, a descrição e o caráter dos crimes e criminosos com o ambiente
social em que ocorrem e operam, e desenvolveriam e, sob pressão competitiva,
refinariam continuamente um sistema elaborado de indicadores demográficos e
sociológicos de crimes.[15] Isto é, todo bairro seria descrito, e seus
riscos avaliados, em termos e à luz de uma infinidade de indicadores de crimes,
como a composição de gêneros, de faixas etárias, de raça, de nacionalidades, de
etnias, de religiões, de línguas, de profissões e de rendas.
Consequentemente, e em marcante contraste com a situação
atual, qualquer redistribuição interregional, racial, nacional, étnica,
religiosa, linguística e de renda desapareceria, e uma fonte constante de
conflitos sociais seria eliminada permanentemente. Em seu lugar, a estrutura de preços (apólices)
em crescimento tenderia a refletir com precisão o risco de cada região e seu
ambiente social característico, de modo que ninguém seria forçado a pagar pelo
risco de seguro de ninguém se não o seu e aquele associado ao seu bairro
específico. Ainda mais importante,
baseado em seu sistema continuamente atualizado e refinado de estatísticas de
crimes e valores de propriedade e motivado, além disso, pela mencionada tendência
de migração de lugares de risco-alto/valor-baixo (logo, "ruins") para lugares
de risco-baixo/valor-alto (logo, "bons"), um sistema concorrencial de
seguradoras contra agressão promoveria uma tendência ao progresso civilizatório
(e não à descivilização).
Os governos -- e governos democráticos em especial --
solapam bairros "bons" e promovem "ruins" por meio de seus impostos e políticas
distributivas. Eles também fazem isso, e
possivelmente com um efeito ainda mais danoso, por meio de sua política de
integração forçada. Essa política tem
dois aspectos. Por um lado, para os
proprietários e residentes em lugares e bairros "bons" que se defrontam com um
problema de imigração, a integração forçada significa que eles têm de aceitar,
sem discriminação, qualquer imigrante doméstico como usuário ou turista em
rodovias públicas, como consumidores, clientes, residentes ou vizinhos. Eles são proibidos por seu governo de excluir
qualquer pessoa, inclusive alguém que considerem um indesejado risco em
potencial, da imigração. Por outro lado,
para os proprietários e residentes em lugares e bairros "ruins", que vivenciam
a emigração e não a imigração, a integração forçada significa que eles são
impedidos de se autoprotegerem com eficiência. Ao invés de poderem se livrar por si mesmos do
crime, por meio da expulsão de criminosos conhecidos de seu bairro, eles são
forçado por seu governo a viver na companhia permanente a seus agressores.[16]
Os resultados de um sistema de seguradoras privadas de
proteção estariam em oposição absoluta àqueles efeitos e tendências tão
conhecidos da proteção estatal contra o crime.
Sem dúvida, as seguradoras não poderiam eliminar as diferenças entre
bairros "bons" e "ruins." Na verdade,
essas diferenças poderiam ficar até mais pronunciadas. No entanto, impelidos por seu interesse em
valores de propriedade em alta e em custos de proteção em queda, as seguradoras
promoveriam uma tendência a se desenvolver erguendo e cultivando bairros "bons"
e "ruins." Assim, em bairros "bons", as
seguradoras adotariam uma política de imigração seletiva. Diferentemente de estados, elas não poderiam
e não iriam querer desprezar as inclinações discriminatórias dos segurados
contra imigrantes. Pelo contrário, ainda
mais do que qualquer um de seus clientes, as seguradoras estariam interessadas
na discriminação: admitindo apenas aqueles imigrantes cuja presença implicasse
diminuição de risco de crimes e aumento de valores de propriedade e excluindo
aqueles cuja presença levasse a riscos maiores e valores de propriedade
menores. Isto é, ao invés de eliminar a
discriminação, as seguradoras racionalizariam e aprimorariam sua prática. Baseadas em suas estatísticas sobre crimes e
valores de propriedade, e a fim de reduzir o custo de proteção e aumentar os
valores de propriedade, as seguradoras formulariam e refinariam continuamente
várias regras e procedimentos restritivos (de exclusão) relativos à imigração e
a imigrantes e, assim, confeririam precisão quantitativa -- sob a forma de
preços ou diferenças de preços -- ao valor da discriminação (e ao custo da não-discriminação)
contra imigrantes em potencial (como de alto ou baixo risco e quanto ao seu
valor produtivo).
De modo semelhante, em bairros "ruins", os interesses das
seguradoras e dos segurados coincidiriam.
As seguradoras não iriam querer suprimir as inclinações à expulsão entre
os segurados contra criminosos conhecidos.
Elas racionalizariam tais tendências oferecendo descontos seletivos nos
preços (condicionados a operações específicas de limpeza). De fato, em cooperação uma com a outra, as
seguradoras iriam querer expulsar criminosos conhecidos não apenas de sua
vizinhança imediata, mas da própria civilização, levando-os ao deserto ou à
fronteira aberta da floresta amazônica, ao Saara ou às regiões polares.
Seguro contra a agressão do estado
E quanto à defesa contra o estado? Como as seguradoras nos protegeriam da
agressão do estado?
Primeiro, é essencial lembrar que governos, na condição de monopolistas
compulsórios, financiados por impostos, são inerentemente perdulários e
ineficientes em qualquer coisa que façam.
Isso também é verdadeiro para a tecnologia e para a produção de armas,
para a estratégia e para a inteligência militar, sobretudo em nosso tempo de
alta tecnologia. Deste modo, os estados
não poderiam competir dentro do mesmo território contra agências seguradoras
financiadas voluntariamente. Além disso,
a regra mais importante e geral dentre as regras restritivas a respeito da
imigração -- e formuladas pelas seguradoras para diminuir os custos de proteção
e aumentar os valores da propriedade -- seria aquela relativa aos agentes do
governo. Estados são inerentemente
agressivos e representam um perigo permanente a todos os segurados e
seguradoras. Assim, as seguradoras em
especial iriam querer excluir ou restringir seriamente -- como risco potencial
de segurança -- a imigração (entrada territorial) de todos os agentes
conhecidos do governo, e induziriam os segurados, seja como uma condição para o
seguro ou para uma apólice menor, a excluir ou limitar seriamente qualquer
contato direto com agentes conhecidos do governo, fosse como visitante,
consumidor, cliente, residente ou vizinho.
Isto é, onde quer que as empresas seguradoras operassem -- em todos os
territórios livres --, os agentes estatais seriam tratados como párias
rejeitados, potencialmente mais perigosos do que qualquer criminoso comum. Desse modo, os estados e seu pessoal poderiam
operar e residir apenas em territórios separados de, e no entorno de,
territórios livres. Além disso, devido à
produtividade econômica comparativamente mais baixa dos territórios estatistas,
os governos se enfraqueceriam continuamente pela emigração de seus residentes
de maior valor produtivo.
Agora, e se um governo decidisse atacar ou invadir um
território livre? É mais fácil falar
isso do que fazer! Quem e o que ele
atacaria? Não haveria nenhum oponente
estatal. Apenas proprietários privados
de bens e suas agências seguradoras privadas existiriam. Ninguém, e muito menos as seguradoras,
presumivelmente se envolveria em agressões ou mesmo em provocações. Se houvesse alguma agressão
ou provocação contra o estado, essa seria a ação de uma pessoa específica, e
nesse caso o interesse do estado e das agências seguradoras coincidiriam
perfeitamente. Ambos iriam querer ver o
agressor punido e julgado responsável por todos os danos causados. Mas sem qualquer agressor-inimigo, como o
estado poderia justificar um ataque e ainda mais um ataque tão
indiscriminado? E certamente ele teria
de justificá-lo! Porque o poder de todo
governo, até do mais despótico deles, apóia-se em última análise na opinião
popular e no consentimento, como la
Boétie, Hume, Mises e Rothbard explicaram.[17] Reis e presidentes podem emitir uma ordem de
ataque, é claro. Mas tem de haver
multidões de outros homens dispostos a executar sua ordem para colocá-la em prática. Tem de haver generais
recebendo e seguindo a ordem, soldados dispostos a marchar, matar e morrer, e
produtores domésticos dispostos a continuar produzindo para financiar a
guerra. Se faltasse essa disposição
consensual porque as ordens dos governantes eram consideradas ilegítimas, até o
governo aparentemente mais poderoso se tornaria ineficiente e entraria em
colapso, como os exemplos recentes do Xá do Irã e da União Soviética
ilustraram. Assim, sob o ponto de vista
dos líderes do estado, um ataque a territórios livres teria de ser considerado
extremamente arriscado. Nenhum esforço
de propaganda, não importa quão elaborado, faria o povo acreditar que seu
ataque fosse mais do que uma agressão contra vítimas inocentes. Nessa situação, os governantes ficariam
satisfeitos em manter um controle monopolístico sobre seu território atual, ao
invés de correrem o risco de perder legitimidade e todo o seu poder em uma
tentativa de expansão territorial.
No entanto, por mais improvável que isso pareça, o que
aconteceria se um estado ainda assim atacasse e/ou invadisse um território
livre contíguo? Nesse caso, o agressor
não encontraria uma população desarmada.
Apenas em territórios estatistas a população civil está
caracteristicamente desarmada. Estados
por todo o mundo buscam desarmar seus próprios cidadãos de modo a ter maior
poder de expropriá-los e cobrar impostos sobre eles. Em contraste, seguradoras em territórios
livres não iriam querer desarmar os segurados.
Tampouco poderiam fazê-lo.
Afinal, quem desejaria ser protegido por alguém que exigisse, como um
primeiro passo, que se abrisse mão de seus principais meios de autodefesa? Pelo contrário, as agências seguradoras
estimulariam a propriedade de armas entre seus segurados como meio de dar
descontos seletivos nos preços.
Além disso, fora a oposição de cidadãos armados
privadamente, o estado agressor encontraria a resistência de não apenas uma mas
com toda a probabilidade de várias agências seguradoras e de resseguros. No caso de um ataque ou invasão bem-sucedido,
essas seguradoras se defrontariam com enormes pagamentos de indenização. Ao contrário do estado agressor, no entanto,
essas seguradoras seriam empresas eficientes e competitivas. Tudo o mais constante, o risco de um ataque --
e, logo, o preço do seguro de defesa -- seria maior em localidades adjacentes
ou muito próximas a territórios estatistas do que em lugares distantes de
qualquer estado. Para justificar esse
preço mais elevado, as seguradoras teriam de demonstrar prontidão defensiva vis-à-vis qualquer possível agressão
estatal contra seus clientes, sob a forma de serviços de inteligência, de
propriedade de armas e equipamentos apropriados, e de pessoal e treinamento
militar. Em outras palavras, as
seguradoras estariam preparadas -- efetivamente equipadas e treinadas -- para a
contingência de um ataque estatal e prontas para reagir com uma estratégia de
defesa dupla. Por um lado, no tocante às
suas operações em territórios livres, as seguradoras estariam prontas para
expulsar, capturar ou matar invasores, tentando ao mesmo tempo evitar ou
minimizar danos colaterais. Por outro
lado, no tocante às suas operações em territórios estatais, as seguradoras
estariam prontas para alvejar o agressor -- o estado -- em retaliação. Isto é, as seguradoras
estariam prontas para contra-atacar e matar, seja com armas precisas de longa
distância ou com grupos de assassinato, agentes estatais do topo da hierarquia
governamental, como reis, presidentes ou primeiros-ministros, até a base,
tentando ao mesmo tempo evitar ou minimizar danos colaterais à propriedade de
civis inocentes (agentes não-estatais), e estimulariam assim a resistência
interna contra o governo agressor, promoveriam sua deslegitimização e,
possivelmente, incitariam a liberação e a transformação do território estatal
em um país livre.
Recuperando nosso direito de autodefesa
Completo assim o meu argumento. Primeiro, mostrei que a ideia de um estado
protetor e da proteção estatal da propriedade privada está baseada em um erro
teórico fundamental, e que esse erro tem tido consequências desastrosas: a
destruição e a insegurança da propriedade privada e guerras perpétuas. Segundo, mostrei que a resposta correta à pergunta
de quem deve defender os proprietários privados da agressão é a mesma para a
produção de qualquer outro bem ou serviço: proprietários privados, cooperação
baseada na divisão do trabalho e competição de mercado. Terceiro, expliquei como um sistema de
seguradoras em busca de lucro minimizaria com eficiência a agressão, seja por
criminosos privados ou por estados, e promoveria uma tendência à civilização e
à paz perpétua. A única tarefa que
falta, então, é implementar essas ideias: deixar de consentir e de se dispor a
cooperar com o estado e promover sua deslegitimização perante a opinião pública,
convencendo outros a fazer o mesmo. Sem
a percepção e o juízo errôneos do povo quanto à justiça e à necessidade do
estado, e sem a cooperação voluntária do povo, até o governo aparentemente mais
poderoso implodiria e seus poderes, sumiriam.
Deste modo libertados, recuperaríamos nosso direito de autodefesa e
seríamos capazes de nos voltar a agências livres e não-regulamentadas em busca
de eficiente ajuda profissional em todas as questões de proteção e de solução
de conflitos.
Tradução de Ricardo Bernhard
[1] James M. Buchanan and Gordon
Tullock, The Calculus of Consent (Ann Arbor: University of Michigan
Press, 1962); James M. Buchanan, The Limits of Liberty (Chicago:
University of Chicago Press, 1975); para uma crítica, cf. Murray N. Rothbard,
"Buchanan and Tullock's Calculus of Consent," em idem, The Logic of
Action, vol. 2, Applications and Criticism from the Austrian School (Cheltenham,
U.K.: Edward Elgar, 1995); idem, "The Myth of Neutral Taxation," em ibid.; Hans-Hermann
Hoppe, The Economics and Ethics of Private Property (Boston: Kluwer,
1993), cap. 1.
[2] Sobre esse ponto específico,
cf. Lysander Spooner, No Treason: The Constitution of No Authority (Larkspur,
Colo.: Pine Tree Press, 1996).
[3] Cf. Hans-Hermann Hoppe, "The
Trouble With Classical Liberalism," Rothbard-Rockwell Report 9, no. 4
(1998).
[4] Cf. Hans-Hermann Hoppe,
"Where The Right Goes Wrong," Rothbard-Rockwell Report 8, no. 4 (1997).
[5] Cf. John Denson, ed., The
Costs of War (New Brunswick, N.J.: Transaction Publishers, 1997).
[6] Ludwig
von Mises, Socialism (Indianapolis: Liberty Classics, 1981);
Hans-Hermann Hoppe, Uma
Teoria sobre Socialismo e Capitalismo (Instituto Ludwig von
Mises Brasil, 2010), cap. 6.
[7] Murray
N. Rothbard, A Ética da
Liberdade (Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2010), esp. caps. 22 e 23.
[8] Murray
N. Rothbard, Power and Market (Kansas
City: Sheed Andrews and McMeel, 1977), p. 2.
[9] Gustave
de Molinari, Da Produção
de Segurança (New York: Center for Libertarian Studies, 1977).
[10] Murray
N. Rothbard, Power and Market, cap. 1;
idem, For A New Liberty
(New York: Collier, 1978), caps. 12 and 14.
[11] Morris and Linda Tannehill, The Market for Liberty (New York:
Laissez Faire Books, 1984), sobretudo parte 2.
[12] Sobre a "lógica" do seguro,
cf. Ludwig von Mises, Human Action (Chicago: Regnery, 1966), cap. 6;
Murray N. Rothbard, Man, Economy, and State (Auburn, Ala.: Ludwig von
Mises Institute, 1993), pp. 498ff.; Hans-Hermann Hoppe, "On Certainty and
Uncertainty, Or: How Rational Can Our Expectations Be?" Review of Austrian
Economics 10, no. 1 (1997); também Richard von Mises, Probability,
Statistics, and Truth (New York: Dover, 1957); Frank H. Knight, Risk,
Uncertainty, and Profit (Chicago: University of Chicago Press, 1971).
[13] Sobre a relação entre estado e
guerra, e sobre a transformação histórica da guerra de limitada (monárquica) em
total (democrática), cf. Ekkehard Krippendorff, Staat and Krieg (Frankfurt/M.:
Suhrkamp, 1985); Charles Tilly, "War Making
and State Making as Organized Crime," in Bringing the State Back In,
Peter B. Evans, Dietrich Rueschemeyer, Theda Skocpol, eds. (Cambridge:
Cambridge University Press, 1985); John F.C. Fuller, The Conduct of War (New
York: Da Capo Press, 1992); Michael Howard, War in European History (New
York: Oxford University Press, 1976); Hans-Hermann Hoppe, "Time Preference,
Government, and the Process of De-Civilization," in The Costs of War,
John V. Denson, ed. (New Brunswick, N.J.: Transaction Publishers, 1997); Erik
von Kuehnelt-Leddihn, Leftism Revisited (Washington, D.C.: Regnery,
1990).
[14] Sobre crime e punição, no passado e
no presente, cf. Terry Anderson and P.J. Hill, "The American Experiment in
Anarcho-Capitalism: The Not So Wild, Wild West," Journal of Libertarian
Studies 3, no. 1 (1979); Bruce L. Benson, "Guns for Protection, and Other
Private Sector Responses to the Government's Failure to Control Crime," Journal
of Libertarian Studies 8, no. 1 (1986); Roger D. McGrath, Gunfighters, Highwaymen,
and Vigilantes: Violence on the Frontier (Berkeley: University of
California Press, 1984); James Q. Wilson and Richard J. Herrnstien, Crime
and Human Nature (New York: Simon and Schuster, 1985); Edward C. Banfield, The
Unheavenly City Revisited (Boston: Little, Brown, 1974).
[15] Para
uma visão geral sobre a medida em que as estatísticas oficiais ? estatistas ?,
sobretudo sobre crimes, deliberadamente ignoram, deturpam ou distorcem os fatos
conhecidos por razões da assim chamada política pública (correção política),
cf. J. Philippe Rushton, Race, Evolution, and Behavior (New Brunswick, N.J.: Transaction Publishers, 1995);
Michael Levin, Why Race Matters (Westport, Conn.: Praeger, 1997).
[16] Cf. Hans-Hermann Hoppe, "Free
Immigration or Forced Integration," Chronicles (July 1995).
[17] Étienne de la Boétie, The Politics of
Obedience: The Discourse of Voluntary Servitude (New York: Free Life Editions, 1975); David
Hume, "The First Principles of Government," in idem, Essays: Moral,
Political, and Literary (Oxford: Oxford University Press, 1971); Ludwig von
Mises, Liberalism: In the Classical Tradition (San Francisco: Cobden
Press, 1985); Murray N. Rothbard, Egalitarianism As A Revolt
Against Nature and Other Essays (Washington, D.C.: Libertarian Review Press, 1974.).
Referências
Anderson, Terry, and P.J.
Hill. 1979. "The American Experiment in Anarcho-Capitalism: The Not So Wild,
Wild West." Journal of Libertarian Studies 3, no. 1.
Banfield, Edward C. 1974. The Unheavenly City Revisited. Boston: Little, Brown.
Benson, Bruce L. 1986. "Guns for Protection, and Other Private Sector
Responses to the Government's Failure to Control Crime." Journal of
Libertarian Studies 8, no. 1.
Boétie, Etienne de la. 1975. The Politics of Obedience: The Discourse
of Voluntary Servitude. New York:
Free Life Editions.
Buchanan, James M. 1975. The Limits of Liberty. Chicago:
University of Chicago Press.
Buchanan, James M., and Gordon Tullock. 1962. The Calculus of Consent.
Ann Arbor: University of Michigan
Press.
Denson, John V., ed. 1997. The Costs of War. New Brunswick, N.J.:
Transaction Publishers.
Fuller, John F.C. 1992. The Conduct of War. New York: Da Capo Press.
Hoppe, Hans-Hermann. 1993. The Economics and Ethics of Private Property.
Boston: Kluwer.
--. 1998. "The Trouble With Classical Liberalism." Rothbard-Rockwell
Report 9, no. 4.
--. 1997. "Where The Right Goes Wrong." Rothbard-Rockwell Report 8,
no. 4.
--. 1997. "On Certainty and Uncertainty, Or: How Rational Can Our
Expectations Be?" Review of Austrian Economics 10, no. 1.
--. 1997. "Time Preference, Government, and the Process of De-Civilization."
The Costs of War. John V. Denson, ed. New Brunswick, N.J.:
Transaction Publishers.
--. July 1995. "Free Immigration or Forced Integration?" Chronicles.
--. 1989. A Theory of Socialism and Capitalism. Boston: Kluwer.
Howard, Michael. 1976. War in European History. New
York: Oxford
University Press.
Hume, David. 1971. "The First Principles of Government." Essays: Moral,
Political, and Literary. Oxford: Oxford University
Press.
Knight, Frank H. 1971. Risk, Uncertainty, and Profit. Chicago: University
of Chicago Press.
Krippendorff, Ekkehard. 1985. Staat und Krieg. Frankfurt/M.:
Suhrkamp.
Kuehnelt-Leddihn, Erik von. 1990. Leftism Revisited. Washington, D.C.:
Regnery.
Levin, Michael. 1997. Why Race Matters. Westport, Conn.:
Praeger.
McGrath, Roger D. 1984. Gunfighters, Highwaymen and Vigilantes: Violence
on the Frontier. Berkeley: University of California
Press.
Mises, Ludwig von. 1981. Socialism. Indianapolis:
Liberty
Classics.
--. 1985. Liberalism: In the Classical Tradition. San Francisco: Cobden
Press.
--. 1966. Human Action. Chicago:
Regnery.
Mises, Richard von. 1957. Probability, Statistics, and Truth. New York: Dover.
Molinari, Gustave de. 1977. The Production of Security. New York:Center for
Libertarian Studies.
Rothbard, Murray
N. 1995. The Logic of Action, Vol. 2. Applications and Criticism from
the Austrian School. Cheltenham, U.K.: Edward Elgar.
--. 1998. The Ethics of Liberty.
New York: New York University
Press.
--. 1993. Man, Economy, and State. Auburn, Ala.:
Ludwig von Mises Institute.
--. 1978. For A New Liberty.
New York:
Collier.
--. 1977. Power and Market. Kansas
City: Sheed Andrews and McMeel.
--. 1974. Egalitarianism As A Revolt Against Nature and Other Essays.
Washington, D.C.: Libertarian Review Press.
Rushton, J. Philippe. 1995. Race, Evolution, and Behavior. New Brunswick, N.J.:
Transaction Publishers.
Spooner, Lysander. 1966. No Treason: The Constitution of No Authority.
Larkspur, Colo.:
Pine Tree Press.
Tannehill, Morris and Linda. 1984. The Market for Liberty. New York: Laissez Faire Books.
Tilly, Charles. 1985. "War Making and State Making as Organized Crime." Bringing
the State Back In. Peter B. Evans, Dietrich Rueschemeyer, Theda Skocpol,
eds. Cambridge: Cambridge University Press.
Wilson, James Q., and Richard J. Herrnstein. 1985. Crime and Human
Nature. New York:
Simon and Schuster.