Onde
estamos hoje
Em julho, entramos no sexto ano desta crise,
embora vários setores da mídia continuem determinados a chamar a atual situação
de "recuperação". Mero auto-engano. O mundo está em uma crise contínua há meia
década. Enormes doses de Valium e Prozac
-- as quais os bancos centrais tecnicamente rotulam de "afrouxamento quantitativo"
(quantitative easing, ou simplesmente
QE) -- foram ministradas para acalmar os nervos e dar a falsa impressão de
cura.
Um QE, obviamente, nada mais é do que a
simples criação de novas quantias de unidades monetárias digitais. Tais dígitos eletrônicos inicialmente inundam
os bancos com reservas extras que podem ser utilizadas livremente, as quais são
majoritariamente injetadas nos mercados financeiros. O propósito dos bancos centrais ao criar
dinheiro é manipular os preços dos ativos e as taxas de juros. O QE é uma droga extremamente perigosa. É um alucinógeno. Pode fazer o paciente se sentir melhor por
algum tempo, mas é incapaz de curar a doença.
Com efeito, deixa o paciente ainda mais doente. A economia global sofre de graves distorções
que são o resultado de vários anos de crédito artificialmente barato: bancos
excessivamente alavancados, endividamento excessivo, preços dos ativos
inflacionados, capital direcionado para investimentos insustentáveis. E baratear ainda mais o crédito -- e manipular
com ainda mais intensidade os preços dos ativos -- é justamente o objetivo do
QE. O QE serve apenas para estimular
mais endividamentos e aumentar a oferta monetária.
O QE e taxas de juros forçosamente baixas são
uma política equivalente ao crack. Ela
vicia. Não há fim a ela.
Sempre que os bancos centrais mundiais
anunciam novas rodadas de afrouxamento quantitativo -- seja na forma de mais
redução de juros ou de monetização direta dos títulos da dívida pública --, a
motivação é a mesma. Tais medidas possuem
um perceptível toque de desespero, algo que não passa despercebido do
público. Toda política monetária
expansionista sempre será, em última instância, ineficaz. Ou, para ser mais exato, ela será eficaz
apenas em postergar um pouco mais a necessária correção e liquidação dos
enormes desequilíbrios gerados pelas políticas monetárias expansionistas
anteriores, o que significa que ela estará contribuindo apenas para que o
inevitável ajuste final seja ainda mais doloroso. Trata-se de uma medida contraproducente e
destrutiva. E certamente não está
ajudando a restaurar a confiança.
Ainda assim, vários acadêmicos e vários
comentaristas econômicos não desistem.
Segundo eles, se o Banco Central Europeu houvesse cortado 0,5 pontos
percentuais em vez de 0,25, o mercado poderia ter reagido de maneira mais
otimista. Talvez isso teria restaurado a
confiança. É mesmo? Os principais bancos centrais mundiais --
BCE, Fed e Banco da Inglaterra -- já estão hoje submetendo suas economias a
taxas de juros abaixo de 1%. Quão
realista é pressupor que a chave para a recuperação está em mais um corte de
mais 0,25 pontos percentuais?
Aos entusiastas das infindáveis políticas de
'estímulo' monetário restou apenas se agarrar com crescente vigor à sua própria
retórica. O que mais eles podem fazer? Sua purpurinada visão de mundo -- segundo a
qual em um sistema de ilimitado poder de criação de dinheiro fiduciário o banco
central sempre poderá gerar mais "demanda agregada" ao simplesmente fornecer
mais dinheiro ao sistema bancário -- está na lona.
O
dinheiro nunca é neutro
Que a política monetária dos principais
bancos centrais mundiais fosse acabar neste beco sem saída não é nenhuma
surpresa para quem conhece a teoria econômica.
Foi surpresa apenas para aqueles que possuem a simplista e limitada
visão convencional sobre estímulos monetários.
Frases do tipo "o BCE está tentando desobstruir o fluxo de crédito na
zona do euro" servem apenas para mascarar a complexidade dos reais efeitos da
criação de dinheiro e da manipulação dos juros, e fazem com que as recorrentes
políticas de estímulo monetário pareçam não apenas inócuas como também
francamente positivas. Afinal, quem
poderia ser contra o nobre propósito de desobstruir o crédito, fornecer
liquidez aos mercados e estimular a atividade econômica?
Uma das principais contribuições de Ludwig
von Mises à teoria monetária foi a sua demonstração categórica da não-neutralidade da moeda. Ele demonstrou que alterações no poder de
compra do dinheiro fazem com que os preços de diferentes bens e serviços se
alterem de uma maneira que não é simultânea e nem uniforme, e que é incorreto
afirmar que alterações na quantidade de dinheiro geram mudanças proporcionais e
simultâneas no 'nível' de preços.
Sendo assim, um estímulo monetário nunca
afetará o PIB e a inflação -- dois agregados estatísticos aos quais a mídia e
os economistas atribuem avassaladora importância -- de maneira direta e
exclusiva. Todo e qualquer estímulo
monetário irá afetar e alterar várias outras variáveis também, e esses outros
efeitos possuem consequências bem mais profundas: a política monetária sempre
irá alteras os preços relativos, sempre irá alterar o direcionamento dos
investimentos, sempre irá alterar a maneira como recursos escassos são alocados
na economia, e sempre irá alterar a distribuição de renda e riqueza. Todo estímulo monetário sempre irá criar
ganhadores e perdedores.
Inevitavelmente.
Os defensores das políticas de expansão
monetária alegam que todos se beneficiam do "estímulo econômico" que elas
geram. No entanto, o dinheiro que é
criado não chega a todas as pessoas da economia ao mesmo tempo; sendo assim,
ele não afeta os preços de maneira uniforme e simultânea. Como regra geral, aqueles que primeiro
recebem este dinheiro recém-criado se beneficiam à custa daqueles que o recebem
por último. Aqueles que, na cadeia da
distribuição deste dinheiro, estão localizados mais próximos do produtor de
dinheiro (o banco central) serão sempre os ganhadores. Estes normalmente são os bancos e todos os
participantes do mercado financeiro.
Eles podem gastar o dinheiro recém-criado antes que este se disperse por
toda a economia e eleve os preços. Sendo
assim, eles podem gastar um dinheiro cujo poder de compra ainda não foi
afetado. Aqueles que recebem este
dinheiro por último veem seu poder de compra ser erodido, pois, quando sua
renda nominal aumenta, os preços já subiram há mais tempo.
No presente estágio do mega-ciclo de crédito,
mais acomodação monetária irá apenas ajudar os bancos a conceder mais
empréstimos insustentáveis e a financiar ativos que já estão com preços
artificialmente altos. Várias 'bolhas'
-- que são resultado de expansões monetárias passadas -- continuarão sendo
formadas, sustentadas e infladas ainda mais.
As forças de mercado -- que, caso contrário, iriam ajustar os preços,
realocar os ativos e trazer a economia de volta ao equilíbrio -- são desta
forma completamente debilitadas.
Uma
das consequências inesperadas da manipulação dos juros
A expansão monetária feita pelo banco central
em conjunto com o sistema bancário é uma forma de intervenção de mercado. E, como toda forma de intervenção, cria uma
série de consequências inesperadas, muitas das quais são difíceis de serem
identificadas claramente, e são ainda mais difíceis de serem
quantificadas. Mas são extremamente
reais. A seguir, um exemplo real e
bastante perceptível.
Tanto nos EUA quanto na Europa está havendo
uma tendência de se substituir atendentes nos caixas de supermercados por
máquinas de autoatendimento que permitem aos fregueses escanear o código de
barra de seus produtos e fazer o pagamento por conta própria. Trata-se de mais um caso de trabalho humano
sendo substituído por máquinas. Uma
análise superficial diria que isso é um mero sinal dos tempos, uma consequência
inevitável do progresso tecnológico. No
entanto, tal fenômeno não é apenas uma consequência da tecnologia. A substituição de trabalho humano por
máquinas que, no fundo, geram mais trabalho do que comodidade para os
consumidores é resultado de um cálculo econômico feito pelo empreendedor --
neste caso, pelos gerentes e administradores dos supermercados.
O gasto com a aquisição das máquinas, o
capital que o administrador do supermercado deixa de investir em outras áreas
para poder adquirir as máquinas, os juros que ele tem de pagar sobre os
empréstimos contraídos para adquirir as máquinas, e todos os potenciais
prejuízos futuros decorrentes do manuseio inapropriado das máquinas pelos
clientes do supermercado -- ou até mesmo o possível aumento do roubo de itens
do supermercado em decorrência da menor quantidade de empregados para vigiar os
clientes -- terão de ser comparados à redução de custo permitida pela redução
do emprego de pessoas nos caixas do supermercado.
No atual cenário de juros forçosamente
baixos, este cálculo econômico parece estar a favor das máquinas. Afinal, quanto menores os juros, maior o
incentivo para se contrair empréstimos para financiar a aquisição de máquinas
para substituir o trabalho humano. Este
desemprego diretamente causado pela manipulação dos juros é certamente uma
consequência inesperada de uma política monetária expansionista.
Seria assim em um genuíno livre mercado? A resposta mais curta é: impossível
saber. Mas o que podemos saber com
certeza é que, no atual arranjo artificialmente criado pelos bancos centrais,
não é economicamente racional manter pessoas trabalhando como caixas de
supermercado, pois é muito mais barato substituí-las por máquinas de
autoatendimento.
Acrescente a isso as crescentes
regulamentações exigidas pelo estado de bem-estar social, os encargos sociais e
trabalhistas, as leis de salário mínimo, as licenças de maternidade e de
paternidade, e todas as outras leis que visam à "proteção do trabalhador", e
vemos claramente como os governos estão elevando o custo de empregar pessoas e
encarecendo a mão-de-obra humana ao mesmo tempo em que a política monetária dos
bancos centrais em favor de taxas de juros cada vez menores e de empréstimos
cada vez mais fartos e baratos estão facilitando cada vez mais a aquisição de
máquinas. Sob qualquer ângulo que se
veja, os trabalhadores estão sendo expulsos do mercado pelos governos. A legislação para protegê-los serve apenas
para encarecer sua mão-de-obra ao passo que esforços para baratear o crédito
tornam o investimento em máquinas uma alternativa bem mais barata.
Não me entenda mal: o padrão de vida de uma
sociedade é sobejamente elevado quando se aumenta o uso de capital produtivo
(máquinas) por trabalhador. E para
continuarmos elevando nosso padrão de vida, temos de continuar aumentando essa
proporção de capital por trabalhador. E
máquinas de autoatendimento em supermercado sem dúvida representam um aumento
da quantidade de capital na economia. Aumentar
a quantidade de capital é a única maneira de se expandir a produtividade
humana. Mas há uma maneira certa e uma
maneira errada de se fazer isso. A
maneira correta é por meio da poupança, da abstenção do consumo, o que libera
recursos reais de determinados setores da economia (aqueles mais próximos do
consumo final) e os direciona para ser utilizados como capital em investimentos
voltados para o longo prazo. [Veja mais detalhes deste processo aqui]. O quanto deve ser investido em capital não é
algo que deve ser dependente das decisões de burocratas de bancos centrais e
suas manipulações monetárias; deve ser o resultado de decisões voluntárias de
poupança.
Estas decisões de livre mercado podem perfeitamente
reduzir a velocidade de investimentos em capital, mas esta menor velocidade
seria totalmente apropriada. A estrutura
produtiva resultante deste arranjo voluntário seria muito mais estável e
sustentável. Por outro lado,
investimentos estimulados pela criação de dinheiro -- e não pela poupança --
levam a uma alocação insustentável de capital, justamente a causa primária dos
ciclos econômicos. O simples fato de
grandes setores de uma economia dependerem de contínuas doses de estímulo
monetário para serem sustentados em sua dimensão atual já é uma clara indicação
das graves distorções geradas pelas políticas monetárias. Quanto mais disso o sistema pode aguentar?
Conclusão
É uma enorme ingenuidade -- ou um sinal de
incrível arrogância -- acreditar que bancos centrais podem antecipar todas as
consequências de suas intervenções monetárias.
Dizer que elas são benéficas para todos é algo totalmente
incorreto.
Uma política monetária expansionista pode
lograr apenas um efeito: estimular mais pessoas a tomarem mais empréstimos e a se
endividarem ainda mais. A possível
elevação do PIB que tal medida gera tem como efeito colateral o aumento da
alavancagem dos bancos e o aumento da concessão de empréstimos de risco. O atual martírio vivenciado pelo mundo foi
gerado justamente por este tipo de estímulo monetário, o qual ocorreu por
vários anos seguidos. Foi isso que gerou
a crise financeira, bancária e de endividamento. No momento, as autoridades estão combatendo
uma crise bancária estimulando os bancos a incorrerem em ainda mais
riscos. É impossível você reduzir juros
e expandir a oferta monetária e esperar que isso leve a uma desalavancagem e a
uma melhoria da situação do sistema bancário.
É particularmente bizarro ver economistas
afirmando que novas intervenções dos bancos centrais -- tanto na forma de mais
redução de juros quanto na forma da compra direta de títulos dos governos --
irá restaurar a confiança no sistema.
Será que esses especialistas realmente acreditam que o público irá se
sentir mais confiante caso bancos já excessivamente alavancados cresçam ainda
mais rapidamente com a ajuda das impressoras dos bancos centrais? Será que a incerteza acerca do excessivo
endividamento dos governos será abolida caso os bancos centrais prometam
sustentar estes governos por meio de uma política que se resume a nada mais do
que imprimir dinheiro e comprar títulos do governo -- algo que simplesmente
estimula o aumento dos déficits? Seria
isso uma solução ou apenas um adiamento politicamente conveniente do inevitável
acerto de contas?
Isso não pode terminar bem.