Um dos assuntos mais discutidos
atualmente na prestação de serviços de telecomunicações, em especial o serviço
de acesso a Internet, é a respeito da chamada neutralidade de rede. Há um sem
número de artigos temáticos, com argumentos a favor e contra a proposta. Tal
assunto, aparentemente transvestido de questão prioritariamente técnica tem
repercussões que podem ser muito importantes para a Internet e para a
comunicação através dessa rede. Desta maneira, o presente artigo tem como
proposta abordar esse tema, fazendo uma análise das principais opiniões do tema
e apresentando uma linha argumentativa com uma perspectiva calcada na teoria da
Escola Austríaca de Economia.
Apresentando conceitos
Inicialmente, há necessidade de
definir o que é neutralidade de rede. Tecnicamente, a neutralidade de rede pode
ser definida como tradução de network
neutrality que consiste no princípio de desenho da rede de comunicações,
segundo o qual esta rede ou quem a opera, seja em que nível for, deve ser
neutra em relação aos pacotes de conteúdo que por ela transitam[1].
Na prática, neutralidade de rede significa que todas as informações que
trafegam na rede devem ser tratadas da mesma forma. Em uma definição mais
cristalizada, Sergio Silveira sintetiza o seguinte: "o dono das redes físicas deve ser neutro em relação ao tráfego de
informações. Na prática, a neutralidade impede que as Operadoras da Telecom
possam bloquear pacotes de dados, filtrar o tráfego e definir que tipo de
aplicações podem andar mais ou menos rápido dentro dos seus cabos e fibras
óticas".[2]
Talvez, a melhor maneira para
ter um entendimento próximo ao princípio
da neutralidade de rede (PNR) é mostrar alguns exemplos de redes não-neutras. O primeiro exemplo é a rede dos
Correios e serviço de entrega rápida
(Sedex), o segundo é a rede rodoviária e o tráfego de veículos em uma estrada.
No caso dos Correios, o cliente paga mais caro para um entrega mais rápida
daquele pacote de correspondência. O pacote tem prioridade no uso da rede de
logística dos Correios. Nesse caso, não importa o pacote ser meramente uma
simples carta ou alguma encomenda. Não há discriminação do conteúdo, mas de
velocidade. Já para as cartas comuns a rede logística dos Correios é "neutra".
No exemplo da rodovia, há
alguma diferenciação de tráfego na estrada. Os exemplos de exceções ao
princípio da neutralidade nesse caso se dão basicamente por motivo de
segurança: ambulâncias e viaturas policiais têm preferência de passagem e podem
trafegar mais rápido, já veículos pesados têm limitações de velocidade e deve
dar passagem aos mais leves, para todos os demais veículos não há
discriminação. Nesse segundo caso há uma discriminação por tipo de "pacote"
(tipo do veículo) que trafega. Fosse o caso de qualquer veículo trafegar na
mesma velocidade a rodovia seria "neutra".
Definindo a problemática
Entendido o conceito de
neutralidade de rede, é importante mencionar, conforme Guilherme P. Pinheiro
preconiza, que a Internet não possui uma administração centralizada, mas
constitui um esforço comum de inúmeras organizações, governos, empresas
privadas para sua operacionalização.
Desta maneira, atualmente não
existe uma regulação internacional, ou mesmo nacional, sistematizada e geral
para a rede mundial de computadores. Por isso os autores Costa do Vale, Coutinho
e Alves Jr. seguem a linha de Pinheiro e argumentam que tanto a administração
quanto a operação da Internet são descentralizadas, apenas alguns serviços tais
como definição de padrões e pesquisas e ainda a distribuição dos endereços são
administrados por instituições regulamentadoras.[3]
Nessa linha, informam que enquanto no Brasil o principal orgão de administração
da rede é o Comitê Gestor Internet no resto do mundo as principais instituições
são listadas abaixo:
•The Internet Society (ISOC) -- procura
orientar a pesquisa e utilização através de fóruns, debates e publicações.
•The Internet Architeture Board
(IAB) -- fundada em 1983 e integrada ao ISOC em 1992, coordena os grupos IETF e
IRTF descritos abaixo, na pesquisa e desenvolvimento envolvidos no
funcionamento da Internet.
•The Internet Research Task
Force (IRTF) -- grupo de pesquisadores que se dedicam a projetos de longo prazo
referentes ao funcionamento da Internet.
•The Internet Engineering Task
Force (IETF) -- grupo de pesquisadores responsáveis pelo desenvolvimento de
padrões a serem divulgados através de Request for Comments (RFC) que no
princípio tinham a intensão de serem propostas e tornaram-se padrões oficiais
da Internet.
•The Internet Network
Information Center (InterNIC) -- composto de 3 instituições (AT&T, PSI e
General Atomics) que organizam a distribuição dos endereços e registros de
domínios e também das RFC's.
•The Internet Assigned Numbers
Authority (IANA) -- mantido pelo Instituto de Ciência e Informação da
Universidade do Sul da Califórnia, controla a distribuição dos identificadores
para serviços a serem oferecidos pela Internet.
Entende-se assim que na
Internet, hoje em dia, prevalece um ambiente aonde inexiste (ao menos de forma
generalizada) a regulação coercitiva estatal. Logo o princípio de neutralidade
de rede (PNR) não é imposto aos agentes que atuam na rede[4].
Tanto para os provedores de conteúdo (todos os usuários no fim das contas),
quanto para os provedores de infraestrutura (a rede física em si). Pode-se
dizer que esse princípio surge de padrões compactuados espontaneamente e tão
livres quanto se possam ser. Assim, esse princípio de total isonomia no
tratamento dos pacotes de informação emerge, no limite do possível, de uma
ordenação espontânea dos agentes atuantes no mercado.
Escassez na Internet e a neutralidade de rede
Entendendo-se a definição do
conceito de PNR no contexto do presente artigo e traçado o panorama atual da
rede, aonde há a predominância de tal conceito através de uma interação não
regulamentada da rede, lançamos algumas questões. Qual o sentido para se
demandar alguma intervenção estatal com o intuito de impor esse princípio a
quem desenha a rede? E quais os potenciais impactos de uma intervenção como
essa? Nesses casos, é possível que uma pista inicial de resposta possa ser
analisar tais impactos sob a perspectiva do grau de escassez na rede.[5]
Desde que a Internet foi
criada, a "batalha" entre os consumidores de capacidade de tráfego e os
ofertantes dessa capacidade existe, e sempre irá existir. Os usuários e
ofertantes de conteúdo sempre demandam mais e melhores conexões na sua infinita
necessidade de comunicação, enquanto os provedores de infraestrutura buscam
sempre inovações para ofertar mais capacidade e um menor custo possível.[6]
Esse processo ininterrupto vem levando a Internet, ao longo dos anos, a
aumentar a sua imensurável quantidade de conteúdo e seu próprio
desenvolvimento. Ocorre que atualmente, o grau de escassez da rede
provavelmente não seja suficiente grande para emergir a necessidade de acabar
com a neutralidade de rede.
Em outras palavras, há sim
alguma escassez na rede mundial de computadores. Há problemas de
congestionamento de tráfego. Porém, para o nível de serviços ofertados
atualmente e quantidade de conteúdo disponibilizada talvez seja possível que o
princípio da neutralidade ainda seja viável, considerando apenas o atual
estágio de evolução da Internet. Todavia, com a sempre crescente necessidade
humana de mais comunicação, e com possibilidade infinita de se produzir
informação, sempre será necessária cada vez mais banda larga. Isso sem
considerar o aumento do numero de pessoas que não têm acesso à rede hoje e
terão no futuro.
Em um cenário em que tanto quem
consome quanto quem produz informação (no limite são as mesmas pessoas) têm
infinito potencial, sempre haverá pressão destes agentes em cima daqueles que
disponibilizam os meios da comunicação no sentido de aumentar a capacidade
desses meios. Desta maneira, cravar que a Internet deve sempre ser neutra,
apesar de haver possibilidades de novas tecnologias para aumentar a capacidade
de tráfego é uma afirmação muito forçada, diante da incerteza do comportamento
da demanda.
Assim sendo, pode ser que não
estamos diante de um grau de escassez tão relevante que seja necessário,
discriminar o tráfego na rede e criando uma espécie de mercado de prioridades de pacotes de informação. Se não é possível
afirmar a necessidade da neutralidade de rede hoje, certamente, prever que tal
princípio deve prevalecer no futuro é mais difícil ainda. Argumentar então que
apenas a tal arquitetura deve prevalecer soa arrogância. É provável que não
haja tanta Internet para ser "consumida" no futuro a ponto de atender a
crescente demanda (mesmo com futuras tecnologias de capacidade), de forma a
manter o privilégio de tratar todos os pacotes de informação de forma
isonômica, como é feito hoje.
Por isso, a resposta à pergunta
anteriormente apresentada deve considerar o efeito de impor aos agentes
atuantes na rede essa limitação no modelo de gestão. Uma imposição como essa
(via regulamentos) causa impacto não apenas na mensuração do grau de escassez
da Internet como elimina a aplicação uma das variáveis para gestão da rede. No
primeiro impacto, há uma imposição que impossibilita os agentes, atuando
livremente, obter a correta valoração de quais pacotes de informação devem ser
ou não priorizados. No segundo, os provedores perdem uma ferramenta que
eventualmente pode ser bem interessante.
Prós e contras da imposição do princípio -- controle de dados
Não me parece que os defensores
do princípio da neutralidade levem em consideração a totalidade dos efeitos
dessa imposição de modelo ao demandar regulação estatal para o PNR. Ainda assim,
vamos fazer uma abordagem dos outros argumentos apresentados sobre o tema e a
análise no impacto da regulação do PNR na alocação de recursos e no grau de
escassez da Internet será resgatada a diante.
Um dos principais argumentos
dos defensores do princípio da neutralidade de rede é que ao modificar tal
arquitetura na Internet as companhias que ofertam a rede teriam o controle de
filtrar sites ou conteúdos. As empresas poderiam decidir quais sites serão
rápidos ou lentos ou nem carregarão, ou seja, não poderão priorizar seus
próprios serviços enquanto diminuem a velocidade ou bloqueiam seus
competidores. A Internet se transformaria em uma grande "rede de TV a Cabo",
aonde algumas companhias acabam por controlar o que os usuários veriam, e o
quanto pagam.
Respeitosamente, não concordo
com a linha argumentativa. Primeiramente, devemos ter em mente que quem dita o
que vai acessar, assistir ou ler, é o consumidor (usuário). Se determinado
provedor de conteúdo estiver fornecendo algum produto que seja valorado por
muitos e muitos usuários é de interesse de quem fornece acesso não obstruir tal
fornecedor de conteúdo, mas criar melhores maneiras para que os usuários tenham
acesso a ele. Cabe lembrar que quanto mais conteúdo logo mais demanda por
tráfego, e mais demanda logo mais potencial de venda de bytes.
Segundo lugar: dizer que as
empresas de rede vão ditar preços é também desconhecer a dinâmica do mercado e
a formação dos preços. A formação dos preços é decorrente de uma relação de
troca e em última instância, os preços são determinados pelo julgamento de
valores feitos pelos consumidores. Ludwig von Mises diz que cada indivíduo, ao
comprar ou não comprar e ao vender ou não vender, dá a sua contribuição à formação dos preços de mercado.
Terceiro ponto: a perspectiva
de bloquear sites "competidores" me aprece ser uma postura muito mais de
sabotar seu próprio mercado -- afinal os provedores de conteúdo também são
clientes dos provedores de rede -- do que atuar prejudicando potenciais
oponentes. E mesmo que a possibilidade do bloqueio, filtro ou sabotagem de
sites "concorrentes" ainda seja mais plausível cabe lembrar que caso ocorra uma
discriminação negativa aos provedores de conteúdo, por parte dos provedores de
rede, seria um imenso incentivo para entrada de novos competidores no mercado
de infraestrutura de rede.
Os defensores do PNR não levam
esse argumento em
consideração. Acusam as empresas de infraestrutura de
quererem apenas ampliar a sua "lucratividade". Nesse caso está sendo desconsiderada uma das funções dos lucros, que em síntese é
guiar e canalizar os fatores da produção, de modo a serem distribuídos seus milhares
de artigos diferentes, em conformidade com a procura [7].
No caso em questão, havendo um
ambiente de não neutralidade na Internet, se a ação de discriminação decorrer
para maior lucratividade para as empresas de Telecom é um sinal que os próprios
consumidores valorizam tanto esse serviço de forma que estimule a entrada de
potenciais novos concorrentes na oferta de redes de telecomunicações.
Uma quarta questão é o fato que
a imposição da neutralidade de rede pode inibir a transferência de ganhos de
escopo e integrações verticais ou até ganhos de possíveis parcerias entre
provedores de conteúdo e provedores de rede. A interpretação da necessidade de
se impor o PNR pode chegar a tal ponto que há aqueles que acreditam que a
disponibilização de um site, rede social ou congênere de forma não onerosa ao
usuário é "prejudicial". Alguns defensores do PNR entendem que "promoções"
prejudicam a Internet![8]
Ironicamente, a imposição desse princípio não deixa de ser também um
desincentivo a inovação de novos produtos e serviços que possibilitariam dar
desconto ou vantagens em conteúdos feitos pelo próprio provedor de rede.
Outro argumento a favor da
neutralidade de rede seria que a atual cultura da liberdade seria substituída
pela "cultura de permissão". Sergio Amadeu Silveira argumenta: "Todo novo protocolo ou aplicação poderá ser
bloqueado pelas Operadoras de Telecom com argumento de que não faz parte de sua
política de tráfego. Será impossível um protocolo sem ter as teles como sócias
ou, no mínimo, sem a sua autorização".
O catastrofismo dessa afirmação
parece extremamente sensacionalista e um pouco pretensioso, uma vez que o autor
afirma que em ambiente não neutro nada que não tivesse na mão das "Teles" prosperaria. Cabe lembrar que no
ambiente da tecnologia de informação e comunicação a história nos mostra
exatamente o contrário. Apenas como exemplos podemos citar que o conceito do
computador pessoal e ascensão da Microsoft surgiram mesmo com o "poder" da IBM,
o Google surgiu do nada e o Facebook idem.
Uma vez entendendo que
protocolos têm funções diferentes, em cada camada da rede, mas procuram sempre
trazer mais eficiência na comunicação, não há nenhum motivo econômico para não
adotar novos protocolos mais eficientes do que os previamente estabelecidos.
Evidentemente, os ganhos desse novo grau de eficiência devem compensar custos
de alteração do padrão anterior.
Outro argumento pró-neutralidade
é o de que "qualquer violação à
neutralidade da rede não envolverá investimento, ao contrário, acarretará em
pagamentos por serviços desnecessários e duvidosos". Os investimentos não
seriam feitos para fornecer a usuários serviços mais rápidos, mas a não
neutralidade objetivaria remuneração por parte de sites que desejam maior
rapidez do que outros. Nesse caso, entende-se que o argumento está
completamente errado, pois supondo que haja a criação dos tais serviços "desnecessários" é difícil de imaginar
que o consumidor, ao perceber a desnecessidade desse serviço, continuaria a
comprar tal serviço.
Neutralidade de rede uma abordagem austríaca
Perpassado a fase de contrapor
os principais argumentos a favor da neutralidade de rede, resgata-se a análise
da questão da escassez da rede e a valoração da discriminação dos pacotes de
informação.
Como dito anteriormente, pode
ser que não estamos diante de um grau de escassez tão relevante que seja necessário
criar um mercado para prioridade de tráfego na rede, ou um mercado de
discriminação de pacotes de informação. Ocorre que uma vez sendo feita uma
regulação estatal de neutralidade de rede, a possibilidade de criação de um "mercado da prioridade de tráfego" é
completamente negada. Sem a possibilidade da criação deste "mercado" a possibilidade
de valoração de prioridades de tráfego, feita pela livre interação dos usuários
e provedores, é negada. Assim, a percepção de grau de escassez na rede é
danificada. E este dano é suficientemente significativo para não se saber ao
certo se há necessidade da discriminação do tráfego ou permanecer com a
neutralidade de rede. Nesse sentido, seria então impossível implantar um
mecanismo de gerir a rede de forma a considerar qual é a real valoração que os
usuários dão para privilegiar (ou não privilegiar) determinados pacotes de
informação.
Esse caso é uma situação
semelhante à impossibilidade de cálculo econômico no socialista descrita por
Ludwig von Mises[9]. Ele argumenta o seguinte:
Em uma
economia de trocas voluntárias, a unidade comum de cálculo econômico é
representada pelo valor objetivo de troca das mercadorias. Isso gera uma
vantagem tripla. Em primeiro lugar, passa
a ser possível basear o cálculo econômico de acordo com as valorações de todos
os participantes da troca. O valor
subjetivo que um dado bem tem para uma pessoa é um fenômeno puramente
individual e, portanto, não pode ser imediatamente comparado ao valor subjetivo
que esse mesmo bem tem para as outras pessoas. Isso só se torna possível quando
se utiliza valores de troca, os quais surgem naturalmente da interação das
valorações subjetivas de todos os indivíduos que participam da troca. Nesse
caso, o cálculo baseado nos valores de
troca fornece um controle sobre o método mais apropriado de se empregar os bens.
Qualquer um que deseje fazer cálculos relacionados a algum complicado processo
de produção irá imediatamente perceber se ele está agindo de maneira mais
econômica que os concorrentes ou não; se ele descobrir -- por meio das relações
de troca predominantes no mercado -- que não será capaz de produzir
lucrativamente, isso significa que outros estão sabendo melhor como fazer um
uso mais adequado desses bens de ordem alta. Por último, utilizar
os valores e troca para se fazer cálculos econômicos é o que possibilita
avaliar os bens de acordo com uma unidade de conta definida. (negrito meu)
Portanto, impondo-se a
neutralidade de rede, não seria possível para as empresas e usuários criarem um
mercado de prioridade de tráfego na
Internet, e assim não haveria como saber se tipos de pacotes de informação
deveriam trafegar com alguma preferência, ou se alguém daria tanto valor para
"preferência" de forma a haver necessidade de mercado para isso. Por isso, não
há como saber o quanto é importante o fator da neutralidade para o saber ser
realmente ele é ou não necessário[10].
Outra forma de colocar esse
argumento seria da seguinte maneira; não havendo a possibilidade de discriminar
tráfego na rede, ficaria impossível para os usuários e provedores valorar
satisfatoriamente quais dos pacotes de informação devem ter (ou não ter)
prioridade, uma vez que todos os pacotes teriam que ter a mesma prioridade, ou
seja, nenhuma. A partir daí, a primeira vantagem do sistema de trocas voluntárias
seria descartada.
Nesse caso, sendo impossível
criar qualquer discriminação dos pacotes de informação, os consumidores ficam
impossibilitados de valorar qual tráfego deve ou não ser priorizado (e por quê).
Por conseguinte, os provedores de rede perdem uma poderosa ferramenta para a
gestão eficiente da mesma, qual seja, a sinalização de quais pacotes devem ser
discriminados e qual tipo de discriminação deve ser feita. Isso traz uma
limitação muito significante para alocação e recursos de ampliação e desenvolvimento
da rede. Os provedores de rede perdem parte do controle sobre o método mais
apropriado de se empregar os bens para que estes sejam mais bem alocados na
provisão de rede. Logo, a segunda vantagem do sistema de trocas voluntárias
fica enfraquecida.
Do ponto de vista dos
consumidores também há problemas. Ao proibir qualquer tipo de privilégio de tráfego,
todo e qualquer pacote no tráfego de informação seria tratado com o mesmo
status, portanto sem qualquer prioridade. Essa estrutura de tratamento isonômico
de pacotes leva os consumidores a se comportarem de forma a não terem a percepção
de estarem pagando por uma prioridade do tráfego que eles de fato priorizariam
caso tivessem que pagar diretamente por isso. Os usuários então adotam um
perfil de consumo mais perdulário do que aquele que teriam caso tivessem que
pagar pela priorização/discriminação do seu tráfego. Cabe mencionar que essa
estrutura de incentivo já existe hoje e seria reforçada com a imposição do PNR.
O resultado desse somatório de
efeitos em função do tratamento socializante do tráfego de pacotes de
informação na Internet não pode ser outro senão um aumento da demanda com
redução da oferta de capacidade de rede. O resultado de uma estrutura de
incentivos dessa, levado ao limite, pode ser visto em qualquer sistema de serviço público.
Escassez, filas, racionamento, ineficiência etc. Por isso, a imposição do PNR
incrementa o risco de uma degradação do nível de serviço de acesso à Internet.
Estendendo um pouco mais o raciocínio econômico
Ainda assim, havendo-se a
imposição do PNR, poderíamos supor que com essa variável eliminada os
consumidores e ofertantes de rede iriam buscar outras soluções para continuar a
aumentar a capacidade de tráfego e gerenciamento desse tráfego. Em razão disso,
os provedores de rede seriam forçados a investir mais em capacidade de rede do
que provavelmente investiriam caso o PNR não lhes fosse imposto. Até mesmo para
tentar compensar a tendência de uso adicional de rede que a regulamentação do
PNR reforçaria. Logo o incentivo para realizar investimentos de aumento de
capacidade de tráfego seria incrementado, mantendo o atual ritmo de crescimento
de oferta de capacidade ou até acelerando esse ritmo. Alguém poderia entender
que esse efeito seria positivo, mas convém não esquecer que tal fato decorreria
da intervenção estatal impondo a neutralidade de rede.
Nesse caso, a sinalização
econômica para investimentos em aumento de capacidade de rede (simples aumento
de oferta de capacidade) contra investimentos em melhor gerenciamento da rede
(formas de gerenciar essa capacidade) estaria maculada. O esforço aplicado no
aumento da capacidade estaria com incentivo supervalorizado contra um esforço
subdimensionado para gestão da capacidade de rede. Isto porque investir em
tecnologias para priorizar, organizar e discriminar o tráfego dos pacotes de
informação seria algo inútil diante de um cenário de neutralidade de rede
absoluta. Assim, os investimentos não estarão sendo orientados para atender as
necessidades dos consumidores atuando livremente em um ambiente de trocas
voluntárias. Os incentivos de investimentos estariam alterados para atender uma
distorção causada pela intervenção estatal.
Regulação privada versus regulação estatal
Constatou-se até aqui um pouco
da capacidade de danos que uma imposição do PNR, por mais bem intencionada que
seja, pode causar na Internet. Como se não bastasse, permitir uma regulação
estatal desse porte na Internet seria abrir uma Caixa de Pandora com potencial
muito maior de malefícios do que benefícios (se é que haveria algum benefício).
Vint Cerf, um dos criadores da Internet, escreveu um interessante argumento em
seu artigo "Por que precisamos lutar pela
liberdade da internet".[11]
O único caminho sensato é um modelo de
política de desenvolvimento da internet que envolve diversos órgãos
multissetoriais, como Internet Engineering Task Force, a Internet Corporation
for Assigned Names and Numbers, o Internet Governance Forum, o Regional Internet
Registries, entre muitos outros.
As práticas de baixo para cima, bilaterais
e com múltiplas organizações envolvidas que criaram a rede de redes que
chamamos de internet também viabilizam uma ampla gama de modelos de novos
negócios. Normas técnicas cruciais desenvolvidas pela Internet Engineering Task
Force e pela World Wide Web Consortium criaram a interoperabilidade necessária
para que a rede funcionasse.
Um
sistema estatal de regulação não é somente desnecessário - ele quase que
invariavelmente aumentaria os custos e preços e interferiria com o crescimento
rápido e orgânico da internet que temos visto desde seu surgimento comercial na
década de 1990.
O futuro da rede está longe de ser
garantido, e a história nos oferece muitos alertas. Décadas depois da criação
de imprensa de Gutenberg, diversos príncipes e sacerdotes se mobilizaram para
restringir o direito de imprimir livros. A
história está repleta de exemplos de governos que tomaram medidas para
"proteger" seus cidadãos, controlando o acesso à informação e a
liberdade de expressão e inibindo outras liberdades enunciadas na Declaração
Universal dos Direitos Humanos. (negrito meu)
Ao argumento de Cerf deve ser acrescido
outro aspecto. Como podemos verificar a existência de todos aqueles órgãos
listados no inicio do artigo, e como também se argui a quase inexistência de
legislação estatal na rede mundial de computadores, podemos afirmar que a
Internet não deixa de ser, também, um case
de sucesso na implantação de regulamentos privados[12].
Logo, argumentar a favor da necessidade da imposição da norma (estatal ou
supra-estatal) de neutralidade de rede é subestimar esse sucesso. E não há como
negar que regulação privada pode ser bem sucedida.
Em seu artigo "O princípio da neutralidade de rede na
Internet: uma análise regulatória e concorrencial" o Dr. Guilherme Pereira
Pinheiro também faz outro alerta, que seria a regulamentação do PNR partir para
eventual descaminho. Ele termina seu artigo fazendo um questionamento chave:
Ao mesmo tempo em que é necessário
proteger a competição e evitar condutas criminosas na Internet, é cogente
fazê-lo sem destruir pelo caminho o modelo livre da rede mundial de
computadores. O princípio da neutralidade de rede é econômica e
juridicamente justificável, mas deve ser aplicado de maneira seletiva, de modo
que, simultaneamente, proteja a competição e livre circulação de conteúdo na
Internet, resguarde possibilidade razoável de gerenciamento da rede pela incumbent e impeça a manipulação do conteúdo
pelos poderes estatais. (negrito meu)
A
pergunta que se coloca é: o que é melhor para o Brasil, uma liberdade
imperfeita, hands-off, ou um controle bem intencionado, mas potencialmente
desastroso? Se para se evitar um mal maior, que é o Estado entremear-se
definitivamente na administração da Internet, é necessário se tolerar um
mal menor, que é a discriminação, às vezes injusta, de pacotes de dados de
usuários por certas empresas; é quase sempre mais sábio escolher o mal
menor. (negrito meu)
Pelos argumentos expostos no
presente artigo não se verifica, ao menos na parte analisada, justificativa
econômica plausível para a imposição do princípio da neutralidade de rede. Mais
ainda, caso a neutralidade de rede deva
prevalecer, então o próprio "mercado
regulatório" da Internet, por meio de seus órgãos gestores e reguladores
multi-setoriais pode estabelecer tal regra. Os próprios agentes atuantes da
Internet hão de dar conta da manutenção desse princípio através de regulamentos
privados, caso tal arquitetura de rede realmente seja uma solução melhor do que
uma arquitetura em que se permita discriminar pacotes de informação.
Conclusão
Assim,
responder à pergunta do Dr. Guilherme Pereira Pinheiro fica mais fácil. No caso visto no presente texto, entre
a liberdade imperfeita e o controle (que pode nem sempre ser bem intencionado)
não restam dúvidas. Ainda mais quando o próprio Pinheiro da pergunta
caracteriza qual é o menor dos males.[13]
[1] Definição apresentada por Guilherme Pereira Pinheiro
no trabalho "O princípio da neutralidade de rede na Internet: uma análise
regulatória e concorrencial", disponível em http://www.publicacoesacademicas.uniceub.br/index.php/prisma/article/view/682/570
[2] A neutralidade
da rede é um dos principais fundamentos da internet livre, disponível em http://www.advivo.com.br/blog/luisnassif/a-neutralidade-da-rede-por-sergio-amadeu-da-silveira
[3] Internet; Histórico, Evolução e Gestão: Maria do
Socorro Costa do Vale, Denise Coutinho Costa, Nilton Alves Jr. Disponível em: http://www.rederio.br/downloads/pdf/nt00501.pdf
[4]
Aparentemente, o único caso de imposição estatal
do PNR está no Chile http://blogs.estadao.com.br/link/chile-aprova-lei-de-neutralidade/
[5] Grau de escassez pode ser definido como sendo a capacidade
de tráfego de conteúdo (informações), e as limitações a essa capacidade, que
estão disponíveis aos usuários da Internet.
[6] Diversas foram as tentativas de inferir na necessidade
de capacidade de tráfego na Internet por parte dos consumidores. Todas foram
subestimadas. É seguro dizer, para efeitos mercadológicos, que a necessidade de
capacidade de tráfego de um consumidor é virtualmente infinita. Os usuários
sempre irão desejar mais e mais banda, como mais e mais velocidade.
[7]
http://www.mises.org.br/EbookChapter.aspx?id=91
[8]
http://observatoriodainternet.br/promocoes-da-telefonia-movel-brasileira-colocam-em-xeque-a-neutralidade-da-internet
[9]
http://www.mises.org.br/Ebook.aspx?id=66
[10]
É por essa razão que anteriormente a questão da
neutralidade de rede foi tratada com condicionantes. É impossível saber o grau
de escassez relativa na Internet; e, em um ambiente de imposição de
neutralidade, tudo ficaria até mais complicado. Por pura inferência,
acredita-se que o grau de escassez não seja tão significativo ao ponto de ser
imprescindível a priorização de tráfego.
Uma pista disso é o fato de que a discriminação dos pacotes não é
implantada.
[11]
http://tecnologia.uol.com.br/noticias/redacao/2012/12/03/vinton-cerf-por-que-precisamos-lutar-pela-liberdade-da-internet.htm
[12]
De fato há participação
de governos em órgãos gestores da Internet, mas esses órgãos são o que
poderíamos dizer como multi-setores. E os governos não têm a predominância
jurisdicional nesses casos. Dessa forma, os regulamentos feitos por tais órgãos
podem ser considerados "privados" na medida do possível, ou pelo menos "não
estatais".
[13]
Por enquanto ainda
estamos livres do mal maior! Ver: http://olhardigital.uol.com.br/negocios/digital_news/noticias/fracassa-tentativa-de-regular-a-internet-em-escala-global