É
com bastante frequência que recebo as seguintes perguntas: "Quando foi que você
percebeu que não era necessário haver um estado?", "Quando foi que você deixou
de defender a existência de um estado?", ou até mesmo "Como foi que você
percebeu que era incoerente ser pró-liberdade e ao mesmo defender o monopólio
da violência para uma instituição política?".
E há também a pergunta que resume tudo: "Quando foi que você se tornou
um anarcocapitalista?"
Não
é uma pergunta fácil de ser respondida.
Mudanças profundas na perspectiva intelectual de uma pessoa não ocorrem
da noite para o dia. Primeiro, você
cogita a ideia. Em seguida, você avalia
sua plausibilidade. Você pode até
abraçar completamente a ideia, mas apenas de forma abstrata. A verdadeira mudança intelectual ocorre
apenas quando você se torna capaz de ver a ideia funcionando no mundo real --
até mesmo em sua vida cotidiana. É aí
que a confiança em uma ideia se impõe.
É
justamente por esta razão que nunca entendi como é possível alguém se tornar
socialista. É algo que vai totalmente
contra a lógica. O socialismo é a ideia
menos plausível que pode ser imaginada.
Bens escassos não podem ser propriedade de todos. Não é uma questão de ideologia, mas sim de
lógica pura. Tente socializar seu
notebook, ou seus sapatos, seu carro ou qualquer bem de capital ou de
consumo. Duas pessoas não podem ser
proprietárias de forma simultânea e integral do mesmo bem. O socialismo inevitavelmente sempre terminará
em controle estatal total. É por isso
que o socialismo gera desastres humanitários sempre que é integralmente
implementado. Socialistas genuínos ou
não entendem essa lógica ou simplesmente querem viver no perpétuo autoengano.
A
primeira vez em que ouvi falar em anarcocapitalismo -- ou 'anarquismo baseado
na propriedade privada' -- foi quando vi o livro de Murray Rothbard Man, Economy, and State na
estante de livros de um professor. Só o
título [Homem, Economia e Estado] já
abordava diretamente alguns problemas que vinham me atormentando à época. Perguntei ao professor sobre aquele livro e
ele ficou alarmado, como se eu houvesse visto algo que não podia ver. Ele rapidamente me alertou que eu não deveria
ler o livro. "Rothbard é um anarquista", disse ele de forma soturna. É claro que, por causa desta antipropaganda,
eu imediatamente quis ler aquela obra (mas não podia porque não havia dela na
biblioteca da escola e eu não consegui bolar uma maneira de pegar furtivamente
o livro da estante do professor).
Tive
de deixar este objetivo temporariamente de lado, mas passei a me dedicar mais
profundamente à leitura de livros pró-livre mercado. Quanto mais eu lia, mais eu me
impressionava. Milton Friedman estava
certo. Henry Hazlitt estava certo. Ludwig von Mises estava certo. F.A. Hayek estava certo. Leonard Read estava certo. Toda esta tradição, que remetia a Adam Smith,
apresentava uma lógica de raciocínio espetacular. O mundo estava tentando gerenciar suas
economias por meio de decretos estatais, mas tudo estava dando errado. Com essas leituras, aprendi que somente a
liberdade e a propriedade privada são genuinamente produtivas, criativas e
evolutivas, e somente elas realmente dão poder para as pessoas comuns da
sociedade.
E,
ainda assim, cada um desses pensadores, por algum motivo que me escapava, não
levava essas ideias ao seu extremo lógico.
Eles não chegavam ao ponto de dizer que nós realmente não precisamos de
um estado. Todos eles pareciam concordar
que o estado era necessário para manter a paz; que o estado é realmente tudo o
que se interpõe entre nós e o caos total.
Sem o estado, não seríamos capazes nem mesmo de dar aquele primeiro
passo rumo à ordem social. Não haveria como
usufruir aquela segurança que tomávamos como natural. Bens e serviços essenciais não poderiam ser
ofertados. Não haveria tribunais,
serviços de segurança e defesa, e talvez nem mesmo estradas. O estado fornece coisas que o mercado não
pode fornecer -- ou pelo menos era o que dizia tal raciocínio.
Com
o passar do tempo, e com minhas leituras, estas ilusões foram sendo destroçadas
uma por uma. Descobri que estradas,
correios, comunicações e até mesmo aqueles lendários 'bens públicos' como
faróis de navegação marítima foram, de uma perspectiva puramente histórica,
todos ofertados pelo livre mercado. Só
depois é que o governo monopolizou estes serviços. Tribunais? Na década de 1980, as cortes estatais já
estavam tão cheias e eram tão ineficientes, que empresas e indivíduos não
queriam utilizá-las. A arbitragem privada
era uma opção muito melhor. Mesmo nos
empreendimentos cotidianos, contratos eram formulados de modo que contendas fossem
resolvidas em tribunais privados. Para
mim, tudo aquilo significava que mesmo estes serviços não eram algo exclusivo
do governo; eles poderiam ser ofertados exclusivamente pelo livre mercado. O mesmo se aplicava à segurança. Não é o estado o que nos dá segurança
diariamente, mas sim nossas próprias precauções e medidas preventivas, como
fechaduras, armas e a contratação de serviços de segurança privados.
E
vale ressaltar que toda essa transformação estava ocorrendo em minha mente
durante os anos finais da Guerra Fria.
Um holocausto nuclear era uma ameaça real e diária. Inimigos estrangeiros nos rodeavam. Os comunistas queriam destruir nosso modo de
vida. Falar sobre isso atualmente parece
uma grande tolice, principalmente quando se descobriu, após 1989, o quão inacreditavelmente
pobres e patéticos eram todos os países do bloco soviético. Porém, naquela época, tudo era
amedrontador. Não poderíamos abrir mão
de nossas armas nucleares porque isso colocaria em risco nosso modo de vida.
Aprofundando
meus estudos de história, comecei a descobrir coisas interessantes. Ocorre que a Ameaça Vermelha era algo
recorrente na história dos EUA. As
pessoas tinham tanto pavor dos comunistas na década de 1920 quanto na década de
1980. Neste ínterim, no entanto, houve
aquele estranho período em que os líderes americanos e soviéticos eram
considerados aliados próximos na batalha contra os japoneses e os alemães. Com efeito, os EUA fizeram de tudo para
manter o regime soviético intacto, e, após a Segunda Guerra Mundial, os
próprios EUA ajudaram a entregar o Leste Europeu ao jugo soviético. Após isso, os soviéticos repentinamente se
tornaram novamente o inimigo. Foi para
chamar a atenção para esse absurdo que George Orwell escreveu 1984. (O título faz um trocadilho com
1948. O livro foi publicado em 1949).
Estes
fatos começaram a complicar o cenário.
Não é necessário relatar todo o revisionismo histórico aqui; basta dizer
que as guerras em que os EUA se meteram no século XX se tornaram bem menos
claras e muito mais confusas para mim do que aparentavam ser para a mídia
ideologicamente polarizada. A Guerra
Fria não era uma história de anjos e demônios, não obstante os impulsos
nacionalistas para se torcer por seus respectivos governos. A Guerra Fria foi uma batalha entre estados,
ambos os quais estavam perfeitamente dispostos a mentir para seus cidadãos, a explorar
sua população e a preferir o conflito à paz.
Era também impossível não perceber que, quanto mais os EUA elevavam o
tom belicista contra o comunismo, mais o próprio governo americano se tornava
uma ameaça às liberdades dos cidadãos. A
guerra, como descobri, nunca foi uma aliada da liberdade.
Enquanto
isso, comecei a perceber que, se os EUA realmente fossem invadidos por um
inimigo estrangeiro, os governos federal, estaduais e municipais poderiam até
ajudar, mas a maior probabilidade é que atrapalhassem impondo leis marciais,
estatizando a indústria e confiscando nossas armas -- como todos os governos
tendem a fazer em qualquer emergência. Na
prática, na iminência de uma invasão, os cidadãos e os mercados é que serão
decisivos para combater e derrotar os invasores utilizando meios privados:
nossas próprias armas, nosso aparato de segurança, nossas redes de amizade, e
nossos esforços individuais e comunitários.
Quanto mais eu pensava sobre isso, mais ridícula se tornava a ideia de
que deveríamos depender do governo para toda a nossa proteção. Tomando-se por base a experiência, governos
podem agravar ainda mais os malefícios, simplesmente porque eles tendem a usar
situações de emergência em proveito próprio -- e em benefício daqueles que lhes
garantem poder (os grupos de interesse e os lobistas). O que é ainda pior: pessoas com poder tendem
a estimular ou até mesmo a criar emergências quando têm o poder para tal.
Esta
foi a evolução do meu progresso intelectual durante um período de
aproximadamente cinco anos. Finalmente,
em um belo dia, parei para refletir melhor e me fiz a seguinte pergunta: existe
alguma coisa que o governo faz, que tem de ser feita e que não pode ser
efetuada de maneira mais eficiente e mais completa pela livre e voluntária
associação entre indivíduos?
Fiquei
revirando esta pergunta em minha mente.
Não conseguia pensar em outra resposta senão a de que não há
absolutamente nada de essencial que o governo faça que não possa ser mais bem
efetuado pela livre iniciativa e pela livre associação entre as pessoas. Confesso que foi um pensamento
amedrontador. Será que eu estava me
tornando um anarquista? Será que esse
pensamento iria mudar minha vida? Se eu
seguisse nessa direção, estaria eu fazendo algo terrivelmente
irresponsável? Encontrei consolo na
possibilidade de que talvez eu não houvesse raciocinado corretamente; de que
talvez houvesse algo de errado na maneira em que eu havia formulado a pergunta. Tentei confortar-me na hipótese de que eu
havia desconsiderado alguma pequena característica positiva do governo,
característica essa que eu poderia defender de modo a não ter de me considerar
um maluco.
Foi
no saguão de um hotel em que Murray Rothbard
estava hospedado que eu finalmente fiz a ele esta pergunta. Formulei de maneira bem direta. Se eu respondesse 'não' àquela pergunta
acima, seria eu um anarquista? Murray
disse que sim. Assustado, tentei
esclarecer melhor: se eu cheguei à conclusão de que o estado não contribui com
absolutamente nada de valor para a ordem social, e de que ele não pode trazer
nenhum aprimoramento para aquilo que criamos com nosso próprio esforço, seria
eu um anarquista? Ele novamente disse
que sim. E eu respondi: bom, então acho
que sou um. E ele então soltou uma
gargalhada efusiva, apertou vigorosamente minha mão, e me congratulou de forma
exuberante, tudo naquele seu bem conhecido estilo jubiloso. Uau. O
feito havia sido consumado, pensei.
E,
ainda assim, eu estava enganado. O feito
intelectual havia sido consumado, mas ainda era muito fácil manter esta ideia
como uma abstração, como algo que não afetava em nada meu trabalho diário ou
minha vida. Uma coisa é você enxergar a
luz lá longe; outra bem diferente é ver essa luz ao seu redor
constantemente. Este passo me tomou
vários outros anos de meditação acerca de questões específicas como direitos
humanos, serviços de mercado, a maneira como a liberdade funciona, a maneira
como o estado se portou ao longo da história, e a maneira como ele funciona
hoje. Os últimos estágios desse processo
de pensamento levaram vários anos para serem processados.
O
que eu fui descobrindo de maneira gradual em minha rotina diária é que o
anarquismo está inteiramente ao nosso redor.
O estado não nos acorda de manhã, não arruma nossa cama, não tece nossos
lençóis, não constrói nossas casas, não faz nossos carros funcionarem, não
prepara nossa comida, não nos faz trabalhar com mais afinco e dedicação, não
produz os livros que lemos, não gerencia nossas igrejas, não nos dá roupas, não
escolhe nossas amizades e nossos amores, não toca a música de que gostamos, não
produz os filmes a que assistimos, não cuida de nossos filhos, não cuida de
nossos pais, não escolhe onde passamos férias, não dita o assunto de nossas
conversas, não torna nossos feriados mais bonitos e alegres, não cria nada de
positivo para nós.
Tudo
isso são coisas que fazemos por conta própria.
Nós moldamos o nosso próprio mundo.
Por meio da prática da vontade humana, todos nós trabalhamos para fazer
com que o mundo à nossa volta seja ordeiro.
Isso é o que toda a população mundial faz. Todos nós trabalhamos motivados pelo nosso
interesse próprio com o intuito de encontrar maneiras de ter uma vida
melhor. Mais ainda: todos nós nos
esforçamos para trabalhar com terceiros em um arranjo que seja mutuamente
benéfico, de modo que o aprimoramento de nossa vida não ocorra à custa dos
direitos e das liberdades de terceiros. A
liberdade está onde são geradas as coisas bonitas de nossas vidas. E isso é válido em todos os cantos do
mundo. Sempre foi. Uma bela anarquia é a principal fonte da
própria civilização.
Qual
o papel do estado? Ele interfere. Ele confisca nossa propriedade e reduz nossa
riqueza individual. Ele bloqueia
oportunidades por meio de suas regulamentações e subsequentes criações de
cartéis. Na verdade, ele faz ainda pior:
ele busca desculpas para iniciar guerras, ele se intromete em nossas famílias, ele
pune o comportamento pacífico que não prejudica ninguém -- em suma, ele obstrui
o progresso de variadas formas. O estado
é o grande forasteiro. Ele é exógeno à
própria sociedade. A maior parte do
mundo ainda funciona, e a civilização ainda prospera, porque as pessoas se
esforçam para ignorar o estado o máximo possível. E se ele desaparecesse? Eu realmente não consigo ver nenhuma consequência
negativa neste fenômeno. Mas vejo várias
positivas.
E
ainda assim há aqueles que alertam para o iminente apocalipse caso o estado
desapareça. A maioria das pessoas que
acreditam em um governo limitado ("minarquistas") nutre essa ideia. Mesmo grandes pensadores como Ludwig von
Mises e Henry Hazlitt acreditavam nisso.
Todos eles aceitavam alguma versão do pesadelo imaginado por Thomas
Hobbes: na ausência do estado, a vida seria sórdida, solitária, bestial e
curta. Mas o fato é que ele escreveu isso
durante uma época de turbulência política, uma época em que tribos religiosas
guerreavam para controlar o estado. A
vida sem o estado teria sido exatamente daquela maneira -- mas exatamente por
causa da presença do estado que todos queriam controlar, e não por sua
ausência.
Não
irei aqui analisar todas as distorções já feitas em relação a esta ideia, e nem
irei utilizar este espaço para tentar refutar todas as justificativas já
apresentadas em defesa do estado. Irei
apenas mencionar uma intuição bastante comum que muitas pessoas têm. As pessoas dizem que não faz muito sentido
eliminar o estado porque outras pessoas irão simplesmente criar outro em seu
lugar. Não duvido que esta afirmação
seja verdadeira. As pessoas de fato têm
a ilusão de que o estado contribui com algo de positivo e importante para a
sociedade. Elas querem líderes que governem
desde lá de cima, ainda que elas próprias estejam aqui em baixo.
Pense
em Samuel, do Velho Testamento. As
pessoas vinham até ele implorando por um rei.
Ele advertiu que um rei confiscaria suas propriedades, colocaria seus
filhos em servidão, iniciaria guerras terríveis e, no final, escravizaria a
todos. Não importava. Elas queriam um rei de qualquer maneira.
Este
é exatamente o comportamento das pessoas de hoje. Nada mudou. Elas continuam
implorando por sua própria escravidão. Pior
ainda: temem viver em liberdade. É por
isso que o estado continua se reinventando.
Aqueles que ao menos entendem que o estado deve ser limitado caso tenha
de existir merecem alguns créditos. Mas
o problema é que tais limites nunca de fato funcionaram. É por isso que é melhor simplesmente deixar a
sociedade prosperar sem o jugo de um estado.
O grande projeto da liberdade é fazer as pessoas entenderem que elas não
devem abraçar a ilusão de que um estado -- qualquer estado -- pode ser um
aliado e um benfeitor da liberdade humana.
Foi isso que a revolução liberal que ocorreu no final da Idade Média até
o Iluminismo pregou. É imprescindível
entender a real beleza da liberdade para se poder alcançá-la.
Desde
o início da era digital, estamos tendo o privilégio de observar em primeira mão
o atordoante poder criativo da volição humana.
A cada bilionésimo de segundo, indivíduos ao redor de todo o mundo estão
trabalhando para criar novos tipos de associações, instituições, capital e
meios de prosperidade. Estamos vendo se
desenrolar perante nossos olhos coisas que até a década passada eram tidas como
impossíveis. E tudo está apenas
começando. Estamos ainda nos primórdios
de coisas como impressora 3-D, moedas alternativas, e civilizações com bases
digitais capazes de nos ofertar mais filmes, mais livros, mais arte e mais
sabedoria do que qualquer ser humano de épocas passadas seria capaz de obter durante
várias vidas. Este mundo recém-surgido
está transformando nossa existência.
Tome nota: nenhum estado foi responsável por isso, nenhum estado criou
isso, nenhum estado aprovou isso e nenhum estado está administrando tudo isso.
Por
fim, deixe-me admitir aqui que meu anarquismo é provavelmente de ordem mais
prática do que ideológica -- o que é exatamente o oposto da postura dos mais
bem conhecidos pensadores anarquistas da história. Vejo a regularidade e a harmonia da ação e da
volição humana ao meu redor o tempo todo.
Acho tudo isso totalmente inspirador.
É algo que liberta a minha mente e me permite entender o que é realmente
importante na vida. Essa capacidade de
observação me permite ver a realidade como ela é. Não é uma ideologia inalcançável o que me
deixa ansioso por um mundo sem estado, mas sim o fato de eu saber do que é
capaz o ser humano quando tem liberdade para melhorar este mundo por meio de
seus próprios esforços. Somente seres
humanos podem superar a irremediável realidade da escassez que o mundo impôs
sobre nós. Até onde sei, o estado é, na
melhor das hipóteses, o grande distúrbio que retarda esse poderoso projeto de
construção da civilização.