Uma
civilização é o produto de uma visão de mundo já definida, e sua filosofia se
manifesta em cada uma de suas realizações.
Os artefatos produzidos pelos homens podem ser chamados de matérias;
porém, os métodos utilizados no arranjo das atividades de produção desses
artefatos são idealizados pela mente; eles são o resultado de ideias, as quais
determinam o que deve ser feito e como deve ser feito. Todos os ramos de uma civilização são
impulsionados pelo espírito que permeia sua ideologia.
A
filosofia que é a marca característica do Ocidente e cuja sólida elaboração
transformou, nos últimos séculos, todas as instituições sociais tem sido
chamada de individualismo. O individualismo afirma que ideias, tanto as
boas quanto as más, originam-se na mente de um indivíduo. Somente alguns poucos homens são dotados da
capacidade de conceber novas ideias.
Porém,
dado que as ideias podem funcionar apenas se forem aceitas pela sociedade, tudo
vai depender, em última instância, exatamente da aceitação ou da rejeição
dessas ideias pela sociedade. É a
população -- ela própria incapaz de desenvolver novas maneiras de pensar --
quem vai aprovar ou desaprovar as inovações dos pioneiros. Não há garantia nenhuma de que essa massa de
seguidores irá fazer um uso inteligente do poder contido nessas ideias. Uma sociedade pode rejeitar boas ideias --
aquelas cuja adoção iria beneficiá-la -- e aderir a ideias ruins que irão
prejudicá-la seriamente.
Se
uma sociedade opta pelas ideias ruins, a culpa não é apenas dela. A culpa também deve ser imputada aos
pioneiros das ideias boas por não terem tido êxito em apresentar seus
pensamentos de uma forma mais convincente.
A evolução benéfica das relações humanas depende, em última instância,
da capacidade da raça humana em gerar não apenas autores mas também arautos e
disseminadores de ideias benéficas.
Pode-se
lamentar o fato de que o destino da humanidade seja determinado pela mente dos
homens -- a qual certamente não é infalível.
Porém, tal lamento não pode mudar a realidade. Com efeito, a superioridade do homem deve ser
vista em seu poder de escolher entre o bem e o mal. É precisamente isso que os teólogos tinham em
mente quando louvaram a Deus por ter conferido ao homem o livre arbítrio para
escolher entre a virtude e o vício.
Os
perigos inerentes à incompetência das massas em fazer escolhas certas não podem
ser eliminados pela simples transferência dessa autoridade de tomar decisões
supremas para uma ditadura de alguns poucos homens, por mais notáveis que estes
sejam. É uma ilusão crer que o
despotismo irá sempre se aliar às boas causas.
A característica intrínseca do despotismo é que ele tenta reprimir os
esforços dos pioneiros em tentar melhorar a situação de seus semelhantes.
O
principal objetivo de um governo despótico é impedir quaisquer inovações que
possam porventura ameaçar sua supremacia.
Sua própria natureza o empurra para a adoção de um conservadorismo
extremo, isto é, a tendência de preservar as coisas exatamente como estão, não
importa o quão desejável uma mudança possa ser para o bem-estar das
pessoas. O regime se opõe a novas ideias
e a qualquer espontaneidade da parte de seus súditos.
No
longo prazo, mesmo o mais despótico dos governos, com toda a sua brutalidade e
crueldade, não é páreo para as ideias.
No final, a ideologia que ganhou o apoio da maioria irá prevalecer e
destruir as bases que sustentam a tirania.
E então os oprimidos irão se erguer em rebelião e derrubar seus
opressores.
Entretanto,
tal processo pode ser bastante lento; pode demorar a acontecer. Nesse meio tempo, danos irreparáveis podem
ser infligidos a toda a população.
Ademais, uma revolução necessariamente gera uma violenta perturbação na
cooperação social, produz ódio e divisões irreconciliáveis entre os cidadãos, e
pode causar uma amargura que até mesmo séculos serão incapazes de apagar.
Foi com esta ênfase nas ideias, que a filosofia do individualismo demoliu a doutrina do
absolutismo, a qual atribuía revelação divina a soberanos e tiranos. Ao suposto direito divino dos reis ungidos, o
individualismo opunha os direitos inalienáveis conferidos ao homem por seu
criador. Contra a pretensão do estado de
impor a ortodoxia e exterminar aquilo que ele considerasse heresia, o
individualismo proclamou a liberdade de consciência. Contra a inflexível preservação de antigas
instituições que se tornaram detestáveis com o passar do tempo, o
individualismo recorreu à razão. Assim,
ele inaugurou uma era de liberdade e progresso rumo à prosperidade.
Os
filósofos liberais dos séculos XVIII e XIX não imaginaram que uma nova
ideologia surgiria para rejeitar resolutamente todos os princípios da liberdade
e do individualismo, e para proclamar que a total submissão do indivíduo à
tutela de uma autoridade paternal era o mais desejável objetivo da ação
política, o mais nobre fim da história, e a consumação de todos os planos que
Deus tinha em mente ao criar o homem.
Não
apenas Hume, Condorcet e Bentham, mas até mesmo Hegel e John Stuart Mill teriam
se recusado a acreditar caso alguns de seus contemporâneos tivessem profetizado
que no século XX a maioria dos escritores e cientistas da França e dos países
anglo-saxões iria se tornar entusiasta de um sistema de governo que eclipsa
todas as tiranias do passado ao praticar uma impiedosa perseguição de
dissidentes e ao fazer de tudo para privar o indivíduo de toda e qualquer
oportunidade de incorrer em atividades espontâneas. Seria considerado um lunático o homem que
dissesse a eles que a abolição da liberdade, de todos os direitos civis e do
governo baseado no consenso do governado seria chamada de libertação. Entretanto, tudo isso aconteceu.
O
historiador pode entender e fornecer explicações psicológicas para essa radical
e repentina mudança na ideologia. Porém,
tal interpretação de modo algum invalida as análises e críticas que os
filósofos e economistas fizeram das doutrinas charlatãs que geraram esse
movimento.
O
pilar da civilização ocidental está no âmbito das ações espontâneas que ela
assegura ao indivíduo. Sempre houve
tentativas de reprimir a capacidade de iniciativa do indivíduo, mas o poder dos
opressores e inquisidores nunca foi absoluto.
Não se conseguiu impedir o surgimento da filosofia grega e de seu
desdobramento romano, bem como o desenvolvimento da ciência moderna e da
filosofia.
Guiados
pelo seu gênio inato, os pioneiros consumaram suas obras a despeito de toda
hostilidade e oposição. O inovador não
teve de esperar pelo convite ou pela ordem de ninguém. Ele pôde avançar de acordo com sua própria
vontade e assim desafiar os ensinamentos tradicionais. Na esfera das ideias, o Ocidente em geral
sempre usufruiu as bênçãos da liberdade.
E
então veio a emancipação do indivíduo no campo dos negócios, um feito do novo
ramo da filosofia: a economia. Plena
liberdade foi dada ao homem empreendedor que sabia como enriquecer seus
semelhantes por meio do aprimoramento dos métodos de produção. Uma abundância de bens foi despejada sobre o
homem comum em decorrência da adoção do princípio capitalista da produção em
massa para a satisfação das necessidades das massas.
Para
avaliarmos corretamente os efeitos da ideia ocidental de liberdade, temos de
contrastar o Ocidente com as condições predominantes naquelas partes do mundo
que jamais compreenderam o significado de liberdade.
Alguns
povos do Oriente desenvolveram a filosofia e a ciência muito antes dos
antepassados da atual civilização Ocidental terem emergido do barbarismo
primitivo. Há boas razões para supor que
a astronomia e a matemática gregas ganharam seu primeiro impulso ao entrarem em
contato com o que já havia sido realizado no Oriente.
Mais
tarde, quando os árabes adquiriram um conhecimento da literatura grega por meio
das nações que eles haviam conquistado, uma extraordinária cultura islâmica
começou a florescer na Pérsia, na Mesopotâmia e na Espanha. Até o século XIII, a ciência árabe não era
inferior às façanhas contemporâneas do Ocidente. Mas então a ortodoxia religiosa islâmica
impôs o conformismo permanente e inabalável, e, com isso, pôs fim a toda
atividade intelectual e a todo pensamento independente que existiam até então
nos países muçulmanos, como já havia acontecido antes na China, na Índia e na
esfera do cristianismo
oriental.
As
forças da ortodoxia e a perseguição de dissidentes, por outro lado, não
conseguiu silenciar as vozes da ciência e da filosofia ocidentais, pois o
espírito da liberdade e do individualismo já estava forte o bastante no
Ocidente para sobreviver a todas as perseguições. Do século XIII em diante, todas as inovações
intelectuais, políticas e econômicas originaram-se no Ocidente. Até que o Oriente voltasse a prosperar há
apenas algumas décadas, quando entrou em contato com o Ocidente, o histórico
dos grandes nomes da filosofia, das ciências, da literatura, da tecnologia, do
governo e dos negócios dificilmente mencionava algum oriental.
O
Oriente estava estagnado em um conservadorismo rígido até o momento em que as
ideias ocidentais começaram a se infiltrar.
Para os orientais, coisas como escravidão, servidão, intocabilidade,
costumes como o sati ou a
mutilação dos pés das meninas, punições bárbaras, miséria em massa, ignorância,
superstição e desprezo por hábitos de higiene não lhes afetavam em nada. Incapazes de compreender o
significado da liberdade e do individualismo, eles estão ainda hoje encantados
com o programa do coletivismo.
Embora
esses fatos sejam bem conhecidos, milhões de pessoas hoje apóiam
entusiasmadamente políticas que intencionam substituir o planejamento autônomo
do indivíduo pelo planejamento feito por uma autoridade. Tais pessoas estão ansiosas para se tornarem
escravas.
Obviamente,
os paladinos do totalitarismo protestam dizendo que o que eles querem abolir é
"apenas a liberdade econômica", sendo que todas "as outras liberdades"
permanecerão intocadas. Porém, a
liberdade é indivisível. Essa distinção
entre a esfera econômica da vida e da atividade humana e a esfera não-econômica
é a pior de suas falácias. Se uma
autoridade onipotente possui o poder de especificar para cada indivíduo qual
tarefa ele deve efetuar, então não lhe restou nada que possa ser chamado de
liberdade ou autonomia. Ela poderá
apenas escolher entre obediência estrita ou morte por inanição.
Pode-se
formar comitês de especialistas para aconselhar a autoridade planejadora sobre
se um jovem deve ou não ter a oportunidade de trabalhar no campo artístico ou
intelectual. Porém, tal arranjo irá
meramente educar discípulos dedicados à repetição, qual papagaios, das ideias
inventadas pela geração anterior à dele.
Inovadores
que discordassem das maneiras pré-aprovadas de se pensar seriam barrados. Nenhuma inovação jamais teria sido realizada
caso seu inventor tivesse de pedir autorização para aqueles de cujos métodos e
doutrinas ele quisesse divergir. Hegel
jamais teria autorizado Schopenhauer ou Feuerbach, tampouco o professor Rau teria
autorizado Marx ou Carl Menger.
Se
o comitê de planejamento supremo tiver de determinar em última instância quais
livros devem ser impressos, quem pode fazer experimentos nos laboratórios, quem
deve pintar ou fazer esculturas, e quais alterações devem ser feitas em métodos
tecnológicos, não haverá nem melhorias nem progresso. O indivíduo se torna um peão nas mãos dos
soberanos, os quais, em sua "engenharia social", irão manuseá-lo da mesma
maneira que engenheiros manuseiam os objetos com os quais constroem edifícios,
pontes e máquinas.
Em
todas as esferas da atividade humana, uma inovação é um desafio não apenas para
aqueles que gostam de seguir rotinas e para os especialistas e praticantes de
métodos tradicionais; é um desafio ainda maior para aqueles que no passado
foram inovadores. Toda inovação
enfrenta, em seu começo principalmente, uma obstinada oposição. Tais obstáculos podem ser superados em uma
sociedade em que haja liberdade econômica.
Mas eles são intransponíveis em um sistema socialista.
A
essência da liberdade de um indivíduo é a oportunidade de divergir e se
distanciar das maneiras tradicionais de se pensar e de se fazer as coisas. O planejamento feito por uma autoridade
central estabelecida impossibilita todo e qualquer planejamento feito pelos
indivíduos.