As
críticas ao livre mercado feitas pelo papa Francisco em sua Exortação
Apostólica Evangelii Gaudium ("A Alegria do
Evangelho") geraram fortes reações ao redor do mundo. Uma atenção especial foi dedicada a uma
passagem na qual o documento faz uma crítica "às teorias do 'gotejamento'[1],
as quais supõem que o crescimento econômico, estimulado por um livre mercado,
irá inevitavelmente produzir maior igualdade e inclusão social no mundo. Esta
opinião, que nunca foi confirmada pelos fatos, exprime uma confiança vaga e
ingênua na bondade daqueles que detêm o poder econômico e nos mecanismos
sacralizados do sistema econômico reinante." (cap. 2, parágrafo 54).
Em
primeiro lugar, é sim válido admitir a possibilidade de haver nuanças
semânticas que podem levar a interpretações errôneas, pois Evangelii
Gaudiium não é um documento econômico. Ademais, o "sistema econômico reinante" não é
exatamente uma cópia heliográfica de um livre mercado. No entanto, a crítica ao livre mercado é
clara e é difícil contestar que o documento não esteja se referindo ao livre
mercado, mesmo se considerarmos as nuanças semânticas. Em segundo lugar, o termo "gotejamento" não é
um termo técnico, muito menos uma teoria, mas sim apenas uma palavra
depreciativa utilizada pela esquerda e por outros grupos críticos ao livre
mercado.
Este
escorregão terminológico (apenas um exemplo dentre vários outros) sugere a
necessidade de mais cuidado em relação às fortes alegações feitas pelo
documento em relação a questões econômicas.
Declarações categóricas em um documento desta importância deveriam ser
mais bem articuladas e fundamentadas.
Imagine um documento econômico crítico à Igreja fazendo um uso
claramente superficial da linguagem utilizada pela entidade, acompanhada por
adjetivos como "vaga e ingênua".
Utilizar definições imprecisas pode fazer com que vejamos problemas que
na realidade não existem.
Em
terceiro lugar, o efeito produzido pela Evangelii Gaudium sobre a
opinião pública nos convida a analisar e a comparar alguns indicadores gerais
sobre o bem-estar econômico e social daqueles países que são mais inclinados ao
livre mercado em relação àqueles que são menos propensos ao livre mercado. Seria verdade que o livre mercado deixa os
mais pobres desamparados e marginalizados?
O que há de verdade e o que há de mito nas frequentes e abundantes
críticas ao "capitalismo selvagem"? O
que o papa Francisco expressou foi, na realidade, apenas uma repetição desta
generalizada crença que permeia vários setores da sociedade na maioria dos
países ao redor do mundo.
Se
agruparmos os países do mundo em quatro categorias de acordo com sua liberdade
econômica fica mais fácil obter uma perspectiva da situação social e econômica
dos países mais livres e dos menos livres.
Isso permite a obtenção de um gradiente de resultados e também nos
permite observar as diferenças entre os países mais livres e os menos
livres. É importante deixar claro que
foram levados em conta os dados de todos os países, e não apenas os dados de
alguns poucos (mais detalhes metodológicos aqui)
-- afinal, tal trapaça permitiria que tanto um crítico quanto um defensor do
livre mercado escolhessem apenas aqueles países que mais lhes fossem
convenientes. É necessário utilizar toda
a amostra como referência, e não uma mera seleção ad hoc.
Vamos,
então, analisar alguns dados econômicos e sociais dos países ao redor do mundo
de acordo com sua liberdade econômica.
Os
gráficos a seguir mostram o PIB per capita mensurado de acordo com a paridade
do poder de compra da população (ou seja, já ajustado pelo custo de vida) e a
taxa de crescimento médio durante um período de 10 anos. Os países estão separados em quatro grupos de
acordo com sua liberdade econômica. Em
azul, o grupo dos países economicamente mais
livres do mundo. Em vermelho, o grupo
dos menos livres. Em verde e em amarelo, os países de liberdade
intermediária, sendo os países do grupo verde mais livres que os do grupo
amarelo.
Como
os gráficos mostram, os países mais livres não apenas são mais ricos, como
também crescem mais rapidamente no longo prazo. (As fontes estão listadas no final do artigo.)

Gráfico 1: PIB
per capita ajustado pelo poder compra. Em
azul, o grupo dos países economicamente mais livres do mundo. Em vermelho, o grupo dos menos livres. Em verde e em amarelo, os países de liberdade
intermediária, sendo os países do grupo verde mais livres que os do grupo
amarelo.

Gráfico 2: taxa
de crescimento médio do PIB per capita entre 1991 e 2011. Em azul, o grupo dos
países economicamente mais livres do mundo.
Em vermelho, o grupo dos menos livres.
Em verde e em amarelo, os países de liberdade intermediária, sendo os
países do grupo verde mais livres que os do grupo amarelo.
Ao
serem confrontados com estes resultados, a principal objeção apresentada pelos
intervencionistas é que o PIB per capita (ajustado pela paridade do poder de
compra) é apenas um valor médio, o qual nada diz sobre a distribuição de
renda. Ao recorrerem a este argumento, a
intenção implícita dos intervencionistas é afirmar que os países mais ricos
apresentam uma distribuição de renda mais desigual. Ou seja, o crescimento gerado pelo livre
mercado seria inegável, mas seria um crescimento imoral.
Antes
de tudo, é válido observar que a maneira como a renda é distribuída pode ter
várias causas. Um sistema em que haja
uma distribuição desigual de renda em decorrência do fato de que o partido
político que está no poder beneficia alguns poucos setores empresariais (como
ocorre no "capitalismo de estado") à custa dos consumidores é diferente de um
sistema em que as diferenças na distribuição de renda ocorrem em decorrência do
fato de que alguns empreendedores e indivíduos são mais bem-sucedidos do que
outros. O primeiro caso retrata uma distribuição
de renda "ruim" ao passo que o segundo caso representa uma distribuição "boa",
pois ela promove o real crescimento econômico.
Essa
diferença conceitual -- e o fato de que impor uma igualdade de renda requer a
abolição da igualdade perante a lei -- parece ser um problema ignorado por
aqueles que utilizam a distribuição de renda como principal argumento contra o
livre mercado.
Por
exemplo, onde estão os Steve Jobs, os Bill Gates e os Jeff Bezos de países como
Cuba e Coréia do Norte? Uma maneira de
constatar se a distribuição de renda de um país é tão ruim quanto alegam os
intervencionistas é analisar a fatia da renda recebida pelos 10% mais pobres da
população.
Os
gráficos a seguir mostram a renda per capita dos 10% mais pobres dos quatro
grupos de países. O gráfico 3 mostra que
os 10% mais pobres recebem, em média, a mesma porcentagem da renda tanto nos
países mais livre quanto nos menos livres, o que significa que a fatia de renda
apropriada pelos mais pobres é semelhante independentemente da liberdade
econômica do país.

Gráfico 3: porcentagem da renda total
apropriada pelos 10% mais pobres. Em
azul, o grupo dos países economicamente mais livres do mundo. Em vermelho, o grupo dos menos livres. Em verde e em amarelo, os países de liberdade
intermediária, sendo os países do grupo verde mais livres que os do grupo amarelo.
Como
mostrado no gráfico acima, se você faz parte dos 10% mais pobres, não faz muita
diferença se você vive em um dos países menos livres do mundo ou em um dos mais
livres. Em termos de percentuais, seu grupo irá receber aproximadamente apenas 2,6% da renda total.
No
entanto, há uma diferença crucial: o
valor desta renda. Se você vive em
um dos países menos livres do mundo, você terá de se virar com US$932 por
ano. Por outro lado, se você vive em um
país livre, você terá uma renda anual de US$10.556. Este detalhe não é nada insignificante.

Gráfico 4: renda anual per capita dos 10%
mais pobres. Em azul, o grupo dos países economicamente mais livres do
mundo. Em vermelho, o grupo dos menos
livres. Em verde e em amarelo, os países
de liberdade intermediária, sendo os países do grupo verde mais livres que os
do grupo amarelo.
Novamente,
ao serem confrontados com estes resultados, a principal objeção apresentada
pelos intervencionistas é que estes dados mostram apenas o quintil da renda
mais baixa, e que seria mais apropriado prestar atenção a indicadores como o
Coeficiente de Gini, o qual mensura a distribuição de renda de toda a
população. Uma distribuição
perfeitamente igualitária resulta em um Coeficiente de Gini de 0, e uma distribuição
perfeitamente desigual (no qual apenas um indivíduo concentra toda a riqueza do
país) resulta em um valor de 100.
O
gráfico abaixo mostra o Coeficiente de Gini para os 25 países mais economicamente
livres (em vermelho) e os 25 países menos economicamente livres (em azul). Atenção que a partir de agora as cores se
invertem: os países mais economicamente livres estão em vermelho, e os menos,
em azul.
Como
pode ser visto, na média, as economias mais livres apresentam uma melhor
distribuição de renda de acordo com este indicador. O argumento de que economias livres
apresentam maior desigualdade de renda é um mito gerado pelo simples erro de se
observar apenas alguns poucos países e não a totalidade da amostra. Ao selecionarmos apenas alguns poucos países
podemos inconscientemente escolher países que confirmam nossas ideologias e
ideias pré-concebidas. Mas isso não
ocorre se analisarmos toda a amostra.
Logo,
a pergunta é: se você sabe que pertencerá à seção dos mais pobres de uma
população, em qual tipo de país você preferiria viver: em um dos mais livres do
mundo ou em um dos menos livres? Os mais
"pobres" dos EUA, por exemplo, possuem uma renda 60% maior do que a renda da
população mundial.

Gráfico 5:
Coeficiente de Gini para os 25 países mais economicamente livres do mundo
(vermelho) e para os 25 menos livres do mundo (azul). Quanto menor o número, menor a desigualdade de
renda entre pobres e ricos.
Novamente,
ao serem confrontados com estes resultados, a principal objeção apresentada
pelos intervencionistas é que os dados representam apenas uma fotografia do
momento; ele não captam a evolução dos dados, os quais mostrariam que os ricos
estão ficando mais ricos e os pobres, mais pobres.
O
gráfico abaixo mostra a mudança ocorrida na renda média de cada quintil de
renda da população. Como é possível ver,
é verdade que os ricos estão ficando mais ricos (exceto justamente no quintil
superior), mas o fato é que os quintis de renda mais baixa estão, na média, vivenciando
um aumento de renda a uma taxa superior
ao aumento observado nos quintis maiores.
O gráfico mostra a diferença de renda entre pais e filhos que pertencem
ao mesmo quintil.

Gráfico 6: evolução da renda da população
nos países mais economicamente livres do mundo separadas por quintis. Em azul, a renda dos pais. Em vermelho, a renda dos filhos, ou seja, a
renda da geração seguinte.
Não
apenas é um mito dizer que as economias que apresentam mercados mais livres são
mais propensas a apresentar uma pior distribuição de renda, como a realidade é
que a pobreza diminuiu ao longo das
últimas décadas.
O
gráfico abaixo mostra o declínio da população que vive com menos de US$1 por
dia entre 1970 e 2000. Durante estes 30
anos, a população que ganha menos de US$1 por dia caiu para quase um terço do
valor inicial. Dado que as economias
mais livres estão crescendo mais rapidamente, e que as economias menos livres
estão crescendo mais lentamente, fica claro qual é o grupo de países que está
liderando a redução da pobreza e qual é o grupo que está retardando o processo.

Gráfico 7:
distribuição mundial de renda. No eixo
X, o valor da renda per capita. No eixo
Y, o número de pessoas que ganham um valor específico de renda per capita. Observe o marco do $1/day (um dólar por dia)
e como o número de pessoas que ganham esse valor específico caiu ao longo de
três décadas.
Vejamos
agora alguns indicadores sociais e ambientais que são de interesse geral. O gráfico 8 mostra o trabalho infantil, o
gráfico 9 mostra a poluição ambiental e o gráfico 10 mostra a taxa de
desmatamento. Novamente é possível ver a
persistência dos mitos sobre os supostos malefícios do livre mercado. Os países mais livres do mundo, na média,
apresentam menos trabalho infantil e níveis mais baixos de poluição. Já o gráfico 10 mostra que os países menos
livres, na média, apresentam mais desmatamento, ao passo que os mais livres
estão reflorestando suas terras.

Gráfico 8:
Porcentagem de crianças entre 5 e 14 anos que trabalham. Em azul, os países
menos economicamente livres. Em
vermelho, os países mais economicamente livres.

Gráfico 9: Nível
de poluição. Em azul, os países menos
economicamente livres. Em vermelho, os
países mais economicamente livres.

Gráfico 10: taxa
de desmatamento (negativa) e de reflorestamento (positiva). Em azul, os países
menos economicamente livres. Em
vermelho, os países mais economicamente livres
Conclusão
Primeiramente,
defensores do livre mercado não afirmam que tal sistema econômico é
perfeito. Mas promover intervenções no
mercado utilizando a desculpa de que o mercado não é perfeito é uma medida que não ajuda em nada na criação de riqueza e na redução da pobreza. De fato, o livre mercado não é perfeito; no
entanto, é insensato fazer desta imperfeição a desculpa para se promover
arranjos institucionais menos eficientes.
Segundo,
todos os resultados acima se mantêm se olharmos as diferenças entre os países
mais e menos livres, porém restringindo a amostra somente para países
pequenos. Ou seja, os dados acima não
decorrem de uma deturpação estatística gerada por "países grandes", os quais,
simplesmente por serem grandes, afetam os resultados gerais.
Terceiro,
os mesmos resultados também são observados se pegarmos apenas o grupo dos
países menos livres e analisarmos os países mais livres e os menos livres dentro deste grupo. Isso significa que a teoria da exploração
internacional não se sustenta. Dentro do
grupo dos países menos livres, as economias que possuem mais liberdade
apresentam indicadores sociais e econômicos melhores do que os das economias
menos livres.
Por
último, mas não menos importante, os comentários presente neste artigo se
propõem a desmascarar críticas comuns feitas ao livre mercado, as quais são
opiniões generalizadas que transcendem em muito o documento papal em questão. Estes comentários não têm a
intenção de questionar a autoridade espiritual e religiosa das autoridades
máximas da Igreja, mas é sempre bom não confundir autoridade espiritual e
religiosa com autoridade econômica.
Fontes utilizadas:
(1) Economic Freedom of the World
2013 Annual Report (Fraser Institute), (2) Free Our Economies e (3) 2007 Index of Economic Freedom (Heritage
Foundation).
Leia também: A doutrina social da Igreja Católica e o capitalismo
[1] Este
termo pejorativo é uma tradução livre da expressão "trickle-down economics", criada
durante a Grande Depressão, mas popularizada durante a era Reagan. A expressão "trickle-down", que literalmente
significa "pingar de cima para baixo", é uma referência pejorativa à teoria de
que cortes de impostos para os mais ricos irão acabar beneficiando também os
mais pobres -- daí a expressão "pingar de cima para baixo".