O debate sobre mercado e moralidade possui um longo histórico.
Karl Marx acreditava que existia algo intrinsecamente imoral no sistema que
ele chamava de 'capitalismo'. Baseando-se em sua "teoria do valor-trabalho", ele
concluiu que, por causa da propriedade privada dos bens de produção, os
trabalhadores eram alienados daquilo que produziam. [Nota do IMB: todo esse raciocínio está
demolido aqui].
Há ainda hoje uma grande mácula sobre esse debate.
Muitos daqueles que percebem a importância do livre mercado para a
sobrevivência da sociedade são rápidos em resumir as falhas nos argumentos de
Marx, mostrando como o valor econômico de uma mercadoria não depende, como Marx argumentava, da quantidade de tempo,
trabalho e esforço que um determinado trabalhador utiliza na sua produção, mas
sim no valor de uso (subjetivo) da mercadoria para o consumidor final.
Até aí, tudo bem. Só que outra
conclusão é frequentemente incorporada a essa legítima resposta a Marx. Os críticos de Marx concluem que, em vez de o
mercado ser intrinsecamente mau, ele é, na verdade, intrinsecamente bom. A comprovação disso, argumentam, pode ser
vista pela espantosa eficiência de uma economia livre na produção de maiores
quantidades de riqueza e na distribuição mais ampla da riqueza entre todos os
membros da sociedade.
Afinal, continuam eles, pode alguém negar que a livre iniciativa, a livre transação
de bens e serviços, e a expansão dos mercados são majoritariamente responsáveis
pelo aumento do padrão de vida ao redor do mundo, medido em termos de acesso a bens
e serviços que tornam a vida melhor, mais fácil e até mesmo mais feliz?
Os defensores dessa teoria irão então apontar para centenas de estudos
empíricos que demonstram a relação direta entre, de um lado, menor carga
tributária e menor regulamentação e, de outro, a prosperidade geral das nações.
Frente ao exposto, concluirão: "Isso tudo não é bom? Isso não seria uma prova da moralidade
intrínseca do livre mercado?".
Não há absolutamente nenhuma dúvida em minha mente quanto à veracidade das afirmações
empíricas desses argumentos. Mas a
questão a ser analisada não é o benefício instrumental que a liberdade econômica
proporciona aos indivíduos, mas sim se o mercado é, em si mesmo, intrinsecamente
moral. Muitas pessoas bem-intencionadas não fazem uma distinção entre algo ser instrumental
(isto é, servir apenas como um meio) e algo ser intrinsecamente bom.
A qualidade intrínseca de um bem está relacionada à natureza desse próprio bem,
algo sem o qual o bem em questão não seria o que é. Para avaliar a moralidade intrínseca do livre
mercado é necessário ir além da mera consideração dos efeitos utilitaristas positivos
(ou mesmo negativos) que o livre mercado pode gerar. É necessário analisar a
própria natureza do livre mercado.
Se olharmos para além dos efeitos
instrumentais de uma economia livre -- a qual não se limita ao dinheiro e nem à
sua alocação ou distribuição --, descobrimos que, em seu nível mais fundamental,
a economia diz respeito à ação humana: à maneira como as pessoas agem para
satisfazer suas necessidades.
Uma analogia simples pode ajudar a esclarecer essa situação. Pergunte-se a si mesmo o seguinte: um martelo é
algo intrinsecamente moral?
Sua resposta certamente seria: "Depende de qual será o seu uso." Se for utilizado
para quebrar a cabeça daquelas pessoas de que você não gosta, a resposta é não.
Se for utilizado para construir uma casa para desabrigados, sua resposta poderá
ser sim. Em ambos os casos, a resposta correta é dizer que o martelo não é nem
moral nem imoral; ele é amoral. Já a
pessoa que o utiliza é que pode ser avaliada do ponto de vista moral.
A análise dessas questões permite avaliar de forma mais profunda a
organização econômica da sociedade. A
questão real aqui não é de cunho financeiro, mas sim antropológico: O que é o
homem? Quem sou eu? Por que estou aqui? De onde vim? Para onde vou? Quais são
minhas responsabilidades para comigo e para com os outros?
A forma como respondemos a esses tipos de questões terá um grande impacto em
todas as facetas de nossas vidas, incluindo a maneira como trabalhamos,
compramos e vendemos, além de como acreditamos que tais atividades deveriam ser
executadas -- em outras palavras, terá um grande impacto na economia.
É apenas recorrendo a esse ponto de partida que podemos analisar a relação
entre mercados e moralidade intrínseca.
O aspecto mais patente sobre os seres humanos é que somos seres físicos. Vivemos em um mundo físico que é limitado; os
recursos que nele existem -- à exceção do ar -- são escassos; é fisicamente impossível
existir fartura para todos. Consequentemente,
essa realidade existencial dá origem à seguinte questão econômica: como alocar
adequadamente recursos escassos?
Se a questão física fosse a única dimensão da realidade humana, poderíamos
nos satisfazer com a construção abstrata -- adorada pelos economistas convencionais
-- do homo economicus (o homem exclusivamente
como uma realidade econômica). Trata-se
de uma metáfora que serve a um propósito na literatura econômica -- da mesma maneira
que uma caricatura, com suas cores primárias e distinções exageradas, pode
destacar uma característica essencial que, de outra forma, teria passado
despercebida.
Mas essa metáfora não é um retrato acurado da rica, imensa e sutil
complexidade que constitui a realidade humana. A fria e pálida abstração do homo economicus -- alguém que é unicamente
movido a agir para "maximizar sua utilidade" (como os economistas convencionais
diriam) -- busca satisfazer somente desejos materiais. O aspecto econômico do homem é verdadeiro,
contudo não representa a verdade completa sobre quem são os seres humanos.
Analisando de forma mais profunda, em um nível intrínseco, torna-se claro
que as pessoas são motivadas por objetivos e metas mais elevados, os quais não
são facilmente reduzidos a um livro contábil -- por mais que a contabilidade seja crucial para a saúde
econômica da família, da empresa e da sociedade como um todo.
Imagine por um momento como seria a vida em sociedade caso as pessoas fossem
motivadas a agir somente por algum tipo de satisfação sexual. As ruas
simplesmente não seriam seguras; com efeito, embora somente algumas pessoas
sejam motivadas unicamente por sua sexualidade, muitas ruas não são seguras. Essa perspectiva antropológica coloca-nos em
uma melhor posição para discernir o que é intrinsecamente bom com relação à
pessoa humana: o que ajuda o indivíduo a prosperar em sua plenitude é o padrão
pelo qual podemos determinar o que é moral.
Voltando agora nossa atenção para um entendimento do mercado, é necessário estarmos
seguros sobre a real definição de mercado para responder às questões colocadas.
O mercado é essencialmente a expressão da preferência econômica dos seres
humanos. Perguntas sobre a moralidade do mercado surgem com frequência simplesmente
porque o mercado está estritamente ligado às tomadas de decisões e à melhoria
do padrão de vida dos seres humanos -- em um nível material.
E aqui reside a confusão que frequentemente surge quanto à moralidade do
mercado: humanos são mais do que sua realidade material; no entanto, ao mesmo
tempo, sua realidade material é algo sem o qual um ser humano não pode existir.
Ainda assim, o abundante benefício
material que uma pessoa desfruta não é uma indicação suficiente de seu
bem-estar moral. Embora essas duas
dimensões da existência humana sejam distintas, elas não são dissociáveis.
Outra maneira de analisar essa questão é entender que a liberdade, em si
mesma, não é uma virtude, mas sim o contexto no qual a virtude (ou o vício) se torna
evidente. Se o livre mercado é a expressão da liberdade dos agentes econômicos
para satisfazerem suas necessidades, então a moralidade do mercado dependerá de
se aqueles desejos são morais na sua concepção.
[Nota do IMB: o que nos leva à conclusão: o mercado, por si só, é amoral. O mercado é
simplesmente a arena na qual ocorrem interações voluntárias entre indivíduos. O mercado é simplesmente um sistema social
baseado na troca voluntária de títulos de propriedade. Em si mesmo, ele não é nem moral nem
imoral. Mas ele é o melhor meio a ser
utilizado para alcançar fins altamente morais (ainda não foi inventado um
melhor mecanismo para, por exemplo, melhorar o padrão de vida das pessoas). Tudo depende da moralidade das pessoas que estão
atuando nele.
E se houver alguma proposta para "regular o mercado com o intuito de
melhorar os fins alcançados", então o autor da proposta tem de provar que os
reguladores não apenas são pessoas perfeitamente prescientes no quesito econômico
(elas sabem exatamente quais serão as consequências de suas intervenções sobre
a ação humana de milhões de indivíduos), como também são pessoas de padrões éticos
e morais completamente ilibados e imaculados -- ou seja, pessoas que não existem
na terra.]