Com o sucesso de alguns recém-lançados
filmes de ficção científica, como "Perdido em Marte" e
"Interstellar", além de novas encarnações de "Jornada nas Estrelas"
e "Guerra nas Estrelas", não se pode negar que o ser humano anseia
as novidades do futuro e exercita a imaginação sobre o que a tecnologia
avançada pode realizar.
Muitos olham para o
exemplo destes mundos fictícios como uma indicação de como a vida futura poderá
ser quando a tecnologia se tornar capaz de prover soluções para resolver todas
as nossas necessidades básicas -- uma condição que alguns chamam de
"pós-escassez".
Normalmente, as pessoas
que anseiam por esse futuro são as mesmas que exortam o governo a fazer
intervenções para garantir que cada indivíduo ganhe um "salário
digno" sempre que robôs e a automação passam a dominar toda uma linha de
produção. São as mesmas que dizem que as condições da "pós-escassez" irão
solapar completamente as economias e até mesmo a própria ciência econômica.
No entanto, a escassez jamais
poderá ser eliminada, pois as nossas infinitas e insaciáveis necessidades
humanas sempre superarão os finitos meios disponíveis neste finito universo. A
escassez existe até mesmo nos seriados e filmes que supostamente representam
mundos sem escassez.
Um perfeito exemplo do
que se seria a "pós-escassez" e seu contraste com o conceito de
escassez nos dias de hoje é apresentado na série "Jornada nas Estrelas: A Nova Geração"[1].
No último episódio da
primeira temporada, a nave Enterprise[2]
se depara com uma "antiga" nave espacial flutuando pelo espaço. O tenente-comandante
Data e o Oficial de Segurança Worf encontram três seres humanos da Terra,
congelados em câmaras criogênicas há 400 anos, o que fornece à tripulação do
século XXIV a oportunidade de interagir com pessoas da época dos
telespectadores.
Um desses seres humanos
do final do século XX, Ralph Offenhouse, estava preocupado em readquirir o
controle sobre aquilo que ele esperava ser uma gigantesca fortuna: uma carteira
de ações da bolsa de valores, a qual teria então 400 anos de idade. Com efeito,
uma das primeiras coisas que ele pediu depois de ser descongelado e
ressuscitado foi uma cópia do The Wall Street Journal.
O Capitão Picard[3] informou-lhe, então, que
"Muito mudou nos últimos 300 anos. As pessoas não são mais obcecadas com a
acumulação de "coisas". Nós eliminamos a fome, o desejo e a necessidade de
posses. Nós trabalhamos para melhorar a nós mesmos e ao resto da Humanidade.
Crescemos e saímos da nossa infância".
A série apresenta uma
abordagem marxista de como os humanos passaram a ser capazes de navegar através
do espaço com replicadores de alimentos, aparelhos que emitem raios, e diversos
tipos de tecnologia que tornariam até mesmo a nossa atual busca por recursos
escassos uma mera curiosidade.
Durante os séculos que separam
a tripulação da Enterprise e seus visitantes congelados na cápsula do
tempo, a tecnologia mudou de tal forma, que passou a fornecer meios abundantes para
as necessidades materiais das pessoas. Consequentemente, a sociedade humana suplantou
o capitalismo e o comércio e entrou para a fase do socialismo, como Karl Marx havia
previsto em sua teoria da história.
A economia presente no
universo de Jornada nas Estrelas é o tema de um livro a ser publicado por Manu Saadia, intitulado "Trekonomics". Saadia propõe que devemos levar o gênero
sci-fi a sério e nos preparar para a era da "pós-escassez".
Segundo o autor:
Uma boa ficção científica, como Jornada
nas Estrelas, pode ser muito divertida. Mas é, ao mesmo tempo, algo muito
sério. Seu objetivo central é explorar as mudanças que estão à nossa frente. Quais
são as consequências econômicas, sociais e até mesmo psicológicas das mudanças
tecnológicas? O que vai acontecer aos seres humanos em um mundo que funciona com
autômatos?
Noah Smith faz um prognóstico similar:
O surgimento de novas tecnologias
significa que todas as questões econômicas irão mudar. Em vez de termos um
mundo definido pela escassez, viveremos em um mundo moldado aos nossos desejos.
Seremos capazes de decidir o tipo de pessoas que queremos ser e o tipo de vida
que queremos viver, em vez de o mundo decidir isso por nós. A utopia de Jornada
nas Estrelas nos libertará dos grilhões desta "ciência lúgubre", que é a
economia.
Ambos argumentam que os mercados
e o comércio se tornariam desnecessários tão logo alcançássemos as supostas
condições de "pós-escassez". O próprio estudo da ciência econômica será uma
coisa do passado, assim como videocassetes e toca-fitas.
A escassez é fundamental no universo.
No entanto, e infelizmente
para todos nós, a escassez sempre continuará a existir. E a única maneira de
maximizar a satisfação do ser humano que vive em meio a um conjunto limitado de
recursos é por meio de mercados livres: propriedade privada e o livre sistema
de preços. A escassez é um fato fundamental de nosso universo -- estamos
irrevogavelmente vinculados a ela pelas leis da física e pela lógica.
Mesmo no mundo imaginário
de Jornada nas Estrelas, não apenas escassez ainda está presente, como também
a propriedade privada (ou auto-propriedade) é uma constante. No mesmo episódio
citado acima, o Capitão Picard e a tripulação têm um tenso confronto com os
Romulanos[4], que invadiram o espaço da
Federação[5]. Ambos os lados estavam
investigando a destruição de alguns dos seus postos avançados na chamada
"Zona Neutra"[6]. Neste caso, vemos que o
espaço não apenas não é a fronteira final, como também, aparentemente, possui
fatias que são propriedade de alguém. No episódio, vemos que tanto os
postos avançados dos romulanos como os da Federação também são escassos e também
são propriedade.
Outro exemplo ocorre quando
Ralph Offenhouse estava vagando pela ponte principal da Enterprise
durante este confronto com os romulanos. O capitão Picard ordena aos agentes de
segurança: "Tirem esse cara da minha ponte!"
Ou seja, não podemos conceber
nem sequer um universo fictício sem escassez. Não é possível haver tempo,
espaço, ou qualquer coisa que tenha capacidades ilimitadas de satisfazer nossos
desejos. Tal universo seria eterno, atemporal, abstrato e com a capacidade de
agradar e satisfazer a todos. É difícil imaginar um programa de TV com base em
tal universo, simplesmente porque não haveria conflitos para os personagens terem
de superar.
O que Manu Saadia e Noah
Smith querem dizer com "pós-escassez", portanto, é apenas que algumas
coisas serão mais abundantes do que antes. Mas esta perspectiva não
significa o fim da economia e da ciência econômica, pois mesmo hoje vários bens
são mais abundantes do que eram no passado.
Não importa o que aconteça,
os indivíduos ainda terão de continuar fazendo escolhas sobre como utilizar de
maneira mais eficiente os recursos escassos. Podemos, no máximo, fazer as
coisas ficarem relativamente menos escassas, mas nunca poderemos revogar a
escassez como condição fundamental de nosso universo.
Vencer a "subsistência" não é o mesmo que vencer a
"escassez".
Suponha que todas as
famílias do mundo tenham todas as suas necessidades biológicas abundantemente
satisfeitas. A comida é fornecida por replicadores, como aqueles que existem na
Enterprise. Todo mundo tem a quantidade exata de abrigo de que
necessitam. Super-medicamentos e todos os serviços de saúde são prontamente
fornecidos com o toque de um botão em sua própria casa.
O que isso significa? Significa apenas que as pessoas poderiam
perseguir outros objetivos que não a mera sobrevivência; objetivos como a arte,
o entretenimento, a aprendizagem ou o simples relaxamento. Nossa demanda por
bens e serviços não acaba tão logo ultrapassamos o nível mínimo do consumo voltado
exclusivamente para a subsistência. Isto é o óbvio ululante para qualquer um
com os meios para ler este artigo.
No que mais, é
perfeitamente possível haver demanda por alimentos e outros bens especificamente
feitos por mãos humanas, mesmo que os robôs ou replicadores possam fazer algo
idêntico ou mais preciso e a um custo menor. Vemos isso hoje e estamos longe do
mundo de Jornada nas Estrelas.
Há ocasiões em que
gostamos de saber que alguma coisa foi feita de uma determinada maneira, e isso
se traduz em uma demanda por bens quem têm um processo de produção peculiar, geralmente
intensivo em trabalho. Feiras de artesanato são muito comuns, mesmo quando
muitos dos itens oferecidos em tais feiras são produzidos maciçamente em outros
lugares.
Já ao final do episódio
citado, quando Ralph Offenhouse está em uma crise existencial, ele pergunta ao
capitão Picard qual o propósito da vida no século XXIV, já que não é
"acumular riqueza":
Capitão Jean-Luc Picard: Necessidades
materiais não existem mais.
Ralph Offenhouse: Então qual é o
desafio?
Capitão Jean-Luc Picard: O desafio, Sr.
Offenhouse, é melhorar a si mesmo. Para enriquecer a si mesmo. Aproveite.
O que Picard não percebeu
é que melhorar e enriquecer a si mesmo -- ou a própria missão da Enterprise: "explorar
novos mundos, pesquisar novas vidas e novas civilizações, audaciosamente ir aonde
nenhum homem jamais esteve" -- envolve o uso de recursos materiais
escassos, tais como naves espaciais, tripulações, planetas a serem explorados,
comunicadores, máquinas de teletransporte, phasers, dobra espacial etc.
Picard também não
percebeu o quão rico ele é. Riqueza é a capacidade de satisfazer as
necessidades, e seu posto na Enterprise faz dele um humano imensamente
rico, com todos os replicadores, o holodeck
(simulador de ambiente) e o acesso instantâneo a cuidados médicos de primeira
categoria. Para alguém que rejeita a acumulação de riqueza, ele próprio acumulou
uma grande quantidade dela.
Embora as necessidades
biológicas possam ser abundantemente satisfeitas, os desejos humanos superam o número
de estrelas. Sendo assim, a escassez é inevitável da mesma maneira que a
gravidade é inevitável. Assim como também
inevitável é o "fluxo contínuo do tempo", nas palavras de Mises.
O nosso objetivo é a alocação
ótima desses recursos escassos, e apenas com mercados livres poderemos
"assim fazê-lo"[7].
Tradução de Pedro
Borges Griese
[1] Original: Star Trek: The Next Generation
[2] N.T.: Famosa nave espacial de Jornada nas Estrelas. Na série "A Nova
Geração" o capitão Picard e sua tripulação viajam pela galáxia a bordo da
Enterprise NCC-1701-D.
[3] N.T.: Jean-Luc Picard é o capitão da nave estelar Enterprise
e um dos protagonistas da série.
[4] N.T.: Espécie
alienígena do universo de Jornada nas Estrelas. São um império galáctico,
expansionista, cuja estrutura social se assemelha do Império Romano. Um dos
principais rivais espaciais da Federação de Planetas Unidos.
[5] N.T.: A Federação
dos Planetas Unidos, na maioria das vezes chamada simplesmente de
"Federação", é um corpo governamental ficcional. Nas séries e filmes,
a Federação é descrita como um Estado federal interestelar que abriga mais de
150 plantas-membros. Uma espécie de ONU da galáxia, cujo planeta Terra é um dos
principais, sendo os humanos uma das principais raças.
[6] N.T.: No
universo ficcional de Jornada nas Estrelas, antes do século XXIV, os romulanos
e a Federação entraram em uma imensa guerra espacial. Com a extensão da guerra
causando enormes perdas para ambos os lados, um armistício foi negociado
cessando as agressões. Estabeleceu-se uma "área espacial" entre as "fronteiras"
destes dois estados, onde nenhuma nave, de nenhum lado, poderia avançar. Caso
contrário, seria uma violação ao tratado e considerado ato de guerra. Isso
resultou em um período de relativa paz, uma espécie de guerra fria. A área
entre os estados ganhou o nome de Zona Neutra.
[7] N.T.: Do original "make it so". Frase
de comando muito utilizada pelo Capitão Picard.