Na
segunda semana de novembro, o primeiro-ministro da Índia Narendra Modi anunciou que as cédulas de 500 rúpias (US$ 7,50 ou R$ 25) e de 1.000 rúpias (US$ 15 ou
R$ 50) estavam banidas. Ou seja, tornava-se proibido qualquer pessoa
utilizá-las na economia.
A
surpreendente e traumática medida -- mantida em segredo até o último momento e
adotada literalmente da noite para o dia -- tinha o intuito, segundo o governo,
de atacar os integrantes do mercado negro (que utilizam exclusivamente dinheiro
vivo de alto valor nominal), acabar com a corrupção que atualmente permeia
todos os níveis do governo e reduzir a sonegação.
Essas
duas cédulas abolidas representavam quase 80% de todo o dinheiro vivo em circulação,
e, segundo o governo, eram utilizadas majoritariamente para sonegar impostos e
pagar propinas.
No
entanto, a medida serviu apenas para criar caos e
desespero para milhões de cidadãos indianos. Da noite para o dia, eles se
viram em posse de um dinheiro que não mais tinha uso. Não apenas toda a sua poupança
na forma de dinheiro vivo havia sido subitamente
aniquilada, como ainda havia se torna impossível comprar itens básicos.
Consequentemente,
as pessoas correram para os caixas automáticos dos bancos para tentar sacar cédulas
de menor denominação (ainda permitidas). Como era de se esperar, os caixas rapidamente
ficaram sem dinheiro. Outras correram para os bancos, o que gerou enormes
filas, as
quais se degeneraram em brigas físicas e tumultos generalizados. Várias pessoas
foram pisoteadas. Também, como era de se esperar, os bancos não tinham dinheiro
vivo suficiente para atender a todas as demandas.
Repentinamente,
boa parte da população não tinha dinheiro para comprar comida e itens básicos. Uma
menina de 8 anos morreu porque seu pai não conseguiu levá-la ao hospital, já
que o posto de gasolina estava proibido pelo governo de aceitar a cédula de
1.000 rúpias oferecida pelo pai. Sem gasolina, o homem teve de ver a filha
morrer.
Essas
são apenas uma pequena fração das histórias de horror vivenciadas pelos
indianos. Em meio a tamanho caos, o governo decidiu reintroduzir essas cédulas abolidas,
mas agora com um novo desenho. Mais: ele também criou uma nova cédula de 2.000
rúpias -- o que, na prática, revoga todos os seus objetivos declarados.
Aturando e arcando com tudo
O
fato é que vários indianos estão tão fartos da rotineira corrupção que assola o
país, que eles estão dispostos,
ainda que contrariados, a arcar com estes fardos se tais medidas realmente
acabarem com a corrupção. Mal sabem eles que isso não fará nem cócegas: todo
esse confisco do dinheiro gerou apenas uma inconveniência temporária para os
sonegadores e lavadores de dinheiro, os quais já encontraram brechas
que não apenas permitiram que eles minimizassem as perdas como ainda lucrassem
com a medida.
E
isso -- o fato de a tentativa de proibir o dinheiro ter gerado efeitos não-premeditados
e ter beneficiado aqueles a quem o governo queria punir -- é ótimo: novas
tentativas asininas serão agora menos prováveis.
Outros,
mais sensatos, já perceberam
que "o verdadeiro dinheiro da corrupção e do mercado negro... já está guardado
em contas bancárias na Suíça", de modo que são as pessoas comuns e os pequenos comerciantes
e empreendedores os realmente afetados pela medida.
A
Índia possui uma das populações menos bancarizadas do mundo (apenas
35% da população utiliza bancos). Isso significa que mais de 800 milhões de
pessoas não têm conta bancária e, consequentemente, mantinham toda a sua poupança
em dinheiro vivo. Todas estas pessoas não apenas tiveram, repentinamente, sua poupança
aniquilada, como agora terão de ir aos bancos para trocar as cédulas inutilizadas
pelas cédulas novas.
Mas
há um problema: pelas regras impostas pelo governo, os bancos só podem trocar
4.000 rúpias por dia (o equivalente a R$ 200). Consequentemente, aqueles que
têm mais do que isso terão de abrir conta em banco e depositar todo o dinheiro.
Quem depositar mais de 250 mil rúpias (R$ 12 mil) será investigado e
interrogado pelo governo. E se o governo decidir que esse indivíduo sonegou
impostos, seu dinheiro será confiscado e uma
multa de 200% será imposta.
O
prazo final para se trocar todo o dinheiro nos bancos é
30 de dezembro.
Ou
seja, ao fim e ao cabo, são estes indivíduos -- pequenos poupadores, pequenos empreendedores
e pequenos comerciantes -- que ficarão em posse de um grande volume de cédulas sem
valor tão logo os bancos pararem de trocar as cédulas antigas pelas novas.
A
luta pela liberdade
Mas
é sempre interessante ver as maneiras como alguns indianos estão mantendo sua
liberdade e protegendo sua privacidade, além de evitarem o confisco dos
impostos gerados por esse evento.
A
primeira alternativa foi recorrer ao Bitcoin. A cripto-moeda
ajuda a conduzir transações anonimamente; o governo não consegue monitorar. Como
resultado da medida do governo, o preço do Bitcoin pulou de 46.963 rúpias para
48.665 em apenas 12 horas. As pessoas estão
comprando Bitcoins para lidar com essa situação. Mas essas são uma ínfima
minoria, sofisticada o bastante para isso.
E
quanto às pessoas de baixa renda que não possuem smartphones e acesso à
internet? Elas estão recorrendo a um método interessante, que valeria um artigo
próprio: elas estão utilizando vouchers da
Sodexo. Várias pequenas empresas pagam seus empregados parcialmente com
estes cupons, os quais podem ser usados para comprar alimentos, pagar refeições
e outras coisas. Os comerciantes que recebem esses vouchers podem trocá-los por
dinheiro no final do ano.
Quando
os indianos se viram sem dinheiro, eles utilizaram
os vouchers para conseguir comida nos supermercados e mercearias. Consequentemente,
o comerciante agora paga seus fornecedores também com vouchers em vez de
dinheiro vivo. O fornecedor, por sua vez, utiliza esses vouchers em outras áreas.
Isso porque os vouchers valem por um ano. Empreendedores utilizam esses
vouchers em suas transações diárias porque essas transações não precisam ser
declaradas para fins de coleta de impostos. Impostos sobre vendas, impostos
sobre serviços, e vários outros impostos são evitados desta maneira. É um tipo
de moeda paralela sendo utilizada nas cidades indianas.
Se
toda essa guerra ao dinheiro vivo continuar, empreendedores irão descobrir e
criar novas maneiras de ajudar as pessoas a fugir dos impostos. E isso não seria nada mal.
Não
é um crime arranjar seus empreendimentos de maneira a pagar a menor quantidade
de impostos possível. Com efeito, é dever sagrado de cada indivíduo garantir
que o governo e sua máfia recebam a menor quantia possível de dinheiro, de modo
que cada indivíduo trabalhador e sua família fiquem com o máximo possível. Dinheiro
nas mãos de pessoas trabalhadoras e empreendedoras é muito mais bem utilizado
do que na mão de políticos e burocratas. Quanto mais dinheiro vai para o
governo, mais o governo gasta, mais ele cresce, e mais a economia privada (a
que realmente cria riqueza) definha. Quanto maior a participação do governo na
economia, menor a participação do setor privado.
Consequentemente,
quanto mais o governo for privado do dinheiro dos cidadãos, melhor para a
economia privada, que é quem cria riqueza. Dar menos dinheiro para o governo é
a única maneira de se preservar a liberdade e garantir uma vida melhor para
todos, principalmente para a sua própria família.
Frequentemente,
a lição mais difícil de ser entendida é que a melhor e única maneira de se
acabar com esses tipos de autoritarismo é esfaimando o governo que os cria.
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Jairaj Devadiga
é um economista que olha para os menos óbvios, porém mais devastadores efeitos
das políticas estatais. É também apaixonado por medicina, computadores,
astronomia, direito e outras coisas.
Carmen
Dorobat é pós-doutoranda em economia na Universidade de
Angers e professora na Bucharest Academy of Economic Studies.