O cenário são as ruas da
cidade de Sidi Bouzid,
na Tunísia. Mohamed Bouazizi era um jovem de 26 anos que ganhava a vida como
vendedor de frutas e vegetais naquela localidade.
Todos os dias, Mohamed ia
ao mercado central comprar frutas e verduras para em seguida revendê-las em um espaço
especificamente selecionado no mercado municipal. Desde criança, esse jovem
tunisiano tinha de trabalhar muito para alimentar sua família, formada por sua mãe,
seu tio e seus irmãos.
Como muitos outros
pequenos empreendedores da região, Bouazizi fazia parte daquilo que chamamos de
economia informal, uma vez que ele não estava legalmente registrado, não tinha
carteira de trabalho, não contribuía para a Previdência, e não pagava impostos sobre
suas vendas.
Neste mundo, o jovem
comerciante sobrevivia com 73 dólares mensais.
Mas o seu grande desafio
era arcar com o permanente achaque das autoridades locais, as quais,
aproveitando-se de sua situação "ilegal", frequentemente confiscavam seus
produtos ou simplesmente os consumiam ali mesmo, sem sua permissão, e sem pagar
nada por isso.
Obviamente, os agentes do
estado também exigiam "arregos" para fazer vista grossa e não denunciarem sua situação.
No dia 17 de dezembro de
2010, Bouazizi foi acusado de cometer uma infração, o que o levou a uma discussão
com os fiscais do estado, que decidiram confiscar toda a sua propriedade: bananas,
maçãs e uma balança eletrônica, cujos valores totais chegavam a 225 dólares. Para
agravar ainda mais a situação, um policial lhe desferiu um golpe de cassetete
no rosto. Irado e humilhado, vendo todo o seu sustento lhe sendo confiscado e
tentando negociar por mais de uma hora a devolução de sua propriedade, o
desespero de Mohamed o levou a derramar um solvente de tintura (tíner) por todo
o seu corpo e atear fogo.
Durantes os 60 dias subsequentes,
outros 63 homens e mulheres em condições similares às de Bouazizi procederam da
mesma forma na Argélia, no Egito, em Marrocos, na Arábia Saudita e na Síria. Somente 26 conseguiram
sobreviver. Mohamed Bouazizi não foi um deles.
Os acontecimentos que se seguiram
a estas medidas desesperadas se tornaram conhecidos como A Primavera Árabe, um
movimento em prol de mais liberdade nos países situados majoritariamente no
norte da África e na península arábica. Mohamed Bouazizi foi
o mártir que desencadeou tudo.
Essa história da origem da
Primavera Árabe é contada
em detalhes pelo economista peruano Hernando de Soto, que considera que o
que ocorreu na Tunísia foi resultado de um sistema legal que, sobrecarregado de
regulações, obstáculos e travas, marginaliza e humilha os pobres que apenas
querem empreender.
As barreiras à entrada na
economia formal acabam fazendo com que a única alternativa para que amplas
camadas da população consigam sobreviver seja na economia informal, na qual não
há qualquer proteção efetiva aos direitos de propriedade. Pior: na economia
informal, os direitos de propriedade são infringidos pelo próprio estado, tendo
sido essa a causa da morte do jovem comerciante tunisiano.
Brasil
Mas não precisamos ir até
a Tunísia para encontrar mártires. Eles também existem no Brasil, com a diferença
de que a morte deles não gera nenhuma revolução.
Em fevereiro deste ano, uma
idosa de 65 anos que trabalhava como vendedora ambulante perto da rodoviária do
Plano Piloto, no Distrito Federal, teve
suas mercadorias (dindin e água mineral) apreendidas em uma operação de fiscalização de ambulantes.
Josefa Tiago dos Santos
estava com duas caixas de isopor quando foi abordada por três fiscais da
Subsecretaria da Ordem Pública e Social (Seops). Uma testemunha
relatou que foi uma "abordagem muito agressiva" e que os
fiscais aparentavam estar armados, pois carregavam um volume na
cintura. O material recolhido foi colocado em uma camionete branca sem
identificação do órgão.
Após ter a mercadoria
apreendida, a ambulante caiu no chão e passou mal. O Serviço de Atendimento
Móvel de Urgência (Samu) foi acionado e prestou os primeiros socorros. Ela
recebeu massagem cardíaca para ser reanimada e, depois, foi levada por uma
UTI móvel para o Hospital de Base do DF. Lá, entrou em coma.
Na manhã do dia 26, uma sexta-feira,
teve uma
parada cardiorrespiratória e morreu.
O grande crime de Josefa
Tiago dos Santos: vender bens na rua para conseguir auferir alguma renda e, com
isso, se manter viva após o governo ter destruído a economia do país.
O caso de Josefa foi
apenas mais um dentre os vários, e diários, ataques perpetrados pelo estado à
propriedade privada de trabalhadores que estão apenas ofertando bens a
consumidores que voluntariamente optam por consumi-los.
Lamentavelmente, não foi
um caso isolado. Tais medidas são mais corriqueiras do que imaginamos. Em 2015,
houve um perturbador registro de um trabalhador que tentou se suicidar após sua
mercadoria ser roubada por burocratas do estado:
Observe, a partir do
minuto 1:14, a expressão relaxada e sádica dos burocratas enquanto roubam a
propriedade de outro trabalhador, que olha desolado e impotente seu ganha-pão
lhe sendo confiscado.
Os ataques
O estado argumenta que o
problema da economia informal é que ela não paga impostos, o que reduz a arrecadação
tributária. (O governo, como sabemos, precisa de cada vez mais dinheiro para
manter o padrão de vida de seus membros e suas aposentadorias integrais). O estado
também argumenta que, dado que alguns comerciantes operam nesse marco de
ilegalidade, eles representam uma concorrência desleal perante aqueles que
pagam todos os seus impostos e cumprem com todas as regulamentações.
No entanto, a problemática
da economia informal não está em nada disso.
Com efeito, a
informalidade é um ponto de chegada, e não um ponto de partida. A informalidade
não é onde as pessoas começam, mas sim onde elas terminam. Hernando de Soto
afirma em seus livros que a informalidade é a consequência de um sistema
tributário, burocrático e jurídico extremamente oneroso, que impede que os
setores menos favorecidos da população participem dele.
Em seu livro "El
Otro Sendero", que faz uma pesquisa abrangente sobre o mercado informal do
Peru, publicado no ano de 1986, de Soto mostra que, para registrar uma oficina
de produtos têxteis, eram necessários 289 dias e um gasto total de US$ 1.231, o
que à época equivaliam a 32 salários mínimos no Peru.
Já em seu livro "O
Mistério do Capital", de 2001, de Soto mostra que os pobres são extremamente
capazes de gerar riqueza, porém são impedidos disso pelo estado, que não reconhece
seus direitos de propriedade. Sendo mais específico, ao investigar as
consequências econômicas da falta de direito de propriedade entre as populações
mais pobres do continente, de Soto descobriu que os pobres da América
Latina, só nas terras que possuem de fato mas não de direito, estavam sentados
em cima de quase 10 bilhões de dólares. Sem título de propriedade, não podiam
capitalizar em cima desse valor.
De Soto estimou que 80% da
propriedade nos países em desenvolvimento está totalmente na
informalidade. Isso significa que há dezenas de milhões de famílias no continente
que simplesmente não podem utilizar sua propriedade como garantia para a
obtenção de crédito, com o qual poderiam abrir pequenas empresas, fornecer
empregos e, de forma geral, se integrar ao sistema produtivo. Se a casa
ou o terreno de uma família pobre não são formalmente seus (como no caso das
favelas brasileiras), não há nenhuma medida econômica que possa compensar tudo
isso.
Igualmente, ao não reconhecer
os pequenos empreendimentos informais dos pobres, o estado impede que eles
utilizem esse capital para tomar crédito e ampliar sua capacidade de produção,
como ocorre no mundo desenvolvido.
No Brasil, segundo dados
do IBGE, há
44 milhões de pessoas na informalidade. Estas pessoas contribuíram com 16%
do PIB em 2015. Foram R$ 956,8
bilhões de riqueza gerados pela informalidade no ano passado.
O fato é que empreender e
empregar legalmente no Brasil é muito caro. Para abrir uma empresa são necessários
107
dias, em média. Pagar impostos requer
2.600 horas apenas para preencher formulários (mais do que o dobro do
segundo colocado, a Bolívia). Empregar alguém traz um custo extra de 103% do
salário só com impostos e outros encargos trabalhistas. Ou seja, além do salário,
você tem de pagar o equivalente a outro salário só com impostos, encargos
sociais e trabalhistas. (Coisas como imposto sindical ou contribuição para a
reforma agrária são comuns).
Não bastasse isso, ainda
temos de arcar com nada menos que 93 impostos
diferentes.
Não sendo viável nem
empreender legalmente e nem ser contratado legalmente, só resta às pessoas
nesta situação irem buscar outros meios de sobrevivência. E é no mercado
informal que elas encontram algum oxigênio.
Como explicou
Mario Vargas Llosa:
A
informalidade é uma resposta dos mais pobres a este sistema que os transformou
em vítimas de uma espécie de apartheid econômico e jurídico. Neste sistema, as
leis parecem ter sido pensadas e criadas para fechar-lhes completamente o
acesso a coisas elementares, como ter um trabalho e um teto. Você realmente
acredita que eles devem renunciar a essas aspirações básicas em nome de uma
legalidade irreal e injusta? Claro que não. Eles irão renunciar, isso
sim, à legalidade.
Conclusão
Empreendedores operam na informalidade por três motivos
fundamentais: os encargos sociais e trabalhistas não permitem o trabalho
formalizado, as regulamentações e a burocracia não permitem que um
empreendimento seja legalizado, e os impostos não permitem que as transações
oficiais sejam lucrativas.
Ameaças de multas e confiscos não irão aliviar o
primeiro e o terceiro motivos. E somente uma redução no emaranhado burocrático
de regras e regulamentações irá aliviar o segundo.
Um aumento da repressão irá indubitavelmente reduzir
a amplitude da economia informal.
Afinal, os empreendedores, mesmo os informais, irão reagir a este
aumento nos custos e nos riscos reduzindo a abrangência de suas
atividades. Essa redução, no entanto,
não irá se traduzir em um aumento da atividade no mercado formal. Apenas se o
fardo regulatório e tributário sobre os empreendedores for reduzido é que eles
tornar-se-ão mais dispostos a operar na economia formal.
Em vez de encarar as economias informais como
fenômenos indesejados que devem ser abolidos, o estado deveria começar a vê-las como aquilo que realmente
são: um inegável sinal de que suas tradicionais políticas intervencionistas
fracassaram abismalmente.
Se uma pessoa acredita que a economia informal é
algo inerentemente ruim, então, por uma questão de lógica, ela também deve
considerar as políticas que geraram sua existência como algo inerentemente ruim
e que deve ser abolido.
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Iván
Carrino é analista econômico da Fundación Libertad y Progreso na
Argentina e possui mestrado em Economia Austriaca pela Universidad Rey Juan
Carlos, de Madri.
David
Howden é professor assistente de economia na Universidade de St. Louis, no
campus de Madri, e vencedor do prêmio do Mises Institute de melhor aluno da
Mises University.
Leandro
Roque é o editor e tradutor do site do Instituto Ludwig von Mises
Brasil.