Voltemos aqui a abordar um tema que, embora seja
amplamente falado na imprensa, literalmente ninguém o discute em detalhes.
Toda a imprensa fala sobre o eventual aumento de
juros que o Fed irá fazer. Só que absolutamente ninguém fala sobre como exatamente
isso será feito.
Comecemos pelo básico.
Um Banco Central convencional -- seja ele o Fed
americano ou o Banco Central brasileiro -- controla uma única taxa de juros: a
taxa de juros do mercado interbancário.
Nos EUA, essa taxa é chamada de "Federal Funds
Rate". Idêntica à SELIC brasileira, essa taxa representa a taxa de
juros que os bancos cobram entre si no mercado interbancário para emprestar (ou
tomar emprestado) dinheiro que possuem em suas reservas.
Os bancos recorrem a essas operações interbancárias
diariamente porque, ao final de cada dia, precisam manter um determinado volume
de dinheiro em suas reservas. (Esse volume de reservas é o equivalente a
uma determinada porcentagem do total de seus depósitos, e é determinado pelo
Banco Central; chama-se compulsório).
O Banco Central, por meio de suas injeções
monetárias neste mercado interbancário -- ele cria dinheiro para comprar
títulos públicos em posse dos bancos e destrói dinheiro ao vender títulos
públicos para os bancos --, afeta a taxa de juros do mercado interbancário e,
com isso, é capaz de determinar a taxa básica de juros da economia.
Esta é a única taxa que o Banco Central de fato pode
controlar. (Tanto o Fed quanto o Banco Central brasileiro também controlam a
taxa de redesconto, que é a taxa cobrada de bancos que decidem pedir empréstimos
ao Banco Central; mas este recurso raramente é utilizado pelos bancos.)
Só que há um problema: a demanda dos bancos americanos
por empréstimos no mercado interbancário está praticamente nula. Os
bancos não estão demandando empréstimos um dos outros neste mercado. E
isso nunca havia acontecido antes.
Por quê?
As
consequências de 2008
Porque o Fed, em resposta à crise financeira de 2008,
tomou duas atitudes: a primeira, típica de países latino-americanos da década
de 1980; a segunda, completamente inédita nos anais da teoria macroeconômica e
jamais discutida nem sequer como hipótese em nenhum livro-texto de economia.
A primeira medida foi imprimir dinheiro a rodo e
entregar esse dinheiro aos bancos em troca de título podres que estes
carregavam. Tratou-se de uma medida que, na prática, tinha a intenção de
limpar os balancetes dos bancos.
O gráfico a seguir mostra o que ocorreu com a base
monetária americana em decorrência desta medida:

Gráfico
1: Evolução da base monetária americana
Tamanha injeção de dinheiro no sistema bancário
iria, segunda a teoria macroeconômica, degenerar em hiperinflação caso
os bancos decidissem emprestar todo esse dinheiro para pessoas e empresas.
Vale enfatizar que, no atual arranjo financeiro, o
Fed (bem como o Banco Central brasileiro) não injeta dinheiro
diretamente na economia; ele injeta dinheiro apenas nos bancos, e os bancos é
que decidem se irão despejar este dinheiro na economia (por meio da criação de
crédito). Se os bancos não quiserem despejar este dinheiro na economia, não
há nenhum risco de inflação de preços.
E foi aí que o Fed teve então a sua segunda ideia,
completamente inédita na história dos Bancos Centrais: para impedir que toda
esta dinheirama fosse emprestada pelos bancos, ele simplesmente decidiu pagar
aos bancos juros anuais de, inicialmente, 0,25% sobre todo e qualquer dinheiro
que os bancos voluntariamente deixassem parado no Fed.
Normalmente, um Banco Central paga juros aos bancos
apenas sobre o valor do compulsório. Nos EUA, no entanto, o Fed criou a
política de pagar juros para todo e qualquer montante que os bancos
voluntariamente deixem parados no Fed.
Ou seja, de um lado, o Fed imprimiu
(eletronicamente) trilhões de dólares e entregou esse valor aos bancos em troca
de títulos podres que estavam em posse destes bancos; de outro, ele começou a
pagar, para os bancos, juros de, inicialmente, 0,25% sobre todo este
dinheiro.
Tão logo o Fed adotou essa prática, a taxa de juros
do mercado interbancário caiu para quase zero. E esta taxa de 0,25% acabou se
tornando a taxa básica de juros da economia americana.
A consequência disso é que os bancos americanos
estão hoje com US$ 2 trilhões de "reservas em excesso"
voluntariamente estacionadas no cofre eletrônico do Fed.

Gráfico
2: evolução das reservas em excesso (dinheiro que os bancos voluntariamente
deixam parado no Fed, em troca de juros)
Com todo este excesso de reservas, nenhum banco tem
de ir ao mercado interbancário pedir dinheiro emprestado para outro banco com o
intuito de manter um determinado volume de dinheiro em suas reservas. O
sistema bancário americano está hoje inundado de dinheiro na forma de reservas
em excesso. Nenhum banco precisa mais se preocupar com a hipótese de não ter
reservas suficientes. Nenhum banco precisa se preocupar em recorrer ao mercado
interbancário para pedir dinheiro emprestado.
Consequentemente, o Fed não mais consegue controlar a taxa de juros do mercado interbancário
-- que é exatamente a taxa básica de juros da economia americana.
A única política monetária que o Fed realmente pode
fazer é elevar a taxa de juros que ele paga sobre todas essas reservas
em excesso que os bancos mantêm depositadas junto ao Fed.
De 2009 até dezembro de 2015, ele pagou uma taxa de
0,25% ao ano. A partir de dezembro de 2015, ele passou a pagar 0,5%. Em
seu comunicado a respeito dessa decisão, o Fed disse claramente que o
colegiado havia decidido, por unanimidade, "elevar para 0,50% a taxa de juros
paga tanto sobre as reservas exigidas quanto sobre as reservas em excesso, a
partir de 17 de dezembro de 2015".
Essa, com efeito, tornou-se a única taxa que o Fed
hoje realmente controla: as taxas que ele paga sobre todas as reservas
bancárias.
De um lado, ele pode elevá-la o quanto quiser. Mas há
consequências diretas.
Quanto
mais juros, maior o rombo do Tesouro americano
Ao contrário de todas as outras operações de
política monetária, esse dinheiro com o qual o Fed paga juros de 0,50% aos
bancos não é criado eletronicamente por ele. Esse
dinheiro advém dos lucros operacionais do Fed.
Em termos puramente contábeis, esse dinheiro é
retirado do patrimônio líquido do Fed e colocado em seu passivo (as reservas
bancárias representam contabilmente um passivo para o Fed).
Sendo assim, se o Fed elevar os juros de 0,50% para,
digamos, 0,75% ou até mesmo 1%, não apenas os lucros operacionais do Fed serão
brutalmente reduzidos, como também será reduzido o montante que o Fed repassa
anualmente ao Tesouro.
Legalmente, o Fed é obrigado a repassar ao Tesouro
americano todo o dinheiro que ele obteve de lucro menos o necessário para
cobrir suas operações.
Se o Fed elevar os juros que paga sobre as reservas
em excesso, o orçamento do governo federal americano sofrerá um baque. Cada
centavo que o Fed paga sobre as reservas em excesso é um centavo a menos que
não pode ser dado ao Tesouro americano ao final de cada ano fiscal. Consequentemente,
se o Fed elevar os juros, o déficit orçamentário do governo federal americano
irá aumentar.
O
que tudo isso significa
A questão realmente importante em tudo isso é que a
tradicional maneira de se fazer política
monetária -- com o Fed comprando e vendendo títulos no mercado
interbancário como forma direta de controlar a taxa de juros do interbancário
-- foi abolida. A maneira como o Fed
controla agora a taxa de juros do interbancário é totalmente inusitada: é uma
maneira que jamais foi descrita em qualquer manual de macroeconomia.
O Fed não mais tem como manipular os juros do
interbancário por meio de seus instrumentos clássicos, que é a compra e venda
de títulos. O Fed não mais tem como manipular os juros do interbancário por
meio de operação no mercado aberto. Na prática, todo o manual tradicional de
macroeconomia foi tornado obsoleto.
A única maneira que restou ao Fed para tentar
manipular os juros deste mercado é exatamente a que ele está utilizando: pagar
juros sobre todo e qualquer dinheiro que os bancos voluntariamente optarem por
depositar junto ao Fed. Tal método nunca foi descrito em absolutamente nenhum
manual de macroeconomia conhecido.
Ao pagar para os bancos deixarem dinheiro parado, o Fed inevitavelmente
consegue afetar os juros do interbancário. Óbvio. Se eu pago para você deixar
dinheiro parado, isso afeta os juros que você cobrará do seu vizinho caso ele
lhe peça um empréstimo. Quanto mais eu pagar para você deixar seu dinheiro
parado, maior os juros que você vai cobrar para emprestar para o seu vizinho.
Este método, no entanto, não apenas não
é o método tradicional de se fazer política monetária, como também nunca foi
descrito em nenhum manual de macroeconomia que se conheça.
Para o Fed voltar a fazer política monetária tradicional,
ele teria de enxugar uma boa parte desses trilhões de dólares que estão nas
reservas em excesso. Isso exigiria uma venda trilionária, pelo Fed, de
títulos públicos para esses bancos.
Obviamente, se ele fizer essa liquidação, os preços dos
títulos iriam desabar, o que significa que as taxas de juros desses ativos
iriam disparar. Com a disparada das taxas de juros de todos esses papeis, toda
a economia americana seria pesadamente afetada.
E o governo, obviamente, não quer isso.
O
que já está acontecendo
Eis o comportamento da base monetária americana nos
últimos 5 anos.

Gráfico
3: evolução da base monetária nos últimos 5 anos. Deflação desde 2014
De janeiro de 2014 até o presente momento (dezembro
de 2016), a postura do Fed tem sido claramente deflacionária.
O Fed não apenas não está inflacionando, como, ao
contrário, está deflacionando. Quantos artigos você já leu dizendo que o Fed
está deflacionando? Não muitos.
Essa política monetária ajuda a explicar a robustez
mundial do dólar, que chegou
ao seu maior valor em 13 anos perante as principais moedas do mundo.
Se o Fed decidir elevar a taxa de juros que paga
sobre as reservas em excesso na próxima quarta-feira, e se os bancos optarem por depositar
mais dinheiro digital no Fed em troca de receber juros mais altos, eles não irão emprestar esse dinheiro para empresas e pessoas, com mais empréstimos sendo quitados do que concedidos. Isso é contração monetária.
Atualmente, o Fed já não está comprando nenhum ativo; ele não está expandindo a
base monetária. Ele está estimulando uma contração da base monetária.
Todos os outros principais bancos centrais mundiais estão
inflacionando suas bases monetárias. Se você quer entender por que o dólar está
se apreciando perante as outras moedas, comece por esse ponto.
Se essa tendência deflacionária continuar, pode
ocorrer uma depressão na economia americana -- não uma recessão, mas sim uma
depressão.
Normalmente, o Fed é avesso a recessões. Sempre foi
no passado. Mas será que ele agirá de maneira diferente agora? Seria o Fed tão contrário
a Trump, que ele estaria agora disposto a causar uma recessão?
De antemão é impossível saber. Se o Fed elevar a
taxa de juros que ele paga sobre as reservas em excesso, isso seria um
indicativo de um sentimento anti-Trump (que já pediu uma
auditoria do Fed). Não há motivos econômicos para o Fed elevar essa taxa de
juros. A inflação de preços está em 1,6%
e a base monetária está em deflação. No entanto, com Trump no poder, pode ser
que o Fed esteja finalmente disposto a dar um aperto maior na economia. O sentimento anti-Trump jamais deve ser subestimado.
O fato é que o Fed vem seguindo uma política
levemente deflacionária há dois anos. Mas isso não está sendo comentado na
imprensa. Isso não está recebendo nenhuma publicidade. Consequentemente, o Fed não
recebe nenhuma crítica. Caso não faça nada na próxima quarta-feira, o Fed
continuará adotando um perfil discreto. Seu comunicado sobre um não-aumento dos
juros ficará nas manchetes por muito pouco tempo. Esta, em tese, é a postura
mais segura: não fazer nada.
Por outro lado, se ele elevar a taxa de juros sobre
as reservas em excesso, isso pode fortalecer ainda mais o dólar. Exportadores não
gostam disso. Normalmente, o governo sempre gosta de agradar exportadores. É um
dos lobbies mais forte de qualquer economia.
Conclusão
O Fed ainda tem munição.
Na
próxima recessão, ele pode voltar a aumentar a base monetária, que é o que ele
sempre fez. Até lá, ele pode perfeitamente ficar à espera, sem fazer nada, como
tem sido sua prática nos últimos dois anos.
Vale lembrar que estamos falando de burocratas. Burocratas
sempre preferem não fazer nada enquanto não houver nenhuma crítica do público e
da imprensa. O Fed tem estado totalmente fora dos holofotes desde a eleição presidencial.
É exatamente isso o que ele quer: ficar nas sombras.
Os EUA hoje estão vivenciando uma política monetária
rigorosa. Trata-se de algo que não ocorreu nos últimos 102 anos -- desde que o
Fed foi criado.
O Fed diz querer alcançar uma inflação de preços anual
de 2%. Mas sua política de deflação monetária torna isso improvável. Ele não está
seguindo uma política propícia a isso.
A conclusão é: ele está guardando munição. Quando a recessão
vier, ele voltará a inflacionar. Aí os preços
subirão 2% ao ano, e então o Fed anunciará o sucesso de sua missão.
Talvez o Fed não eleve a taxa de juros que paga
sobre as reservas em excesso nesta próxima quarta-feira. Mas, se o fizer, então
isso será um indicativo de que o Fed está assumindo uma postura anti-Trump, planejando
afetar seu capital político por meio de uma recessão.
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Atualização em 14 de dezembro de 2016
Exatamente como
informado neste artigo, o Fed acaba de anunciar que irá pura e simplesmente
elevar o valor que ele paga sobre as reservas em excesso.
Veja o anúncio na íntegra e o trecho principal abaixo:
"The Board of Governors of the Federal Reserve System voted unanimously
to raise the interest rate paid on required and excess reserve balances
to 0.75 percent, effective December 15, 2016."
E
também como explicado neste artigo, o Fed elevou a taxa da janela de redesconto,
de 0,75% para 1%. Trecho:
"In a related action, the Board of Governors of the Federal Reserve System
voted unanimously to approve a 1/4 percentage point increase in the discount
rate (the primary credit rate) to 1.25 percent, effective December 15, 2016."
No final, foi apenas
uma medida para 'manter as aparências'. Um aumento de 0,25 ponto percentual não
afetará grandemente o orçamento do Tesouro americano e também não afetará sobremaneira a
economia americana. Por enquanto.
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Leia também:
Qual é a estratégia de saída do Fed?
O que o Fed poderá fazer