A maior forma de caridade, argumentou o filósofo
judeu Maimônides, ainda no século XII, ocorre quando a ajuda dada permite ao
ajudado se tornar auto-suficiente.
No entanto, os sistemas de caridade estatal vigentes
ao redor do mundo -- eufemisticamente chamados de 'sistemas de bem-estar
social' -- geraram o efeito oposto: eles na realidade criaram dependência.
Pior: os grandes beneficiados acabaram sendo os próprios
políticos e burocratas que gerenciam o arranjo.
A
burocracia estatal é a grande ganhadora
O governo utiliza a coerção para adquirir as
receitas (impostos) que usa para financiar o assistencialismo. No entanto, como
evidenciada pela comissão retida antes da redistribuição da riqueza, as
burocracias estatais são as grandes beneficiadas pelos programas sociais.
E isso não ocorre apenas em países atrasados e
corruptos, não. Pegue, por exemplo, o Canadá, que figura entre os 10
países menos corruptos do mundo. O número de burocratas contratados apenas
para gerenciar os programas de redistribuição de renda aumentou
incríveis 43% entre 2006 e 2012.
Isso comprova uma obviedade: é do interesse de políticos
e burocratas criar (impor) uma cultura de dependência. Quanto mais
assistencialismo, maiores os ganhos daqueles que o gerenciam.
Certamente, o padrão é ainda pior nos países mais
pobres.
O dinheiro do assistencialismo, em grande parte, não
vai para os pobres, mas sim para os próprios membros da burocracia que coordena
todo o esquema. Vai também para os assistentes sociais, para os consultores,
para as empreiteiras que constroem as moradias populares, para os burocratas
que gerenciam os hospitais públicos, os restaurantes populares e os centros de redistribuição.
Consequentemente, os pobres são maldosa e intencionalmente
transformados em uma subclasse perpétua, dependente do governo, para que alguns
parasitas possam viver confortavelmente bem à custa de todo o resto da
sociedade.
Logo, é urgente repensar a maneira como estamos
atualmente delegando ao estado a tarefa de ajudar as pessoas.
Irei aqui sugerir algo que muitos poderão considerar
perturbador e desconcertante: o bem-estar social e todas as variedades de
assistencialismo seriam mais eficazes, mais variados, mais difundidos e mais
baratos se não houvesse nenhum envolvimento estatal.
As pessoas instintivamente pensam que, sem um
programa assistencialista gerido pelo estado, os pobres e os necessitados não
seriam cuidados e, consequentemente, seriam deixados à míngua. Com esta perspectiva
em mente, as pessoas consequentemente se tornam fervorosas em sua defesa de
algum programa assistencialista estatal, ainda que possam porventura apresentar
reservas à maneira como tal programa esteja sendo gerido pelo
estado.
Mas eis o fato: sugerir que o assistencialismo
estatal não está funcionando e que ele deveria ser abolido não é
a mesma coisa que sugerir que os pobres e necessitados não devem receber
cuidados. Com efeito, é exatamente o oposto.
A assistência é algo complicado -- e não
é apenas o assistido o que importa
O fornecimento de serviços assistenciais é um
processo delicado, complicado e imprevisível. Em algumas ocasiões,
simplesmente dar dinheiro pode realmente levar o assistido ao caminho da auto-suficiência;
em outras, não. Dar dinheiro pode gerar uma redução temporária de seu
sofrimento, mas frequentemente gera uma maior dependência e uma menor
auto-suficiência.
Em determinadas ocasiões, uma abordagem estritamente
local é tudo de que se necessita; em outras, uma abordagem mais prática passa a
ser essencial; já em outras, é necessária uma abordagem puramente psicológica
ou emocional; e há também ocasiões em que se deve buscar algo que seja mais
específico às circunstancias particulares de cada indivíduo. Por fim, há
também ocasiões em que todo o necessário é apenas dar o proverbial
"tapinha nas costas". Diferentes circunstâncias requerem
diferentes abordagens e diferentes formas de assistência.
No passado, era assim que era feito. E os resultados
eram superiores.
O historiador David Beito, em seu
livro "From Mutual Aid to the Welfare
State: Fraternal Societies and Social Services, 1890-1967"
(Da ajuda mútua ao estado
assistencialista: sociedades fraternais e serviços sociais, 1890-1967), mostrou
que, independentemente de suas origens, os membros de praticamente todos os
grupos étnicos e nacionais criaram formidáveis redes de auxílios individuais e
coletivos para ajudar a aliviar a pobreza. Essas redes de auxílios recíprocos
tendiam a ser descentralizadas, espontâneas e informais. Era comum que os doadores
e os recebedores fossem pessoas da mesma camada social. Os recebedores de hoje
podiam se transformar nos doadores de amanhã.
Segundo Beito:
A
ajuda recíproca era algo muito mais predominante do que a ajuda governamental e
até mesmo do que as doações privadas. Sua expressão mais básica era a doação informal:
os incontáveis e imemoriais atos de bondade entre vizinhos, colegas de
trabalho, parentes e amigos. [...]
A
ajuda mútua e os arranjos informais entre os vizinhos, criados pelos próprios pobres,
ofuscavam completamente os esforços das agências governamentais voltadas ao "combate
à pobreza".
Sobre
isso, Edward
T. Devine, um proeminente assistente social, escreveu um artigo para a
revista "Survey" para alertar seus colegas contra a presunção e a mania de
grandiosidade que eles próprios se atribuíam. Ele reiterou que milhões de
pessoas pobres estavam se mostrando capazes de sobreviver e progredir sem
recorrer à ajuda governamental.
Disse
ele:
"Nós
que estamos engajados nesse trabalho de gerar alívio aos pobres . . . acabamos tendo impressões bastante
distorcidas sobre a importância, na economia social, dos fundos que estamos
distribuindo ou dos esquemas sociais que estamos promovendo . . . Mas a
realidade mostra que não somos tão indispensáveis assim. . . . Se não houvesse
recursos públicos em épocas de enormes aflições e angústias, e essas pessoas tivessem
de recorrer às ajudas mútuas e voluntárias, bem como aos auxílios informais
feitos por vizinhos, ainda assim a maioria destas aflições seriam debeladas."
A caridade privada era mais efetiva do que o
assistencialismo estatal porque indivíduos contribuindo com seu próprio dinheiro
são muito mais incentivados a identificar necessidades genuínas. Em nível local,
é fácil monitorar os auxiliados para garantir que eles de fato estão genuinamente
se esforçando para se tornarem independentes. Com efeito, no passado mais
distante, grande parte da ajuda fornecida vinha daqueles que conheciam
pessoalmente os recebedores do auxílio.
Em contraste, burocracias estatais centralizadas são
impessoais por natureza. Elas lidam com milhões de indivíduos que estão na lista
dos auxiliados, de modo que é impossível conhecer cada um pessoalmente. Acrescente
a isso o fato de que elas estão distribuindo o dinheiro alheio, extraído
coercivamente via impostos, e você concluirá que os incentivos para se
determinar as genuínas necessidades desaparecem quase que por completo.
A consequência é que se torna muito mais fácil fraudar
o sistema (no Brasil, ver aqui,
aqui,
aqui
e aqui).
Os indolentes e os espertalhões sabem como se aproveitar do moderno sistema de
assistencialismo público, ao passo que esses mesmos não teriam qualquer chance
no sistema privado de antigamente.
A
destituição do filantropo
Tendo tudo isso em mente, a seguinte pergunta se
torna inevitável: como pode alguém realmente pensar que é viável criar um
programa de assistencialismo estatal que seja feito de cima para baixo, e
imaginar que tal programa irá satisfazer todas essas necessidades distintas e
variáveis, de maneira consistente?
E a coisa se complica ainda mais. Até agora,
falamos apenas do assistido. Temos de falar também do doador, do
"filantropo". Ele também tem de ser considerado.
Compaixão, assistência e caridade são atitudes
humanas essenciais. Elas fazem parte da natureza humana. Assim como as pessoas precisam receber, elas
também devem dar. Assim como as pessoas precisam ser ajudadas, elas também
devem ajudar.
No processo caritativo, o filantropo também tem suas
necessidades. Em algumas ocasiões, ele quer anonimato; em outras, ele quer
reconhecimento. Há ocasiões em que ele quer estar envolvido de alguma maneira
com o assistido; e há ocasiões em que ele prefere não ter envolvimento nenhum.
No entanto, quando a caridade se torna um programa
estatal compulsório, as necessidades do filantropo nem sequer são
consideradas. Sua renda é confiscada via impostos e fim de papo. O filantropo
não tem nenhuma voz ativa; ele simplesmente não pode especificar a maneira como
o dinheiro que ele ganhou e que lhe foi tomado deve ser gasto. Para piorar, o
filantropo é, na maioria das vezes, moralmente contra os programas que seus
impostos financiam.
A tributação é um ato de doação forçada que
destrói a satisfação altruísta que as pessoas normalmente sentem quando fazem
doações voluntárias. Ajudar os outros e compartilhar com eles um pouco do
que temos é parte de nossa humanidade. No entanto, em um mundo em que o
governo se arvorou a responsabilidade de cuidar dos pobres e necessitados, essa
compaixão foi removida. Como resultado, o estado hoje detém um
quase-monopólio da compaixão.
Com efeito, a coisa é ainda mais bizarramente
específica: a esquerda defensora de um estado assistencialista inchado e
generoso detém hoje o monopólio da compaixão. Qualquer um que não concorde
com o conceito de um estado assistencialista inchado e generoso é imediatamente
tido como insensível e egoísta.
A solução: concorrência
Quando você é obrigado a pagar impostos para o
governo para que ele forneça serviços assistencialistas (ou mesmo educação e
saúde) para os necessitados, a sua capacidade de pagar por
estes mesmos serviços para você e para sua família é reduzida, pois agora você
tem menos dinheiro. Após uma parte da sua renda ser confiscada via
impostos, torna-se mais difícil para você bancar a escola de seus filhos, seu
plano de saúde e seu aluguel. E se torna ainda mais difícil você ser
caridoso para com terceiros, o que significa que tal tarefa será delegada com
ainda mais intensidade ao estado.
Pior ainda: o próprio fato de você agora ter menos
dinheiro significa que você provavelmente também dependerá do estado para determinados
serviços. Isso faz com que a rede de dependência cresça cada vez mais.
Mais: se o estado está fornecendo auxílio para os
necessitados com o seu dinheiro, então você inevitavelmente se sentirá
absolvido da responsabilidade moral de ajudar os outros
necessitados.
Simultaneamente, o assistencialismo estatal, além de
ser inflexível, é caro. Como mostrado acima, as burocracias
que administram os programas de redistribuição de renda sempre são ineficientes
e dispendiosas, além de propensas à corrupção e ao rentismo.
Se você analisar o que ocorreu ao longo das últimas
décadas com itens como tecnologia, alimentação e vestuário -- necessidades
humanas essenciais que, em grande parte, não são fornecidas pelo estado --,
verá que houve uma queda dramática nos preços (mensurados em termos de horas de
trabalho necessárias para se adquirir a mesma quantidade de cada item) e uma
sensível melhora na qualidade dos produtos. A concorrência reduziu os
custos. No entanto, no campo assistencialista, não houve tal melhoria. Por
que não? Porque, graças ao quase-monopólio estatal, não há concorrência
nesta área.
A ideia de haver concorrência para serviços
caritativos é ofensiva para muitas pessoas. Mas é necessário haver
concorrência se a intenção for melhorar a qualidade e reduzir os custos.
O maior gasto em nossas vidas não é,
como muitos acreditam, nossa casa ou a educação de nossos filhos. Nosso
maior gasto é com o governo. E tal gasto não deve ser mensurado apenas em
termos de carga tributária, mas também em termos de regulações, burocracias, infraestrutura
decadente e serviços pelos quais temos de pagar em dobro, pois os que o estado
fornece com nossos impostos são lastimáveis (como saúde, educação e
segurança).
Sendo assim, imagine um mundo com um estado
mínimo. Repentinamente, este gasto desnecessário seria removido. Sem
o custo do estado, teríamos agora mais capital para investir e gastar. As
pessoas genuinamente estariam no poder. Nossa capacidade de ajudar os
necessitados seria aumentada.
Nossa responsabilidade moral em
ajudar os outros seria repentinamente restaurada. Mais ainda, seria
aumentada.
Simultaneamente, e graças à concorrência, a ajuda
que queremos e podemos oferecer seria mais barata, mais variada e de melhor
qualidade. Organizações estariam competindo entre si para oferecer mais
ajuda a um preço menor. E mesmo organizações que visam estritamente ao
lucro estariam propensas a fazer isso porque, no mínimo, seria bom para a
imagem delas.
Qual seria o resultado? Auxílios caritativos a
custos mais baixos, auxílios caritativos mais eficazes, auxílios caritativos
mais variados, mais difundidos e mais flexíveis, que poderiam satisfazer
necessidades específicas. Em suma, uma rede caritativa de maior qualidade
e que estimulasse algum retorno dos auxiliados em termos de
qualificações profissionais.
Conclusão
Podem os programas assistencialistas ser reformados
de modo a igualar os incentivos possuídos por indivíduos privados? Não. A natureza
superior dos incentivos privados advém do fato de que indivíduos estão utilizando
seus próprios recursos -- seu próprio dinheiro. Isso é impossível de ser
copiado dentro da estrutura institucional coerciva do governo.
Você diz que, sem o estado assistencialista, os pobres
e necessitados seriam deixados à míngua? Pois eu digo que eles serão
tratados em um padrão muito mais elevado do que aquele vigente hoje. Afinal, já
foi assim no passado.